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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

ATÉ QUANDO VAMOS COMPRAR INGRESSOS PARA O CIRCO EM QUE SOMOS OS PALHAÇOS?



Enquanto caraminhola quem irá insultar (e em que termos o fará) no discurso de abertura assembleia geral da ONU, o Capitão Caverna precisa decidir se sanciona ou veta — integral ou parcialmente — a escabrosa proposta aprovada na Câmara, desidratada no Senado e novamente robustecida pelos deputados, que, entre outros absurdos, querem dobrar o valor destinado a financiar campanhas eleitorais e usar o dinheiro público para pagar advogados se e quando forem pegos com a boca na botija, a mão na cumbuca e o pé na jaca.

Informações de bastidores sugerem que Bolsonaro deve vetar alguns trechos, definindo a extensão do expurgo à luz da lei das compensações. O uso do veto como remédio para restaurar a imagem presidencial está virando moda. Dias atrás, o capitão compensou os ataques por ter retirado do bolso do colete o nome de Augusto Aras, e agora manuseia novos vetos como se desejasse atenuar o prejuízo resultante de sua proximidade com Fernando Bezerra, um líder radioativo. Mal comparando, é como se um sujeito se vangloriasse de ter uma perna mais comprida do que a outra. Os observadores sempre poderão realçar que a mais curta, e o esperto continuará inevitavelmente sendo um personagem manco.

O Brasil é o quarto país mais corrupto do mundo devido à leniência, à complacência e — por que não dizer — à cumplicidade entre as instituições, sobretudo o Judiciário. No Congresso, a caterva que deveria representar os cidadãos volta-se contra a vontade popular e instala uma cleptocracia controlada por chefões de organizações criminosas partidárias — tudo com a complacência e a conivência do presidente da Câmara, que orquestra votações simbólicas, que prescindem de discussões em comissões e audiências públicas. Mas não é só.

Pelo andar da carruagem, Davi Alcolumbre não tarda a atingir o grau de cinismo que Renan Calheiros levou anos para alcançar. A exemplo do cangaceiro das Alagoas, o atual presidente do Senado e do Congresso Nacional irreleva solenemente seus inquéritos no STF. Mas por que diabos se preocuparia com eles? Engavetando sistematicamente os pedidos de abertura de processos de impeachment contra Gilmar Mendes, Dias Toffoli e outros colossos supremos, o político amapaense garante uma relação satisfatória com o Judiciário, às favas com os interesses dos contribuintes, que compram ingressos para esse circo de horrores sem a menor vontade de assistir ao espetáculo para o qual são invariavelmente escalados para o papel do palhaço.

Alcolumbre não resolveu até hoje o mistério dos 82 votos na sessão que o elegeu presidente do Senado. Pior: a pretexto do tal "Pacto entre os Poderes" acertado com Bolsonaro, Maia e Toffoli para autopreservação, troca figurinhas com o oponente derrotado e posa de quintessência da moralidade, embora todos saibamos que político honesto está para nascer, que políticos não têm escrúpulos e que a corrupção se tornou o liame que une os caciques dos Três Poderes na cruzada pela preservação de cada um e do enriquecimento ilícito de seus representantes.

Observação: O TCU divulgou que, apenas em alguns empréstimos do BNDES a republiquetas amigas do lulopetismo, as grandes empreiteiras desviaram mais de R$ 20 bilhões. A Lava-Jato estima que, só no Petrolão, a corrupção rapinou dos cofres públicos quase R$ 50 bilhões.

Por envolver prefeitos e vereadores em 5570 municípios, as eleições do ano que vem demandam mais dinheiro que as de 2018. Mas num num país falido, que impõe sacrifícios à população sem lhe oferecer contrapartida, dobrar o montante que banca essa farra é flertar com a imoralidade, e se valer dessa dinheirama para pagar honorários advocatícios se e quando os pseudo representantes do povo forme pegos com as calças na mão é o cúmulo da desfaçatez! Em outras palavras, o cidadão é roubado e ainda tem de custear a defesa do ladrão.

Observação: Por 249 votos a 164, a Câmara aprovou o uso de dinheiro do fundão eleitoral para pagamento de advogados e contadores nas campanhas políticas. É mais um escárnio da proposta que flexibiliza o uso do fundo e da prestação de contas, que está sendo votado de forma fatiada pelos deputados. Ou não é o cúmulo um servidor público roubar, ser pego com a mão na massa e contratar para defendê-lo um criminalista estrelado a expensas do Erário (leia-se do dinheiro que roubou do povo)?  

Colocado em perspectiva, esse desvirtuamento das regras eleitorais e partidárias, que observado isoladamente é inaceitável, se torna inacreditável. Ao fazê-lo, o observador vê que há no picadeiro algo muito parecido com uma máquina de moer moralidade.

Além do projeto que aleija a lei da ficha-limpa, abre brecha para o caixa dois e otras cositas más, há também uma CPI da Lava-Jato, uma emenda que proíbe juízes de primeira instância de decretar medidas cautelares contra políticos graúdos, um projeto que impede auditores de comunicar indícios de crimes ao MP e uma clara tentativa de neutralizar a Lei da Ficha Limpa. Tudo isso acontece sob o olhar atento do presidente da Câmara, dublê de líder das reformas econômicas e líder do Centrão, que oferece à banda podre do Congresso auxílio para dar andamento a esse circo de horrores em troca de ajuda para aprovar as reformas.

A pergunta é: O Capitão Caverna ouvirá o clamor dos brasileiros e de bem e vetará, mesmo que parcialmente, essa pouca-vergonha? A resposta é: só Deus sabe. Há dois Bolsonaros no centro do picadeiro: o candidato, que vetaria sem pestanejar, e o chefe do Executivo, que tem rabo preso com os demais poderes desta república de bananas, quando mais não seja porque depende da boa-vontade dos senadores para emplacar Augusto Aras na PGR e o filho Eduardo na embaixada do Brasil nos EUA e da boa-vontade de Dias Toffoli et caterva para aliviar a barra do primogênito suspeito de bandalhas durante o exercício do mandato de deputado na Alerj.

Observação: Certos togados supremos cultivam o nefasto hábito de impor na marra suas vontades, interesses e conveniências proferindo decisões monocráticas em cima das quais se sentam para evitar que sejam submetidas ao escrutínio do plenário. O atual presidente da Corte parece decidido a radicalizar essa insensatez inoculando entre seus pares o vírus transmissor da autofagia, que leva os ministros a se morderem uns aos outros e mastigar a própria carne. É nesse contexto que está inserida a decisão de Edson Fachin de pautar para a próxima terça-feira, na 2ª Turma, o julgamento de uma ação penal abastecida com dados do Coaf, cuja utilização Toffoli proibiu. Aproveitando uma ação movida contra o deputado federal cearense Aníbal Gomes para antecipar um debate que o presidente do Tribunal retarda desde as férias de julho, quando deferiu sozinho um recurso de Flávio Bolsonaro e travou todos os inquéritos que correm no país com dados fornecidos pelo Coaf sem autorização judicial, o relator da Lava-Jato força a antecipação da discussão do assunto. Em instituições sérias, as regras costumam ser menos perigosas do que a improvisação. O Supremo deveria falar com o timbre forte do seu plenário, mas como a única regra em vigor na corte é o desprezo às regras, a autofagia se impõe como algo inevitável. Não resolve o problema e pode levar à automutilação, mas ajuda a plateia a não confundir certos ministros com os ministros certos.

Segundo Josias de Souza, está em curso uma reação da velha oligarquia política contra o esforço anticorrupção deflagrado há cinco anos, e Bolsonaro precisa definir de que lado irá ficar. A batida policial na residência e no gabinete do senador Fernando Bezerra, líder do governo no Senado, é mais uma evidência de que, no momento, o capitão está do lado errado.

A propósito, vale a pena reproduzir dois comentários sintomáticos. O advogado do investigado declarou que "causa estranheza à defesa do senador Fernando Bezerra Coelho que medidas cautelares sejam decretadas em razão de fatos pretéritos […]. A única justificativa do pedido [de busca e apreensão] seria em razão da atuação política e combativa do senador contra determinados interesses dos órgãos de persecução penal." Ou seja, Bezerra acha que a PF se vinga dele porque ele age para domar os órgãos de persecução penal. Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil, declarou que essa "é uma situação relativa a fatos passados, quando Bezerra era ministro de um governo anterior. Neste momento, o que o governo tem a fazer é aguardar. É uma questão individual dele, da vida pregressa dele. Ele vai ter que esclarecer junto às autoridades". Quer dizer: o Planalto avalia que o melhor a fazer é lavar as mãos. Mesmo que o resto permaneça sujo.

Onde o governo vê atenuantes não há senão agravantes. Não importa saber que as embrulhadas do senador vêm de outro governo. O mau cheiro era conhecido. E ninguém foge do fedor abraçando um gambá. O pior é que Bezerra não é o único. Há no entorno presidencial ministros investigados, um deles condenado por improbidade e, nunca é demais lembrar, um filho do presidente sob suspeita de peculato e lavagem de dinheiro.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

PSL — EM CASA ONDE FALTA PÃO, TODOS GRITAM E NINGUÉM TEM RAZÃO



Em vez de se empenhar em melhorar as relações com o Congresso em prol da aprovação das reformas que, espera-se, tirarão a economia do fundo do poço, o presidente Jair Bolsonaro especula se “não seria a hora de termos um ministro evangélico no STF” (detalhes no post de ontem). Pelo visto, o capitão acha que nossa mais alta Corte carece de pastores, não de magistrados de reputação ilibada e notável saber jurídico.

Ainda que a aprovação da reforma previdenciária sejam favas contadas — o Congresso não vai querer ser culpado de impedir o país de sair do buraco —, falta garantir, na Câmara, 308 votos entre 513 deputados divididos em experientes fisiologistas e novatos despreparados. E em matéria de articulação política o PSL é uma pérola do humor negro.

A inexperiência do deputado goiano de primeiro mandato Major Vitor Hugo se soma à absoluta falta de decoro que lhe autoriza a compartilhar alegremente, em grupos de WhatsApp, conteúdos que melindram seus pares na Câmara. Há pouco mais de um mês, o parlamentar publicou uma charge que associava articulação política a corrupção. O presidente da Câmara considerou a postagem um ataque ao Congresso, e ficou de mal do deputado pesselista — que tentou se explicar, mas Maia encerrou a reunião quando ele ainda estava falando.

Um líder do governo que não consegue dialogar com o presidente da Câmara representa à perfeição o partido do presidente — uma agremiação política sem unidade orgânica que desperdiça energia com questiúnculas e discussões miúdas. Com 54 deputados, quatro senadores e três governadores — dos quais 70% estão em primeiro mandato —, o PSL é um aglomerado de políticos que ganharam projeção por meio do ativismo digital, se elegeram na onda anti-establishment do bolsonarismo e, agora, são reféns das redes sociais que os ajudaram a chegar a Brasília.

Como desgraça pouca é bobagem — nem vou mencionar o laranjal do PSL —, o partido não é desarticulado apenas no Congresso: em São Paulo, Eduardo Bolsonaro, que substituiu o senador Major Olimpio na presidência estadual da sigla, busca preencher as vagas da executiva paulista com aliados. Zero três é o principal fiador de uma possível candidatura do apresentador José Luiz Datena à prefeitura de Sampa, com o deputado-príncipe Luiz Philippe de Orleans e Bragança de vice. O objetivo seria impedir Joice Hasselmann — com quem o filho do capitão já se estranhou publicamente mais de uma vez — de se lançar ao cargo.

Na segunda-feira 20, Eduardo se reuniu por horas com o ex-assessor e hoje deputado estadual Gil Diniz. Na pauta, a situação da deputada Jamaicana Paschoal, eleita para a Assembleia de São Paulo com mais de 2 milhões de votos, que também era cotada para concorrer à prefeitura, mas irritou o núcleo duro do bolsonarismo ao questionar a sanidade mental do presidente e as manifestações do último dia 26 — e chegou mesmo a insinuar que poderia abandonar o partido, mas depois mudou de ideia.

Segundo a revista Veja, a contrariedade de Janaína com os protestos é fácil de explicar. Se fossem um fiasco, Bolsonaro sairá desmoralizado; se fossem um sucesso, afastariam ainda mais os deputados dos partidos tradicionais, que com boa razão não engolem a pauta original da manifestação, voltada contra o STF e o Congresso. Alvo de diversos memes, Rodrigo Maia irritou-se com a hostilidade ao Legislativo contida nas chamadas originais às manifestações, e já antes disso vinha reunindo deputados do Centrão e da oposição em sua casa para discutir formas de o Congresso tomar a frente do governo em pautas econômicas centrais, como a reforma da Previdência e a reforma tributária.

O PSL não foi convidado para esses encontros. Nem poderia. Como convidar 54 deputados que só pensam em si próprios e em suas redes?

sexta-feira, 24 de maio de 2019

DOMINGO DE MANIFESTAÇÕES NO PAÍS QUE NÃO PODE DAR CERTO



Segundo O ANTAGONISTA — que às vezes exagera um pouco, mas em geral sabe das coisas —, Lula mandou o PT abandonar qualquer plano para derrubar Bolsonaro. A informação, originalmente publicada pela Folha, dá conta de que o molusco, consultado na cadeia, disse aos dirigentes petistas não ver sentido na defesa de um ”Fora, Bolsonaro”, pois seria o mesmo que clamar pela ascensão de Hamilton Mourão. O site menciona ainda que “o recado já chegou ao STF”, mas eu não sei como interpretar esse destaque da notícia. Ninguém duvida de que o criminoso de Garanhuns continua comandando sua organização criminosa de dentro da cadeia, mas daí a... bem, tirem suas próprias conclusões, e se acharem que dá para acreditar num país onde descalabros com esse acontecem, eu os saúdo, caríssimos leitores.

Ao endossar um texto segundo o qual o Brasil é "ingovernável", avalizar um vídeo em que um pastor lunático o qualifica de “enviado por Deus para consertar o país” e empurrar seus seguidores nas redes para uma manifestação anti-Congresso, Bolsonaro dá sinais de que pretende criar, no processo eleitoral brasileiro, um terceiro turno (depois de prevalecer no primeiro como candidato antissistema e despachar o lulopetismo no segundo). Todavia, se analisarmos o comportamento dos nobres deputados em relação à reforma previdenciária e ao pacote anticrime e anticorrupção, fica difícil não dar certa razão ao capitão. Na última quarta-feira, por exemplo, a Câmara, ainda que por exígua maioria, devolveu o Coaf ao ministro Paulo Guedes, temendo que, com o Conselho sob o guarda-chuva de Sérgio Moro, seu acerto de contas com a Justiça fosse antecipado. Olhando a coisa pelo lado positivo, ao menos já não há o risco de ressurreição do organograma de Michel Temer, com 29 ministérios em vez dos atuais 22.

Classificar de idiotas úteis os manifestantes que saíram às ruas para protestar contra o contingenciamento de verbas para a Educação pode ser má escolha de palavras, mas se considerarmos que uma parcela da turba era composta de baderneiros mascarados, armados com barras de ferro e coquetéis molotov, há que reconhecer que Bolsonaro tem alguma razão.

Observação: O conceito de "idiotas úteis", atribuído ao próprio Lenin, referia originalmente aos intelectuais ocidentais simpáticos ao socialismo que, alheios ao fato de que eram descartáveis para o regime de Moscou, disseminavam propaganda, desestabilizavam governos e preparavam o terreno para a revolução comunista — ou qualquer outro objetivo intermediário em prol da utopia marxista. Na Rússia, a expressão era usada em comunicações oficiais e refletia o apreço dos soviéticos por seus agentes e entusiastas. Com o passar do tempo, a definição se ampliou e passou a referenciar pessoas politicamente engajadas, mas que não se percebem como massa de manobra a serviço de um grupo. 

Aos críticos de boa-fé, bastaria conhecimento superficial da reforma previdenciária e do contingenciamento do ensino superior para abdicar de sua participação nas manifestações do último dia 15. A oposição a essas medidas é essencialmente baseada em desinformação e não resiste à matemática — ou à história recente: medidas de austeridade fiscal e cortes muito mais drásticos na Educação foram praticados nos governos lulopetistas, cujos agentes políticos agora se encontram em histérico antagonismo à atual administração. Portanto, não é equívoco nem exagero admitir que a maior parte dos insatisfeitos nas ruas foi, de fato, manipulada.

Existe, entretanto, uma diferença abissal entre constatar uma realidade e cuspi-la na cara do interlocutor. Como reflexo natural, a crítica ofensiva gera uma resposta defensiva e costuma afastar a possibilidade de diálogo. Bolsonaro tem muitas opções além do insulto para lidar com cidadãos que dele divergem politicamente. Até porque o comportamento de manada dos manifestantes de boa-fé denota um posicionamento irrefletido que ainda pode ser modificado — é questão de esclarecimento e persuasão. Falta ao presidente sensibilidade para combater os pastores, em vez de atacar o rebanho incauto.

Não se nega que, ao desqualificar um Legislativo que saiu das mesmas urnas que o consagraram, Bolsonaro realiza uma manobra burra e incoerente, segundo Josias de Souza, para quem o capitão flerta com a burrice ao injetar turbulência numa conjuntura que pede tranquilidade e demonstra incoerência ao emular gente que ele sempre abominou: no plano nacional, o esquerdista João Goulart, que acendeu o estopim do golpe militar de 1964 com suas “reformas de base”, e o pseudo caçador de marajás, populista cuja ilicitocracia lhe garantiu um pé na bunda em 1992; no internacional, Hugo Chávez e seu pupilo Nicolás Maduro, que abrilhantaram seus pendores golpistas com o verniz extraído das manifestações de rua e deu no que deu, ou melhor, no que está dando: ruína e baderna. E um presidente com cheiro de naftalina pré-64, aparência collorida e hábitos venezuelanos é tudo de que não precisamos neste momento.

É difícil prever as proporções que os atos pró-Bolsonaro atingirão, mas o simples ressurgimento daquilo que Juscelino Kubitschek chamava de "o monstro” já pôs a correr parte do centrão e o pedaço do governo pertencente à cota de Olavo de Carvalho. O protesto dos estudantes e professores, mesmo ficando anos-luz aquém das manifestações de 2013, fez o governo liberar R$ 1,587 bilhão para reforçar o orçamento da Educação. Não resolve os problemas do setor, mas atenua a impressão de descaso.

Observação: A arrecadação de impostos e contribuições federais apresentou crescimento real de 1,3% em abril, somando R$ 139 bilhões — o maior valor para o mês desde 2014. Mesmo assim, as escolas públicas não têm verba sequer para comprar giz, nem os hospitais públicos para comprar esparadrapo. Pode dar certo um país onde 50% da população não tem acesso a saneamento básico, quase 50% da água tratada é tragada por vazamentos nas tubulações das redes de abastecimento e o salário mínimo não chega a R$ 1 mil, enquanto a “empresa de palestras” de um ex-presidente corrupto e hoje presidiário faturou R$ 27 milhões em 4 anos? Nem com reza brava!   

Na definição de Juscelino, o monstro é a opinião pública. De raro em raro, a imprensa consegue interpretar seus desejos. Em situações de crise, porém, o monstro dispensa intermediários. Faz o asfalto roncar. O monstro mobilizou-se pelas diretas, derrubou um regime, pôs para correr dois presidentes da República e avalizou o esforço anticorrupção, contribuindo de maneira decisiva para mandar para a cadeia a oligarquia política e empresarial. Agora, revela-se impaciente com a incapacidade do Poder de entregar responsabilidade, estabilidade, probidade e empregos. Por enquanto, a crise está nos gabinetes. Mas o monstro informa que ela pode voltar definitivamente para as ruas. Daí o medo.

Bolsonaro pediu a seus ministros que se distanciem dos atos pró-governo marcados para o próximo domingo, solicitando-lhes, inclusive, que se abstenham de fazer convocações via redes sociais. Horas depois, ele próprio descumpriu sua orientação e voltou a enaltecer a manifestação. Ao tratar novamente do tema na noite de terça-feira, o presidente bateu duas estacas nas redes sociais — uma no cravo, para contentar os "olavetes", e outra na ferradura, para satisfazer os fardados. Primeiro, afagou o pedaço do eleitorado que ainda se dispõe a sair ao asfalto para bater bumbo por ele: "Quanto aos atos do dia 26, vejo como uma manifestação espontânea da população, que, de forma inédita, vem sendo a voz principal para as decisões políticas que o Brasil deve tomar." Depois, fez uma pose institucional: "Acredito na harmonia, na sensibilidade e no patriotismo dos integrantes dos três Poderes da República para o momento que atravessa nossa nação. Juntos, ao lado da população brasileira e de Deus, alcançaremos nossos objetivos!"

A julgar pelo teor de suas postagens nos últimos dias, Bolsonaro estava fora de si, pois revelou-se um presidente respeitoso e de rara compostura. Seu objetivo só foi plenamente alcançado na caixa de comentários, onde seguidores atávicos cuidaram de desferir as caneladas virtuais que a liturgia do cargo o impediu de desferir. Seja como for, à luz do clima beligerante provocado pelo radicalismo dos embates políticos e ideológicos no Brasil contemporâneo, os protestos provocam desde já polêmicas, mesmo que se realizem mais no campo de mitos e fantasias do que no da realidade propriamente dita.

Na avaliação de José Nêumanne, não há por que temer efeitos deletérios, seja do ponto de vista institucional, seja do econômico ou mesmo do equilíbrio das forças políticas em luta. Normalmente, quando se fala em movimentos populares tem-se a impressão de que eles são, pela própria natureza, de protesto, ou seja, contra a autoridade instituída ou com motivo ou assunto específico que desperte a paixão popular. Tolice! Não há protestos a favor, mas não se convocam militantes ou cidadãos apartidários para a rua apenas para protestar. A História é rica em exemplos de massa na rua para apoiar políticos ou políticas, governos ou diretrizes, projetos ou posições. É perfeitamente natural que os chamados “bolsonaristas”, sejam eles correligionários, assessores ou cidadãos comuns, se reúnam para demonstrar seu apoio, sua admiração, sua adesão ou até seu afeto. Nem só de protestos vivem as ruas, mas também do clamor a favor. Por que isso não aconteceria?

Convém, então, esclarecer que eventuais passeatas favoráveis ao governo, qualquer governo, expressam sentimentos e posturas que grupos de cidadãos têm todo o direito de assumir publicamente. Dizia Winston Churchill, talvez o maior estadista mundial no século 20, que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. A frase contém a experiência de um herói que foi também um grande intelectual, um orador magnífico e um escritor muito talentoso, e descreve exatamente que a grande força dos regimes democráticos reside mais na fraqueza que no vigor. Ela lembra, por exemplo, que o regime convive e se fortalece também pelas palavras e atitudes, por mais desabridas e pesadas que sejam, de seus maiores inimigos. Pode-se lamentar esse paradoxo quando se sabe que Hitler e Mussolini brotaram e se fortaleceram em regimes democráticos e com entusiástico apoio da cidadania atuante. No entanto, mesmo podendo debilitá-lo, essa fragilidade funciona também como uma espécie de vacina para fortalecê-lo.

A prática histórica recente no Brasil é eloquente. É pouco provável que tenha havido neste país aglomerações populares maiores do que as feitas contra o status quo institucional em 2013. Em 2014, Dilma foi reeleita e as forças políticas que a apoiavam ou a ela se opunham mantiveram suas posições nas Casas do Congresso. As ruas clamaram, mas seu clamor não abalou as instituições, para o bem ou para o mal. Pode-se argumentar que o impeachment da calamidade em forma de gente mobilizou as ruas três anos depois, e foram ouvidas pelo Congresso Nacional, que a depôs, como a maioria da cidadania exigia fora de casa e dos escritórios. Mas fica a dúvida sobre até que ponto o povo provocou a deposição da chefa do governo ou comemorou o resultado da inépcia dela tanto ao provocar a ruptura quanto ao não perceber a “astúcia” de seus adversários, como gostava de dizer o personagem humorístico mexicano Chapolin Colorado.

Esse enigma nunca será decifrado, mas a verdade é que há pouco de proveitoso a tirar de uma eventual resposta satisfatória para nosso caso específico do movimento previsto para 26 deste mês. O objetivo das passeatas é fortificar o presidente eleito com 57.796.986 votos contra a investida do chamado Centrão, que passou a controlar a Câmara e, com isso, a atrapalhar seus projetos de reformas, incluída a administrativa. Os atos pró-Bolsonaro serão, no fundo, contra o trio Rodrigo Maia, Paulo Pereira da Silva e Valdemar Costa Neto, condestável sem mandato do semiparlamentarismo praticado. Se um volume espetacular de gente for à rua nos atos, contudo, o mandato do chamado Botafogo do propinoduto da Odebrecht e a influência dos outros dois não serão abalados em um milímetro sequer. Da mesma forma, a constatação de um fiasco em termos de multidão se manifestando não ampliará em um único ponto porcentual a possibilidade concreta de Bolsonaro, nas atuais circunstâncias, ter o mesmo final melancólico da ex-presidanta.

Isso não significa que êxito estrondoso e fiasco tremendo sejam hipóteses vazias. É claro que sucesso nessas manifestações propiciará, no mínimo, imagens positivas a serem usadas pelo presidente da República para provar que seu triunfo eleitoral ainda não se esgotou. Em contrapartida, um malogro tirará dele a melhor arma política que pode usar no longo e doloroso inverno a que será submetido nos próximos anos em seu convívio de conflito e desconfiança com o Centrão. Talvez pensando nisso que a deputada Janaina Paschoal, do alto dos 2 milhões de sufrágios que a fizeram a deputada mais votada da História do Brasil, divulgou sua oposição ao risco de uma aventura malograda. Ela escreveu no Twitter: Pelo amor de Deus, parem as convocações! Essas pessoas precisam de um choque de realidade. Não tem sentido quem está com o poder convocar manifestações! Raciocinem! Eu só peço o básico! Reflitam!…”.

O recado é corajoso e prudente, demonstrando duas virtudes raras em políticos brasileiros hoje. Na certa, ela já terá percebido que existe uma bolha de autossatisfação muito grande entre os adeptos de Bolsonaro nas chamadas redes sociais, e teme pelas consequências desastradas de eventual fracasso. Talvez tal bolha superestime a parcela desse eleitorado que acredita em patacoadas petistas do gênero “o povo unido jamais será vencido”. Ou quiçá ela teme que o movimento seja desvirtuado para uma fé absurda em fantasias intervencionistas de cidadãos enfurecidos ocupando as dependências do Congresso e do STF — outra instituição vista como um obstáculo ao trabalho do capitão.

Na verdade, ninguém tem condições de depor Bolsonaro devido a uma frustração das manifestações de domingo. Afinal, ele foi eleito, diplomado e empossado legitimamente, e só será defenestrado se cometer uma série especial de delitos que não são permitidos ao maior mandatário do País. Mas nem o eventual sucesso extraordinário da convocação do povo terá o condão de corrigir o erro espetacular do presidente ao deixar Rodrigo Maia ser alçado à chefia da Mesa da Câmara e Davi Alcolumbre, também do DEM e sob patrocínio do chefe de sua Casa Civil, à presidência do Senado. 

O Brasil terá de conviver sob a égide de Jair Bolsonaro por mais quatro anos, e só lhe caberá tornar esse fardo menos pesado do que promete ser. De seu lado, presidente e seus apoiadores terão de suportar a partilha do poder republicano com os parlamentares de exíguas votações no comando das duas Casas do Poder Legislativo. Resta ao capitão compreender que não poderia ter entregado a articulação do Congresso ao veterinário gaúcho, sob pena de perpetuar suas consequências funestas. O povo na rua não o libertará dos erros primários cometidos em cinco meses e meio de ventos desgovernados agitando de forma desastrada as birutas em seu campo de pouso. Mas pelo menos servirá de exemplo de força de quem realmente manda na democracia. 

Seja qual for o resultado, as manifestações poderão, quem sabe, dar ao presidente, que usa a expressão, mas parece desconhecer seu significado, a noção de que nas democracias o patrão é o cidadão. E ninguém recebe a delegação para decidir por quaisquer idiossincrasias que cidadãos devem ser privados do exercício desse poder e a quais se reserva o privilégio de seu exercício.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

NÃO HÁ ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL. O BRASIL É UMA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA.



Enquanto juiz, Sérgio Moro “atuou contra os políticos”. Como sempre há um dia da caça e outro do caçador, nada interessa menos à classe política do que o sucesso do ora ministro da Justiça e Segurança Pública. Por determinação do presidente da Câmara — ele próprio enrolado na Lava-Jato —, o pacote de medidas anticrime e anticorrupção apresentado pelo ex-magistrado está sendo discutido por um grupo de trabalho formado por parlamentares de pouca expressão, e temas importantes, como a criminalização do caixa 2, foram apartados. 

Também por decisão de Rodrigo Maia, foi anexada aos projetos uma proposta de mudanças na legislação criminal apresentada ao Congresso em 2018 pelo togado supremo Alexandre de Moraes. Pelo andar da carruagem, a análise só deve terminar em setembro, quando então uma comissão especial terá dois meses para deixar o projeto em condições de ser votado. Vencidas essas etapas, se o Senado não fizer alterações que obriguem a Câmara a reexaminar o assinto, Moro poderá ver seu projeto se transformar em lei no ano que vem, se até lá ele ainda estiver no governo.

Bolsonaro não tem sido de grande ajuda — aliás, a julgar pelo que vem fazendo desde que assumiu o posto, o presidente não é de grande ajuda nem para si mesmo. Além de não mover uma palha para apressar a tramitação do projeto do ministro da Justiça, o presidente negou que lhe tivesse prometido a indicação do próximo procurador-geral (o mandato de Raquel Dodge termina em setembro), fê-lo recuar da nomeação da cientista política Ilona Szabó como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, flexibilizou a posse de armas sem levar em conta suas sugestões e não se empenhou pela manutenção do Coaf  em sua pasta. Prova disso é que na manhã da última quinta-feira uma comissão mista da Câmara e do Senado, ao analisar a Medida Provisória que montou o governo, aprovou por 14 votos a 11 a volta do Coaf para o Ministério da Economia. É certo que a medida ainda precisa ser votada no plenário da Câmara dos Deputados e no Senado, mas até aí morreu o Neves.

Observação: O personalismo de Moro ajuda a aprofundar o abismo existente entre ele e a classe política. Um dos poucos parlamentares a apoiar abertamente sua agenda no Congresso, o senador tucano Márcio Bittar resume a má vontade de Brasília: “Ele não tem bancada, não é do meio político e sendo quem é não facilita. Representa alguém que prendeu políticos. Não é um personagem agradável para a maioria no Congresso. Contrariou muitos interesses”.

A exemplo da maioria dos políticos tupiniquins, Rodrigo Maia e seu papai — o ex-prefeito do Rio e hoje vereador Cesar Maia — são investigados na Lava-Jato, e o ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência e ex-ministro de Minas e Energia no governo TemerWellington Moreira Franco, e casado com sua sogra. 

Identificado como Gato Angorá nas planilhas do departamento de propina da Odebrecht, Moreira Franco era o único ex-governador eleito e ainda vivo do Rio sem passagem pela prisão até março deste ano, quando foi preso preventivamente com o ex-presidente e o coronel Lima. Os três foram soltos depois dias depois por um desembargador que ficou afastado do cargo durante sete anos por suspeita de estelionato e formação de quadrilha, mas, na última terça-feira, 7, a 1ª Turma do TRF-2 cassou os habeas corpus que beneficiaram Temer e Lima, conquanto tenha mantido o gato gatuno em liberdade.  

No final do mês passado, o ministro Edson Fachin atendeu a um pedido da PGR que pleiteava o arquivamento de um inquérito envolvendo Rodrigo Maia e o senador Renan Calheiros — o presidente da Câmara ainda responde a outros 2 inquéritos, ao passo que o cangaceiro das Alagoas é alvo de 13 apurações. Dias atrás, Marcos Tadeu, ex-executivo da OAS, afirmou em depoimento que a empreiteira pagou propina a Cesar Maia por meio de contrato fictício com o escritório de Sérgio Bermudes — renomada banca de advogados que tem entre seus clientes Eike Batista e a mineradora Vale, e cuja sucursal em Brasília acontece de ser chefiada por Guiomar Mendes, esposa do semideus togado que o ministro Luís Roberto Barroso definiu como “uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia“ e o jornalista J.R Guzzo como “uma fotografia ambulante do subdesenvolvimento brasileiro, mais um na multidão de altas autoridades que constroem todos os dias o fracasso do país”).

Para encurtar a conversa, o pacote de medidas anticrime e anticorrupção de Sérgio Moro perdeu protagonismo devido à relevância da reforma previdenciária, que vem sendo tratada como prioridade única pelo Planalto. Apesar de as mudanças no sistema de aposentadorias serem muito mais impopulares, interlocutores do presidente dizem que a proposta do ministro, mesmo sendo positiva para o governo, não recebe igual tratamento devido à sua rejeição no Congresso, sem mencionar que o presidente Bolsonaro não gosta de dividir a ribalta com seus “superministros”. Mesmo ciente das consequências políticas de um eventual pedido de demissão de Moro — que, fora do governo, não teria dificuldades em arrumar um novo emprego com remuneração infinitamente superior à de ministro de estado —, o capitão faz questão de reafirmar que ele é quem manda, deixando claro que sombras não são bem-vindas. 

Moro se mostra resignado com as “boladas nas costas”, mas acredita que conseguirá aprovar ao menos uma parte de seu pacote, o que lhe daria reconhecimento. Depois, em não havendo outros sobressaltos, poderia assumir uma das vagas a serem abertas no Supremo durante a gestão de Bolsonaro. Reservadamente, ele diz acreditar que está no “caminho certo”, mas que os desafios são imensos. Tomara que não mude de ideia agora que perdeu o Coaf.

Para fechar em grande estilo: numa sessão marcada por momentos de tensão, o plenário supremo decidiu na tarde de ontem, por 7 a 4, declarar constitucional o decreto assinado pelo então presidente Michel Temer em 2017, beneficiando, inclusive, condenados por crimes do colarinho branco ao entender que o indulto é um ato privado do presidente da República, não cabendo ao Judiciário definir ou rever as regras estabelecidas pelo chefe do Executivo. Lula não será beneficiado, porque só começou a cumprir pena em 2018, ao ser condenado pelo TRF-4.

Eis aí mais uma decisão tomada por togados supremos que acham perfeitamente normal, num país com 13 milhões de desempregados e um salário mínimo "de fome", fazer uma licitação de R$ 1,3 milhão para comprar medalhões de lagosta e vinhos importados — e somente os premiados — para as refeições servidas pela Corte. O ministério público do TCU pediu a suspensão, o pedido foi acatado pela juíza Solange Salgado, da 1ª Vara Federal em Brasília (para quem a licitação afronta o princípio da moralidade administrativa) mas a AGU recorreu e o vice-presidente do TRF-1 cassou a decisão e liberou a boca-livre. País de merda, este nosso, e povo de merda esse que aceita bovinamente essa bandalheira toda com o suado dinheiro dos impostos. Depois vem deputado de esquerda dizer que a reforma da Previdência vai matar de fome os mais pobres. Demorô! Quem vota nessa corja merece bem mais que isso.

Como disse o zero três, "bastam um soldado e um cabo...". Às vezes, fico pensando se isso não vai acabar acontecendo, pois é público e notório que uma banda podre... enfim, a tendência é a coisa mudar naturalmente, conforme os atuais integrantes forem se aposentando (Celso de Mello e Marco Aurélio completam 75 anos em 2021, ainda no governo Bolsonaro, portanto), mas se a mudança será para melhor vai depender de quem os substituirá. Mas isso é conversa para outra hora.



segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O BRASIL ENTRE A CRUZ E A CALDEIRINHA



Nicolás Maduro rompeu relações diplomáticas com Bogotá no último sábado, depois de soldados venezuelanos dispararem balas de borracha e atirarem bombas de gás contra manifestantes que, na fronteira, exerciam pressão para garantir a entrada da ajuda humanitária que se deslocou em caminhões da Colômbia. Juan Guaidó, que dezenas de países reconhecem como o presidente interino da Venezuela, busca contribuições da Colômbia, do Brasil e também de Curaçao para enfrentar a profunda crise econômica e a escassez sofrida pela nação petroleira. Maduro está cavando a própria sepultura. E não vai "vai cair de maduro", se me permitem o trocadilho, mas de podre. Enfim, sigamos em frente.

Nos filmes das décadas de 50 e 60, jornaleiros (geralmente meninos) postavam-se nas esquinas e, ao gritos de “Extra!”, “Extra!”, apregoavam edições extraordinárias com manchetes bombásticas. Também era comum vermos o editor do jornal — quase sempre careca e com um charuto meio mastigado no canto da boca — mandado "parar as rotativas" diante de um furo de reportagem. O que isso tem a ver com a postagem de hoje? Nada. Mas essas imagens me cruzaram à mente quando li uma manchete “quase epifânica” publicada pelo Estadão: EX-ASSESSOR DE FLÁVIO DAVA PARTE DO SALÁRIO PARA QUEIROZ!!! (para ler a matéria, clique aqui )

Quer dizer, então, que havia mesmo pedágio no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj? Nossa! Só faltou dizer isso é um fato inédito — como sabemos, a despeito de ser ilegal e imoral, o pedágio é uma prática quase tão velha quanto a própria política. Aliás, política e lisura, se não são conceitos mutuamente excludentes, são tão imiscíveis quanto óleo e água. Mas no país do futuro que nunca chega a corrupção se institucionalizou a tal ponto que, como diria minha avó, “contando, ninguém acredita”. Basta uma rápida pesquisa no Google para ver quantos deputados e senadores que estão no Congresso deveriam estar atrás das grades (e só não estão devido ao empenho de alguns de nossos ministros supremos em preservar o instituto da impunidade).

O descrédito em relação à política e aos políticos não vem de hoje e tampouco é exclusividade tupiniquim. Mas, aqui, sempre que surge uma luz no fim do túnel, ou é miragem, ou é o farol da locomotiva. Em maio de 2016, achamos que o afastamento da anta sacripanta poria um ponto final nos 13 anos, 4 meses e 12 dias de corrupção lulopetista. Mas alegria de pobre dura pouco: o ministério de notáveis prometido pelo vice promovido a titular não tardou a se revelar uma notável agremiação de corruptos. O hoje ex-senador Romero Jucá — que, a exemplo de Renan Calheiros e outros mais, encarna tudo o que não presta na “velha política” — durou uma semana e meia no comando da pasta do Planejamento. Na sequência, caíram Fabiano Silveira (que durou 18 dias no Ministério da Transparência) e Henrique Eduardo Alves (35 dias na pasta do Turismo).

Outros ministros foram caindo feito moscas, a razão de um por mês, em média, até que o vampiro do Jaburu, pego no contrapé pela gravação de sua conversa nada republicana com o açougueiro que ficou bilionário durante as gestões de Lula e Dilma, mandou às favas os escrúpulos, despiu a fantasia de virtuoso e torrou seu considerável capital político na compra do apoio das marafonas do parlamento para sepultar as denúncias apresentadas contra si pelo então procurador-geral Rodrigo Janot. Isso depois de ter afirmado enfaticamente que, litteris: 

A investigação pedida pelo Supremo Tribunal Federal será território onde surgirão todas as explicações, e no Supremo demonstrarei não ter nenhum envolvimento com estes fatos. (...) Não renunciarei. Repito. Não renunciarei”.

Como não poderia deixar de ser, Temer se tornou refém da Câmara dos Corruptos e, vergado sob o peso de uma impopularidade sem precedentes, terminou seu mandato-tampão como um “lame duck” (ou pato manco, que é como os americanos se referem a políticos que chegam ao fim mandato desgastados a ponto de os garçons palacianos demonstrarem seu desprezo servindo-lhes o café frio).

Em 2018, durante o primeiro turno da eleição presidencial mais conturbada da história desta Banânia, nosso “esclarecidíssimo eleitorado” (entre aspas e com todas as ironias de estilo) descartou os insossos candidatos “de centro”, ignorou (felizmente) aberrações como o Cabo Daciolo, Guilherme Boulos, Vera Lucia e afins e convocou os dois “extremados” para disputar o segundo turno. Diante da perspectiva nada alvissareira de o Brasil voltar a ser governado pelo PT e seus satélites — desta feita a partir de uma cela de prisão, no melhor estilho comandante-em-chefe do PCC —, milhões de não-eleitores de Bolsonaro ficaram sem alternativa que não se aliarem aos bolsomínions.

Claro que ninguém (ninguém minimamente racional, bem entendido) acreditaria que o deputado-capitão, com quase 30 anos de janela na Câmara Federal, tivesse um passado ilibado como o da Madre Tereza de Calcutá. Mas poucos imaginavam que seu governo viria a ser sistematicamente desestabilizado pelo “fogo amigo” disparado pelos “príncipes herdeiros”, que usam suas contas no Twitter como metralhadoras giratórias sem controle. Ou que o Presidente em pessoa fosse dado a enxergar complôs e deslealdades em cada esquina.

Desde a campanha que Bolsonaro reclama de supostas conspirações orquestradas por inimigos declarados e imaginários. Empossado, passou a desconfiar de traições também de integrantes graduados do governo. Como se não bastasse, mostrou-se inabilidoso em momentos de crise: a demissão de Bebianno, que contou com a participação decisiva de zero dois, só ganhou relevância graças à maneira canhestra com que o Presidente tratou o caso (quando bastaria ter "tirado as crianças da sala e dado ouvidos aos adultos", se é que me faço entender). Nos primeiros dez dias de governo, ele fez três anúncios públicos que logo foram corrigidos por seus auxiliares, e enfileiro declarações desencontradas sobre a mudança da embaixada brasileira em Israel, a instalação de uma base militar americana no Brasil e a extinção da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

No episódio gerou a crise “que só não existiu no 'mundo real' do ministro da Justiça e Segurança Pública”, pouco importa se Carluxo fez “macumba psicológica”, se agiu envenenado pelo ciúme, deslumbrado pelo poder ou ressentido por não ter ganhado um cargo no governo. O que preocupa é a inabilidade demonstrada pelo Presidente e pelo alto escalão do governo para lidar com a situação, e, por que não dizer, o arrepiante déjà-vu proporcionado pela demissão de um ministro depois de míseros 48 dias no cargo, e, pior, de o pivô desse salseiro não ser a oposição, mas um dos “príncipes herdeiros”, que, num passe de mágica, transformou o advogado, articulador da campanha, factótum e amigo do peito do pai em homem-bomba com potencial para jogar um trem de merda no ventilador e apontá-lo para o núcleo do governo.

O Planalto afirma que isso é página virada, que a questão foi superada, e que a Velhinha de Taubaté já psicografou um post dizendo que acredita. Tomara que ela esteja certa. Errar faz parte do aprendizado, mas quem não aprende com os erros que comete está fadado a repeti-los. E insistir no erro esperando que uma hora ele se transforme em acerto é a melhor definição de cretinice que eu conheço.

É por essas e outras que os brasileiros de bem perderam a fé na política e nos políticos. Claro que isso não se aplica aos devotos da seita do inferno, cuja fidelidade canina ao presidiário de Curitiba não lhes permitiria raciocinar nem se tivessem um mísero par de neurônios funcionais. Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer dos defensores atávicos de Bolsonaro, dada a dificuldade que eles têm de perceber que algo cheira mal no reino da Dinamarca, ou melhor, no Palácio do Planalto. Para os demais, fica difícil levar a sério um Congresso que funciona de terça a quinta e só reúne quórum quando a pauta interessa diretamente aos nobres congressistas. Onde deputados — supostamente representantes do povo — se comportam como galos de rinha durante as sessões, formando blocos fisiologistas e clientelistas, sem qualquer viés ideológico, para aprovar ou derrubar projetos em troca de cargos, verbas e emendas parlamentares.

E o que dizer do Judiciário — o derradeiro depositário das nossas esperanças —, se ministros supremos se digladiam diante das câmeras e promovem barracos que constrangeria até as marafonas de um puteiro de quinta classe? Salvo raras e honrosas exceções, suas excelências têm deixado claro que priorizam os próprios interesses e, se calhar, concedem parte de seu precioso tempo, como quem atira migalhas aos pombos, às questões que realmente interessam à nação. Depois, quando são confrontados pelos cidadãos inconformados em ver criminosos condenados deixarem a cadeia pela porta da frente (caso de Jacob Barata, Paulo Maluf, José Dirceu e tantos outros), zombando da lei e escarnecendo da população que roubaram descaradamente por anos a fio, mandam a PF prender os insurrectos — como fez Ricardo Lewandowsky em dezembro do ano passado, ao sentir “ofendido” pelo advogado Cristiano Caiado Acioli (durante um voo de São Paulo para Brasília), embora o “ofensor” tivesse apenas exercido seu direito constitucional de dizer como se sentia em relação ao STF e a vergonha que tinha de ser brasileiro.

Isso nos leva a Gilmar Mendes, o superministro supremo e autodeclarado representante de Deus na Terra, que, se não bastassem os péssimos serviços que preta à nação, vem atirando contra tudo e contra todos depois que a Receita Federal apontou indícios de lavagem de dinheiro nas movimentações financeiras dele e de sua digníssima esposa. 

Para não encompridar ainda mais esta matéria, os detalhes ficam para amanhã (a quem interessar possa, eu já publiquei algumas considerações interessantes sobre os ministros do Supremo — para acessá-las, clique aqui e aqui).