terça-feira, 16 de julho de 2019

O NEPOTISMO E O EMBAIXADOR EDUARDO BOLSONARO



O termo nepotismo (do latim nepos, que significa sobrinho, neto ou descendentes) designava originalmente às relações do papa com seus parentes, mas logo passou a ser usado no âmbito corporativo e na esfera da política — onde abundam “cargos de confiança” — para referenciar a nomeação parentes, amigos e outros protegidos em detrimento de pessoas mais qualificadas para o exercício das funções. Essa prática, digamos, imoral aportou no Brasil com a esquadra de Cabral: em sua famosa carta a D. Manuel, “O Venturoso”, o escriba Pero Vaz de Caminha pediu ao rei português um emprego para o genro.

Jair Bolsonaro não vê como nepotismo a indicação do filho Eduardo para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. O fato de o diplomata Sergio Amaral ter sido ejetado da poltrona há três meses e o assento ter ficado vago desde então, aguardando o pimpolho presidencial completar 35 anos (idade mínima estabelecida por lei para que alguém assuma a chefia de uma missão diplomática permanente) não quer dizer nada. Sem mencionar suas credenciais, nas palavras do próprio presidente:  “O garoto fala inglês, fala espanhol, tem uma vivência no mundo todo, é amigo da família do presidente Donald Trump”. Ou nas do próprio Eduardo, que saiu em defesa de sua indicação: “Não sou um filho de deputado que está do nada vindo a ser alçado a essa condição, tem muito trabalho sendo feito, sou presidente da Comissão de Relações Exteriores, tenho uma vivência pelo mundo, já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos, no frio do Maine, estado que faz divisa com o Canadá, no frio do Colorado, em uma montanha lá, aprimorei o meu inglês, vi como é o trato receptivo do norte-americano com os brasileiros”.

É possível que o presidente não conheça o significado de nepotismo. Como não conhece a dimensão da obra de João Gilberto. Só por insistência de repórteres que acabou dizendo algo a respeito da morte do pai da Bossa Nova, embora tenha lamentado no Twitter a morte de um certo MC Reaça, portador de “um grande talento”, e afirmado que seria sempre lembrado “por seu amor pelo Brasil”. Sobre João Gilberto, diante dos pedidos, limitou-se a um sumário: “Era uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá o.k.?”.

Bolsonaro foi contemplado com atributos de bom tamanho, como a sorte que o levou de improvável candidato a vencedor da eleição, mas a alma é pequena. O nome “João Gilberto” pode lhe ter disparado repetidos sinais de alarme: “arte”, “cultura”, talvez até mesmo “esquerda”, e ainda por cima, dado o alcance internacional do falecido, “cosmopolitismo” e “globalismo” — um coquetel de explodir-lhe a cabeça. Ou talvez Bolsonaro nem conhecesse o cantor. A Garota de Ipanema, no cânone presidencial, não vale os versos de MC Reaça: “As mina de direita são as top mais bela / Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela”.

Voltando a zero três e a embaixada nos EUA, a coisa pegou tão mal que o general Luiz Eduardo Ramos, que ainda nem esquentou a cadeira de ministro da Secretaria de Governo, censurou o presidente durante café da manhã com jornalistas. Ele disse que Bolsonaro “se apressou” ao anunciar a indicação e que a divulgação da notícia em meio à votação da reforma da Previdência reforçou as críticas da oposição. Palavras do general: “Deu polêmica, reconheço, saiu na imprensa. Agora vamos aguardar. Poderia ter anunciado na semana que vem? Talvez, durante o recesso parlamentar. Vários deputados citaram essa nomeação, podia ter evitado”. 

O general relativizou o anúncio, como se Bolsonaro estivesse sob pressão para recuar da ideia, e citou outros recuos do presidente após uma enxurrada de críticas. Lembrou que a ideia de transferir de Telavive para Jerusalém a embaixada do Brasil em Israel perdeu força depois que os países árabes ameaçaram suspender a compra de produtos brasileiros se isso acontecesse. “Meu amigo Bolsonaro tem esses momentos”, concedeu o general que mais se empenhou dentro do Alto Comando do Exército para que seus colegas de farda apoiassem a candidatura do capitão. Seja como for, Ramos achou por bem elogiar zero dois, chamando-o de “um jovem preparado” — só não disse no quê — e afirmando que sua eventual nomeação para embaixador “não contraria a lei”. Há controvérsias, como veremos a seguir.

Dado o ineditismo do caso — nenhum outro presidente brasileiro indicou o próprio filho para ser embaixador em outro país — as opiniões divergem. Até porque não existe lei que explicite o que é nepotismo. No STF, a Súmula 13 estabelece que: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o 3º grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”

Segundo José Nêumanne, não é preciso consultar as leis, ir ao STF ou recorrer ao Senado. À falta de um dicionário, que, ao que parece, o presidente nunca se deu ao trabalho de consultar, Carlos Bolsonaro, o zero dois, pode lhe prestar uma informação lendo o significado da palavra, que significa “favoritismo de parente principalmente em cargo público”. Como o candidato relacionou em sua experiência ter feito intercâmbio e fritado hambúrgueres no Maine, é o caso de perguntar se é uma piada ou um achincalhe.

Para que zero três assuma o cargo, sua indicação deve ser aprovada pela Comissão de Assuntos Internacionais do Senado e, depois, pelo plenário da Casa. Em tese, isso afasta a pecha de nepotismo, já que ao presidente cabe apenas indicar; a aprovação fica a cargo do Legislativo, que é um poder independente. Mas isso não muda o fato de que o Chefe da Missão diplomática é a principal autoridade do Brasil no Estado onde reside e representa diretamente o Presidente da República em uma competência que lhe é privativa, qual seja a de manter relações com Estados estrangeiros. Assim, indicar uma pessoa que não tem especialização na área tende a ser vista como violação ao princípio Constitucional da eficiência. 

Em vídeo divulgado no último sábado, Eduardo voltou a defender a indicação: "Eu tenho um certo gabarito, e é isso que me dá respaldo para essa possibilidade de nomeação", declarou, esforçando-se para adensar as credenciais que exibira na entrevista concedida na véspera. Comparado ao processo de seleção do Instituto Rio Branco, que forma os diplomatas, o concurso para escrivão da Polícia Federal (que zero três prestou e no qual foi aprovado) é um asterisco. A embaixada em Washington costuma ser chefiada por diplomatas que têm de carreira mais tempo do que o caçula do presidente tem de vida. Sérgio Amaral, que foi afastado em abril, atuou como diplomata em Paris, Bonn, Genebra e na própria capital americana antes de comandar a embaixada do Brasil nos EUA.

A despeito de todas as circunstâncias que o rodeiam, o deputado não se dá por achado: "Se parar para reparar, se somar isso tudo [Direito na UFRJ, concurso para escrivão, pós em economia, o inglês, o espanhol], viagens internacionais que fiz com o presidente Bolsonaro, como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, eu tenho um certo gabarito, e é isso que me dá respaldo para essa possibilidade de nomeação". Ele afirma ainda que, depois da eleição do seu pai, fez o que chamou de "rodada" de encontros com investidores americanos — mas não cita nenhum. Lembra no vídeo episódio ocorrido na visita do seu pai à Casa Branca, quando seu "trabalho internacional" foi elogiado por Donald Trump, e diz ter “certo gabarito” para ser embaixador, mas, perguntado, não foi capaz de citar nominalmente um único embaixadores que atuou em Washington desde 2003.

Zero três foi enviado à Câmara pelos votos de mais de 1,8 milhão de eleitores de São Paulo. "O que pensam os quase dois milhões de eleitores do deputado?", indagou Janaína Paschoal no Twitter. E acrescentou: "Quem fez Eduardo Bolsonaro deputado federal foi o povo. Isso precisa ser respeitado. Crescer, muitas vezes, implica dizer não ao pai". Na opinião de Olavo de Carvalho, a ida para Washington levaria à "destruição da carreira" do filho do presidente.

Segundo Josias de Souza, essa é imprópria porque a acomodação de um filho em posto público de tal relevância é coisa de autocrata nepotista, insultuosa porque o presidente preterirá inúmeros embaixadores à disposição nos quadros do Itamaraty, e desrespeitosa porque o deputado jogará no lixo os votos de 1,8 milhão de eleitores paulistas, renunciando ao mandato.

Mudando de pato pra ganso: