sexta-feira, 24 de maio de 2019

DOMINGO DE MANIFESTAÇÕES NO PAÍS QUE NÃO PODE DAR CERTO



Segundo O ANTAGONISTA — que às vezes exagera um pouco, mas em geral sabe das coisas —, Lula mandou o PT abandonar qualquer plano para derrubar Bolsonaro. A informação, originalmente publicada pela Folha, dá conta de que o molusco, consultado na cadeia, disse aos dirigentes petistas não ver sentido na defesa de um ”Fora, Bolsonaro”, pois seria o mesmo que clamar pela ascensão de Hamilton Mourão. O site menciona ainda que “o recado já chegou ao STF”, mas eu não sei como interpretar esse destaque da notícia. Ninguém duvida de que o criminoso de Garanhuns continua comandando sua organização criminosa de dentro da cadeia, mas daí a... bem, tirem suas próprias conclusões, e se acharem que dá para acreditar num país onde descalabros com esse acontecem, eu os saúdo, caríssimos leitores.

Ao endossar um texto segundo o qual o Brasil é "ingovernável", avalizar um vídeo em que um pastor lunático o qualifica de “enviado por Deus para consertar o país” e empurrar seus seguidores nas redes para uma manifestação anti-Congresso, Bolsonaro dá sinais de que pretende criar, no processo eleitoral brasileiro, um terceiro turno (depois de prevalecer no primeiro como candidato antissistema e despachar o lulopetismo no segundo). Todavia, se analisarmos o comportamento dos nobres deputados em relação à reforma previdenciária e ao pacote anticrime e anticorrupção, fica difícil não dar certa razão ao capitão. Na última quarta-feira, por exemplo, a Câmara, ainda que por exígua maioria, devolveu o Coaf ao ministro Paulo Guedes, temendo que, com o Conselho sob o guarda-chuva de Sérgio Moro, seu acerto de contas com a Justiça fosse antecipado. Olhando a coisa pelo lado positivo, ao menos já não há o risco de ressurreição do organograma de Michel Temer, com 29 ministérios em vez dos atuais 22.

Classificar de idiotas úteis os manifestantes que saíram às ruas para protestar contra o contingenciamento de verbas para a Educação pode ser má escolha de palavras, mas se considerarmos que uma parcela da turba era composta de baderneiros mascarados, armados com barras de ferro e coquetéis molotov, há que reconhecer que Bolsonaro tem alguma razão.

Observação: O conceito de "idiotas úteis", atribuído ao próprio Lenin, referia originalmente aos intelectuais ocidentais simpáticos ao socialismo que, alheios ao fato de que eram descartáveis para o regime de Moscou, disseminavam propaganda, desestabilizavam governos e preparavam o terreno para a revolução comunista — ou qualquer outro objetivo intermediário em prol da utopia marxista. Na Rússia, a expressão era usada em comunicações oficiais e refletia o apreço dos soviéticos por seus agentes e entusiastas. Com o passar do tempo, a definição se ampliou e passou a referenciar pessoas politicamente engajadas, mas que não se percebem como massa de manobra a serviço de um grupo. 

Aos críticos de boa-fé, bastaria conhecimento superficial da reforma previdenciária e do contingenciamento do ensino superior para abdicar de sua participação nas manifestações do último dia 15. A oposição a essas medidas é essencialmente baseada em desinformação e não resiste à matemática — ou à história recente: medidas de austeridade fiscal e cortes muito mais drásticos na Educação foram praticados nos governos lulopetistas, cujos agentes políticos agora se encontram em histérico antagonismo à atual administração. Portanto, não é equívoco nem exagero admitir que a maior parte dos insatisfeitos nas ruas foi, de fato, manipulada.

Existe, entretanto, uma diferença abissal entre constatar uma realidade e cuspi-la na cara do interlocutor. Como reflexo natural, a crítica ofensiva gera uma resposta defensiva e costuma afastar a possibilidade de diálogo. Bolsonaro tem muitas opções além do insulto para lidar com cidadãos que dele divergem politicamente. Até porque o comportamento de manada dos manifestantes de boa-fé denota um posicionamento irrefletido que ainda pode ser modificado — é questão de esclarecimento e persuasão. Falta ao presidente sensibilidade para combater os pastores, em vez de atacar o rebanho incauto.

Não se nega que, ao desqualificar um Legislativo que saiu das mesmas urnas que o consagraram, Bolsonaro realiza uma manobra burra e incoerente, segundo Josias de Souza, para quem o capitão flerta com a burrice ao injetar turbulência numa conjuntura que pede tranquilidade e demonstra incoerência ao emular gente que ele sempre abominou: no plano nacional, o esquerdista João Goulart, que acendeu o estopim do golpe militar de 1964 com suas “reformas de base”, e o pseudo caçador de marajás, populista cuja ilicitocracia lhe garantiu um pé na bunda em 1992; no internacional, Hugo Chávez e seu pupilo Nicolás Maduro, que abrilhantaram seus pendores golpistas com o verniz extraído das manifestações de rua e deu no que deu, ou melhor, no que está dando: ruína e baderna. E um presidente com cheiro de naftalina pré-64, aparência collorida e hábitos venezuelanos é tudo de que não precisamos neste momento.

É difícil prever as proporções que os atos pró-Bolsonaro atingirão, mas o simples ressurgimento daquilo que Juscelino Kubitschek chamava de "o monstro” já pôs a correr parte do centrão e o pedaço do governo pertencente à cota de Olavo de Carvalho. O protesto dos estudantes e professores, mesmo ficando anos-luz aquém das manifestações de 2013, fez o governo liberar R$ 1,587 bilhão para reforçar o orçamento da Educação. Não resolve os problemas do setor, mas atenua a impressão de descaso.

Observação: A arrecadação de impostos e contribuições federais apresentou crescimento real de 1,3% em abril, somando R$ 139 bilhões — o maior valor para o mês desde 2014. Mesmo assim, as escolas públicas não têm verba sequer para comprar giz, nem os hospitais públicos para comprar esparadrapo. Pode dar certo um país onde 50% da população não tem acesso a saneamento básico, quase 50% da água tratada é tragada por vazamentos nas tubulações das redes de abastecimento e o salário mínimo não chega a R$ 1 mil, enquanto a “empresa de palestras” de um ex-presidente corrupto e hoje presidiário faturou R$ 27 milhões em 4 anos? Nem com reza brava!   

Na definição de Juscelino, o monstro é a opinião pública. De raro em raro, a imprensa consegue interpretar seus desejos. Em situações de crise, porém, o monstro dispensa intermediários. Faz o asfalto roncar. O monstro mobilizou-se pelas diretas, derrubou um regime, pôs para correr dois presidentes da República e avalizou o esforço anticorrupção, contribuindo de maneira decisiva para mandar para a cadeia a oligarquia política e empresarial. Agora, revela-se impaciente com a incapacidade do Poder de entregar responsabilidade, estabilidade, probidade e empregos. Por enquanto, a crise está nos gabinetes. Mas o monstro informa que ela pode voltar definitivamente para as ruas. Daí o medo.

Bolsonaro pediu a seus ministros que se distanciem dos atos pró-governo marcados para o próximo domingo, solicitando-lhes, inclusive, que se abstenham de fazer convocações via redes sociais. Horas depois, ele próprio descumpriu sua orientação e voltou a enaltecer a manifestação. Ao tratar novamente do tema na noite de terça-feira, o presidente bateu duas estacas nas redes sociais — uma no cravo, para contentar os "olavetes", e outra na ferradura, para satisfazer os fardados. Primeiro, afagou o pedaço do eleitorado que ainda se dispõe a sair ao asfalto para bater bumbo por ele: "Quanto aos atos do dia 26, vejo como uma manifestação espontânea da população, que, de forma inédita, vem sendo a voz principal para as decisões políticas que o Brasil deve tomar." Depois, fez uma pose institucional: "Acredito na harmonia, na sensibilidade e no patriotismo dos integrantes dos três Poderes da República para o momento que atravessa nossa nação. Juntos, ao lado da população brasileira e de Deus, alcançaremos nossos objetivos!"

A julgar pelo teor de suas postagens nos últimos dias, Bolsonaro estava fora de si, pois revelou-se um presidente respeitoso e de rara compostura. Seu objetivo só foi plenamente alcançado na caixa de comentários, onde seguidores atávicos cuidaram de desferir as caneladas virtuais que a liturgia do cargo o impediu de desferir. Seja como for, à luz do clima beligerante provocado pelo radicalismo dos embates políticos e ideológicos no Brasil contemporâneo, os protestos provocam desde já polêmicas, mesmo que se realizem mais no campo de mitos e fantasias do que no da realidade propriamente dita.

Na avaliação de José Nêumanne, não há por que temer efeitos deletérios, seja do ponto de vista institucional, seja do econômico ou mesmo do equilíbrio das forças políticas em luta. Normalmente, quando se fala em movimentos populares tem-se a impressão de que eles são, pela própria natureza, de protesto, ou seja, contra a autoridade instituída ou com motivo ou assunto específico que desperte a paixão popular. Tolice! Não há protestos a favor, mas não se convocam militantes ou cidadãos apartidários para a rua apenas para protestar. A História é rica em exemplos de massa na rua para apoiar políticos ou políticas, governos ou diretrizes, projetos ou posições. É perfeitamente natural que os chamados “bolsonaristas”, sejam eles correligionários, assessores ou cidadãos comuns, se reúnam para demonstrar seu apoio, sua admiração, sua adesão ou até seu afeto. Nem só de protestos vivem as ruas, mas também do clamor a favor. Por que isso não aconteceria?

Convém, então, esclarecer que eventuais passeatas favoráveis ao governo, qualquer governo, expressam sentimentos e posturas que grupos de cidadãos têm todo o direito de assumir publicamente. Dizia Winston Churchill, talvez o maior estadista mundial no século 20, que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. A frase contém a experiência de um herói que foi também um grande intelectual, um orador magnífico e um escritor muito talentoso, e descreve exatamente que a grande força dos regimes democráticos reside mais na fraqueza que no vigor. Ela lembra, por exemplo, que o regime convive e se fortalece também pelas palavras e atitudes, por mais desabridas e pesadas que sejam, de seus maiores inimigos. Pode-se lamentar esse paradoxo quando se sabe que Hitler e Mussolini brotaram e se fortaleceram em regimes democráticos e com entusiástico apoio da cidadania atuante. No entanto, mesmo podendo debilitá-lo, essa fragilidade funciona também como uma espécie de vacina para fortalecê-lo.

A prática histórica recente no Brasil é eloquente. É pouco provável que tenha havido neste país aglomerações populares maiores do que as feitas contra o status quo institucional em 2013. Em 2014, Dilma foi reeleita e as forças políticas que a apoiavam ou a ela se opunham mantiveram suas posições nas Casas do Congresso. As ruas clamaram, mas seu clamor não abalou as instituições, para o bem ou para o mal. Pode-se argumentar que o impeachment da calamidade em forma de gente mobilizou as ruas três anos depois, e foram ouvidas pelo Congresso Nacional, que a depôs, como a maioria da cidadania exigia fora de casa e dos escritórios. Mas fica a dúvida sobre até que ponto o povo provocou a deposição da chefa do governo ou comemorou o resultado da inépcia dela tanto ao provocar a ruptura quanto ao não perceber a “astúcia” de seus adversários, como gostava de dizer o personagem humorístico mexicano Chapolin Colorado.

Esse enigma nunca será decifrado, mas a verdade é que há pouco de proveitoso a tirar de uma eventual resposta satisfatória para nosso caso específico do movimento previsto para 26 deste mês. O objetivo das passeatas é fortificar o presidente eleito com 57.796.986 votos contra a investida do chamado Centrão, que passou a controlar a Câmara e, com isso, a atrapalhar seus projetos de reformas, incluída a administrativa. Os atos pró-Bolsonaro serão, no fundo, contra o trio Rodrigo Maia, Paulo Pereira da Silva e Valdemar Costa Neto, condestável sem mandato do semiparlamentarismo praticado. Se um volume espetacular de gente for à rua nos atos, contudo, o mandato do chamado Botafogo do propinoduto da Odebrecht e a influência dos outros dois não serão abalados em um milímetro sequer. Da mesma forma, a constatação de um fiasco em termos de multidão se manifestando não ampliará em um único ponto porcentual a possibilidade concreta de Bolsonaro, nas atuais circunstâncias, ter o mesmo final melancólico da ex-presidanta.

Isso não significa que êxito estrondoso e fiasco tremendo sejam hipóteses vazias. É claro que sucesso nessas manifestações propiciará, no mínimo, imagens positivas a serem usadas pelo presidente da República para provar que seu triunfo eleitoral ainda não se esgotou. Em contrapartida, um malogro tirará dele a melhor arma política que pode usar no longo e doloroso inverno a que será submetido nos próximos anos em seu convívio de conflito e desconfiança com o Centrão. Talvez pensando nisso que a deputada Janaina Paschoal, do alto dos 2 milhões de sufrágios que a fizeram a deputada mais votada da História do Brasil, divulgou sua oposição ao risco de uma aventura malograda. Ela escreveu no Twitter: Pelo amor de Deus, parem as convocações! Essas pessoas precisam de um choque de realidade. Não tem sentido quem está com o poder convocar manifestações! Raciocinem! Eu só peço o básico! Reflitam!…”.

O recado é corajoso e prudente, demonstrando duas virtudes raras em políticos brasileiros hoje. Na certa, ela já terá percebido que existe uma bolha de autossatisfação muito grande entre os adeptos de Bolsonaro nas chamadas redes sociais, e teme pelas consequências desastradas de eventual fracasso. Talvez tal bolha superestime a parcela desse eleitorado que acredita em patacoadas petistas do gênero “o povo unido jamais será vencido”. Ou quiçá ela teme que o movimento seja desvirtuado para uma fé absurda em fantasias intervencionistas de cidadãos enfurecidos ocupando as dependências do Congresso e do STF — outra instituição vista como um obstáculo ao trabalho do capitão.

Na verdade, ninguém tem condições de depor Bolsonaro devido a uma frustração das manifestações de domingo. Afinal, ele foi eleito, diplomado e empossado legitimamente, e só será defenestrado se cometer uma série especial de delitos que não são permitidos ao maior mandatário do País. Mas nem o eventual sucesso extraordinário da convocação do povo terá o condão de corrigir o erro espetacular do presidente ao deixar Rodrigo Maia ser alçado à chefia da Mesa da Câmara e Davi Alcolumbre, também do DEM e sob patrocínio do chefe de sua Casa Civil, à presidência do Senado. 

O Brasil terá de conviver sob a égide de Jair Bolsonaro por mais quatro anos, e só lhe caberá tornar esse fardo menos pesado do que promete ser. De seu lado, presidente e seus apoiadores terão de suportar a partilha do poder republicano com os parlamentares de exíguas votações no comando das duas Casas do Poder Legislativo. Resta ao capitão compreender que não poderia ter entregado a articulação do Congresso ao veterinário gaúcho, sob pena de perpetuar suas consequências funestas. O povo na rua não o libertará dos erros primários cometidos em cinco meses e meio de ventos desgovernados agitando de forma desastrada as birutas em seu campo de pouso. Mas pelo menos servirá de exemplo de força de quem realmente manda na democracia. 

Seja qual for o resultado, as manifestações poderão, quem sabe, dar ao presidente, que usa a expressão, mas parece desconhecer seu significado, a noção de que nas democracias o patrão é o cidadão. E ninguém recebe a delegação para decidir por quaisquer idiossincrasias que cidadãos devem ser privados do exercício desse poder e a quais se reserva o privilégio de seu exercício.