Embora eu tenha tuitado e publicado no Face a notícia minutos
após o acidente de helicóptero ocorrido no
início da tarde de ontem ter resultado na morte de Ricardo Boechat, registro também aqui meu pesar pela perda de
um dos maiores ícones (se não o maior) do jornalismo tupiniquim. Com quase 50 anos de carreira e uma coleção de prêmios no
currículo, Boechat atuava como
apresentador do Jornal da Band e
âncora da BandNews FM e era tido
pelos colegas como um grande sujeito. Lamento não o ter conhecido pessoalmente
e, mais ainda, sua partida prematura. O carequinha era uma ilha de lucidez num
oceano midiático que se divide basicamente em duas categorias: a dos que têm
merda na cabeça e a dos que tomaram purgante.
E Lula lá...
Renan Calheiros é um tipo de craca de difícil remoção. Ele ingressou na vida pública nos anos 1970; em 1989, já deputado federal, articulou articulou a eleição de Collor, mas rompeu com o governo e chegou a depor contra o marajá corrupto na CPI que investigou o esquema PC Farias. Em 2002, então promovido a senador da República, apostou em José Serra contra Lula, mas acabou apoiando a adesão do então PMDB ao governo petista, acumulando poder para se eleger presidente do Senado em 2005. Foi aliado do PT até a véspera do impeachment de Dilma, quando pulou para o barco de Michel Temer — com quem rompeu no ano seguinte para se aliar ao PT em prol de sua reeleição nas Alagoas, estado afinado com o lulismo. Abrilhanta seu currículo o fato de ter sido o primeiro presidente do Senado a se tornar réu no exercício do mandato, além de ser alvo de outros 11 inquéritos no STF — 8 dizem respeito à Lava-Jato, um à Zelotes, um a desvios em Belo Monte e outro sobre o caso Monica Veloso. Passada a campanha eleitoral, o camaleão alagoano reatou com Temer e se realinhou ao novo eixo de poder para se aproximar de Bolsonaro. Ao tentar reconquistar a presidência do Senado, porém, foi derrotado por Davi Alcolumbre numa eleição conturbada, eivada por tentativas de fraude e requintes de briga de cortiço.
Até duas semanas atrás, Renan
Calheiros era tido como invencível por 10 entre 10 analistas políticos
deste país, que pareciam não ver que o político vinha sendo mastigado e cuspido,
dia sim, outro também, pelas redes sociais — as mesmas que calaram a pretensão
do Congresso em “negociar pesado” na formação do ministério — os políticos, que
iriam “dobrar o governo”, tiveram de engolir com casca e tudo o primeiro
escalão que está aí, inclusive com uma dúzia de generais dentro —, e que
anularam qualquer possibilidade de soltar Lula
no tapetão, com jogadinhas de advogado “garantista”. Segundo mais de 100% dos doutores em ciência política deste
país, a chance de qualquer outro senador a raposa alagoana era a mesma de alguém mudar os 90 graus do ângulo reto. A
horrenda rejeição popular a seu nome era tratada, nos mesmos meios, como uma
fantasia de amadores; “pressão de rua” não existe nesses casos, garantiam os
entendidos. “Política de verdade”, em seu livro, não tem nada a ver com redes
sociais, etc. Esse Bolsonaro, os
vinte generais do seu primeiro escalão, o ministro Sergio Moro, etc., iriam aprender, enfim, que é impossível governar
o Brasil sem “ceder aos políticos”, e o sinônimo de política no Brasil era Renan Calheiros. Só que deu zebra —
mais uma vez ao contrário, aliás, como tem dado dia após dia.
O jornalista J.R.
Guzzo, uma das poucas cabeças pensantes que restaram no elenco da revista Veja, escreveu recentemente em sua coluna que os ministros supremos
deveriam começar a pensar nos seus próprios couros. Desde que acabou o regime
militar, suas excelências se transformaram numa espécie de orixás que nenhuma
força do mundo é capaz de tirar do emprego; dois presidentes da República já
foram para o saco, mas os toffolis, e gilmares, lewandowskis e distinta companhia continuam
agarrados ao osso, mais firmes que o Pico da Bandeira na Serra do Caparaó. Mas
e daqui para frente, com esse temporal que está ficando cada vez mais bravo —
vão continuar fora da lei?
Coisas que nunca aconteceram antes sempre podem acontecer
uma primeira vez. As redes sociais, que estão construindo realidades
brutalmente inéditas neste país, podem muito bem ir para cima de qualquer
sultão do STF e cobrar o seu
impeachment de um Congresso com pouca estamina para enfrentar o ronco da rua.
Era impossível. Não é mais. A Receita
Federal abriu um trabalho para identificar “focos de corrupção, lavagem de
dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência” do ministro Gilmar Mendes e de sua mulher, Guiomar — o relatório, de maio de 2018,
aponta uma variação patrimonial sem explicação de R$ 696.396 do ministro em 2015 e conclui que Guiomar “possui indícios de lavagem de dinheiro”. O jurista Modesto Carvalhosa vai protocolar
novamente os pedidos de impeachment de Gilmar
e Lewandowski, que vão se juntar ao
novo pedido de impeachment de Toffoli.
Pelo visto, a Operação Lava-Toga vai
começar.
Continuamos vivendo no Brasil, mas o país em que vivemos é
cada vez menos o mesmo. O Brasil dos renans, dos “profissionais” da política e
das “realidades de Brasília” está sumindo aos olhos de todo mundo; não existe
mais como existia seis meses atrás, e menos ainda como há um, dois ou cinco
anos. Não é isso que dizem para você, tanto que, vale reforçar, há pouco mais
de uma semana a vitória de Renan para
a presidência do Senado era dada como uma verdade científica. No mundo dos
fatos, que é o único que conta, revelou-se uma raposa cega, surda e aleijada,
com prazo de validade vencido e incapaz de notar que estava desfilando nua no
meio da rua. Em vez de olhar para a realidade, ela preferiu acreditar nos
especialistas, e acabou virando estopa.
É sempre mais fácil dizer o resultado do jogo depois que o
juiz deu o último apito, claro. Mas no caso de Renan daria pelo menos para desconfiar, com trinta minutos corridos
do segundo tempo e 3 a 0 no placar para o outro time, que a coisa tinha se
complicado horrivelmente. Encantados em medir o tamanho do problema que iriam
criar para o governo, Renan e os
profissionais que sempre veem tudo, menos o que está acontecendo, não
perceberam o tamanho descomunal da resistência ao seu nome. Esse erro de
avaliação pode ser fatal hoje em dia: o político brasileiro padrão está
gostando cada vez menos de ficar do lado contrário ao da opinião pública, tal
como ela se manifesta na internet ou na rua. Está sendo assim desde o
impeachment de Dilma, a partir de quando a palavra “rejeição” se tornou a
preocupação número 1 de quem pretende sobreviver na política. O desfecho das
eleições de outubro, com o massacre geral das candidaturas que caíram em
desgraça na boca do povo, está aí para provar.
Diante de tudo isso, Renan
nem deveria ter lançado sua candidatura. Tendo lançado, deveria tê-la retirado.
Não tendo retirado, deveria ao menos deduzir que a maioria dos senadores lhe
dera um aviso sério de que sua candidatura estava liquidada, na prática, quando
decidiram que a eleição deveria ser feita com voto aberto. Mas não. A raposa
agonizante resolveu pedir proteção ao Supremo e conseguiu, de fato, preservar o
voto secreto — acreditava, junto com os ases da observação política nacional,
que, podendo esconder seus votos, os senadores que não queriam votar nele
passariam a querer. Não adiantou nada, é óbvio. Se os eleitores têm vergonha de
votar em você, não há mais nada a fazer nos dias atuais: peça para sair, porque
a sua candidatura foi para o saco. Mas a vida real anulou em dois minutos a
decisão do STF. Os adversários
anunciaram que iriam declarar em voz alta em quem votariam e, com isso,
forçaram todos a fazer o mesmo. Fim do jogo. Renan acabou tendo uma soma de cinco votos, derrotado por um
senador principiante do Amapá do qual ninguém jamais tinha ouvido falar.
O que interessa, uma vez terminada essa comédia, não são os
finíssimos cálculos de engenharia política em torno da eleição, as desculpas
miseráveis dos autores das previsões erradas ou os habituais atos de delinquência
praticados nessas ocasiões, como o delito de furto cometido pela senadora
dilmo-renanzista Katia Abreu, que
achava que roubando um documento da mesa iria “virar o jogo” para Renan. O que interessa é que o Renan Calheiros que podia tudo não
existe mais. Acabou-se para ele o conforto de ignorar dez anos de acusações de
peculato, uso de notas frias, corrupção passiva, criação de boiadas mágicas e
por aí afora, em uma dúzia de processos no STF
— o melhor que pode lhe acontecer, agora, é não ir para a cadeia.
Sumiu do mapa, em suma, o Renan todo-poderoso de Fernando
Henrique, de Lula e de Dilma. Continua aí, claro, e os mesmos
que previam sua vitória profetizam agora que ele será um “problemaço” para o
governo — revoltado com a derrota, vai se vingar melando “as reformas”. Mas é
apenas outra ilusão. Renan nunca
mais vai presidir coisa nenhuma. Não manda em nada. Não tem a caneta de
presidente do Senado e, portanto, não pode distribuir verbas, empregos e outros
negócios em troca de poder. Sem caneta, vira um eunuco político — e isso faz
diferença, sim, para o país.
A derrocada de Renan Calheiros oferece mais uma oportunidade
para entender outra realidade deste Brasil que está mudando — a agonia, morte e
enterro, como força política, da esquerda nacional e do seu líder nos últimos
trinta anos. É uma realidade normalmente ignorada, mas ignorar que 2 mais 2 são
4 não faz nenhuma diferença; a soma continua sendo 4. Nada combina tão bem
essas duas decadências quanto a mais recente quimera cultivada pelo Complexo
Lula-PT-PSOL-MST-etc. Acredite se quiser, eles achavam que Renan, hoje seu principal amigo de fé,
irmão e camarada, iria formar ao redor de si um fortíssimo “polo de poder
alternativo” no Brasil, e que esse prodígio seria capaz de enfrentar o “governo
fascista” e dar, afinal, os músculos políticos de que a “resistência” tanto
precisa.
Como Lula e seu sistema de
apoio puderam acabar dando nisso? Resposta: pela obsessão por tomar decisões
erradas, escolher companhias ruinosas, de Marcelo
Odebrecht a Sérgio Cabral, e
recusar-se a admitir o mínimo erro. Por culpa unicamente de suas decisões, e
não de “golpes” imaginários, das “elites” ou da CIA, Lula virou uma espécie de rosca sem fim. Ele e o “campo
progressista” se meteram num enrosco esquisito: quanto mais perdem, mais
esforço fazem para perder de novo. Seu lema, hoje, parece ser: “Derrota ou
morte”. Ficaram com as duas.