segunda-feira, 23 de setembro de 2019

ATÉ QUANDO VAMOS COMPRAR INGRESSOS PARA O CIRCO EM QUE SOMOS OS PALHAÇOS?



Enquanto caraminhola quem irá insultar (e em que termos o fará) no discurso de abertura assembleia geral da ONU, o Capitão Caverna precisa decidir se sanciona ou veta — integral ou parcialmente — a escabrosa proposta aprovada na Câmara, desidratada no Senado e novamente robustecida pelos deputados, que, entre outros absurdos, querem dobrar o valor destinado a financiar campanhas eleitorais e usar o dinheiro público para pagar advogados se e quando forem pegos com a boca na botija, a mão na cumbuca e o pé na jaca.

Informações de bastidores sugerem que Bolsonaro deve vetar alguns trechos, definindo a extensão do expurgo à luz da lei das compensações. O uso do veto como remédio para restaurar a imagem presidencial está virando moda. Dias atrás, o capitão compensou os ataques por ter retirado do bolso do colete o nome de Augusto Aras, e agora manuseia novos vetos como se desejasse atenuar o prejuízo resultante de sua proximidade com Fernando Bezerra, um líder radioativo. Mal comparando, é como se um sujeito se vangloriasse de ter uma perna mais comprida do que a outra. Os observadores sempre poderão realçar que a mais curta, e o esperto continuará inevitavelmente sendo um personagem manco.

O Brasil é o quarto país mais corrupto do mundo devido à leniência, à complacência e — por que não dizer — à cumplicidade entre as instituições, sobretudo o Judiciário. No Congresso, a caterva que deveria representar os cidadãos volta-se contra a vontade popular e instala uma cleptocracia controlada por chefões de organizações criminosas partidárias — tudo com a complacência e a conivência do presidente da Câmara, que orquestra votações simbólicas, que prescindem de discussões em comissões e audiências públicas. Mas não é só.

Pelo andar da carruagem, Davi Alcolumbre não tarda a atingir o grau de cinismo que Renan Calheiros levou anos para alcançar. A exemplo do cangaceiro das Alagoas, o atual presidente do Senado e do Congresso Nacional irreleva solenemente seus inquéritos no STF. Mas por que diabos se preocuparia com eles? Engavetando sistematicamente os pedidos de abertura de processos de impeachment contra Gilmar Mendes, Dias Toffoli e outros colossos supremos, o político amapaense garante uma relação satisfatória com o Judiciário, às favas com os interesses dos contribuintes, que compram ingressos para esse circo de horrores sem a menor vontade de assistir ao espetáculo para o qual são invariavelmente escalados para o papel do palhaço.

Alcolumbre não resolveu até hoje o mistério dos 82 votos na sessão que o elegeu presidente do Senado. Pior: a pretexto do tal "Pacto entre os Poderes" acertado com Bolsonaro, Maia e Toffoli para autopreservação, troca figurinhas com o oponente derrotado e posa de quintessência da moralidade, embora todos saibamos que político honesto está para nascer, que políticos não têm escrúpulos e que a corrupção se tornou o liame que une os caciques dos Três Poderes na cruzada pela preservação de cada um e do enriquecimento ilícito de seus representantes.

Observação: O TCU divulgou que, apenas em alguns empréstimos do BNDES a republiquetas amigas do lulopetismo, as grandes empreiteiras desviaram mais de R$ 20 bilhões. A Lava-Jato estima que, só no Petrolão, a corrupção rapinou dos cofres públicos quase R$ 50 bilhões.

Por envolver prefeitos e vereadores em 5570 municípios, as eleições do ano que vem demandam mais dinheiro que as de 2018. Mas num num país falido, que impõe sacrifícios à população sem lhe oferecer contrapartida, dobrar o montante que banca essa farra é flertar com a imoralidade, e se valer dessa dinheirama para pagar honorários advocatícios se e quando os pseudo representantes do povo forme pegos com as calças na mão é o cúmulo da desfaçatez! Em outras palavras, o cidadão é roubado e ainda tem de custear a defesa do ladrão.

Observação: Por 249 votos a 164, a Câmara aprovou o uso de dinheiro do fundão eleitoral para pagamento de advogados e contadores nas campanhas políticas. É mais um escárnio da proposta que flexibiliza o uso do fundo e da prestação de contas, que está sendo votado de forma fatiada pelos deputados. Ou não é o cúmulo um servidor público roubar, ser pego com a mão na massa e contratar para defendê-lo um criminalista estrelado a expensas do Erário (leia-se do dinheiro que roubou do povo)?  

Colocado em perspectiva, esse desvirtuamento das regras eleitorais e partidárias, que observado isoladamente é inaceitável, se torna inacreditável. Ao fazê-lo, o observador vê que há no picadeiro algo muito parecido com uma máquina de moer moralidade.

Além do projeto que aleija a lei da ficha-limpa, abre brecha para o caixa dois e otras cositas más, há também uma CPI da Lava-Jato, uma emenda que proíbe juízes de primeira instância de decretar medidas cautelares contra políticos graúdos, um projeto que impede auditores de comunicar indícios de crimes ao MP e uma clara tentativa de neutralizar a Lei da Ficha Limpa. Tudo isso acontece sob o olhar atento do presidente da Câmara, dublê de líder das reformas econômicas e líder do Centrão, que oferece à banda podre do Congresso auxílio para dar andamento a esse circo de horrores em troca de ajuda para aprovar as reformas.

A pergunta é: O Capitão Caverna ouvirá o clamor dos brasileiros e de bem e vetará, mesmo que parcialmente, essa pouca-vergonha? A resposta é: só Deus sabe. Há dois Bolsonaros no centro do picadeiro: o candidato, que vetaria sem pestanejar, e o chefe do Executivo, que tem rabo preso com os demais poderes desta república de bananas, quando mais não seja porque depende da boa-vontade dos senadores para emplacar Augusto Aras na PGR e o filho Eduardo na embaixada do Brasil nos EUA e da boa-vontade de Dias Toffoli et caterva para aliviar a barra do primogênito suspeito de bandalhas durante o exercício do mandato de deputado na Alerj.

Observação: Certos togados supremos cultivam o nefasto hábito de impor na marra suas vontades, interesses e conveniências proferindo decisões monocráticas em cima das quais se sentam para evitar que sejam submetidas ao escrutínio do plenário. O atual presidente da Corte parece decidido a radicalizar essa insensatez inoculando entre seus pares o vírus transmissor da autofagia, que leva os ministros a se morderem uns aos outros e mastigar a própria carne. É nesse contexto que está inserida a decisão de Edson Fachin de pautar para a próxima terça-feira, na 2ª Turma, o julgamento de uma ação penal abastecida com dados do Coaf, cuja utilização Toffoli proibiu. Aproveitando uma ação movida contra o deputado federal cearense Aníbal Gomes para antecipar um debate que o presidente do Tribunal retarda desde as férias de julho, quando deferiu sozinho um recurso de Flávio Bolsonaro e travou todos os inquéritos que correm no país com dados fornecidos pelo Coaf sem autorização judicial, o relator da Lava-Jato força a antecipação da discussão do assunto. Em instituições sérias, as regras costumam ser menos perigosas do que a improvisação. O Supremo deveria falar com o timbre forte do seu plenário, mas como a única regra em vigor na corte é o desprezo às regras, a autofagia se impõe como algo inevitável. Não resolve o problema e pode levar à automutilação, mas ajuda a plateia a não confundir certos ministros com os ministros certos.

Segundo Josias de Souza, está em curso uma reação da velha oligarquia política contra o esforço anticorrupção deflagrado há cinco anos, e Bolsonaro precisa definir de que lado irá ficar. A batida policial na residência e no gabinete do senador Fernando Bezerra, líder do governo no Senado, é mais uma evidência de que, no momento, o capitão está do lado errado.

A propósito, vale a pena reproduzir dois comentários sintomáticos. O advogado do investigado declarou que "causa estranheza à defesa do senador Fernando Bezerra Coelho que medidas cautelares sejam decretadas em razão de fatos pretéritos […]. A única justificativa do pedido [de busca e apreensão] seria em razão da atuação política e combativa do senador contra determinados interesses dos órgãos de persecução penal." Ou seja, Bezerra acha que a PF se vinga dele porque ele age para domar os órgãos de persecução penal. Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil, declarou que essa "é uma situação relativa a fatos passados, quando Bezerra era ministro de um governo anterior. Neste momento, o que o governo tem a fazer é aguardar. É uma questão individual dele, da vida pregressa dele. Ele vai ter que esclarecer junto às autoridades". Quer dizer: o Planalto avalia que o melhor a fazer é lavar as mãos. Mesmo que o resto permaneça sujo.

Onde o governo vê atenuantes não há senão agravantes. Não importa saber que as embrulhadas do senador vêm de outro governo. O mau cheiro era conhecido. E ninguém foge do fedor abraçando um gambá. O pior é que Bezerra não é o único. Há no entorno presidencial ministros investigados, um deles condenado por improbidade e, nunca é demais lembrar, um filho do presidente sob suspeita de peculato e lavagem de dinheiro.