Também para surpresa de ninguém, outros decretos publicados
no Diário Oficial de ontem promoveram ao grau de Grã-Cruz no
quadro ordinário da Ordem do Mérito da Defesa o ministro das Relações
Exteriores, Carlos Alberto Franco França, e laurearam com a Ordem do Mérito
Naval os presidentes da Câmara Federal e do Senado, que acontecem de
ser, respectivamente, o deputado-réu
Arthur Lira e o senador
antilavajatista Rodrigo Pacheco.
Tampouco causa espécie o pior mandatário desde a redemocratização
desta republiqueta de bananas — com a possível exceção da petista Dilma
Rousseff, a insuperável — ter enaltecido os “relevantes serviços
prestados” pelo pior ministro da Saúde que o Brasil já teve desde o
golpe militar que os compêndios de história classificam de Proclamação da
República. Para quem perdeu esse capítulo da novela, relembro que Bolsonaro,
às vésperas de entregar ao Centrão a cabeça de seu esbirro, referiu-se a
ele como “um
tremendo gestor”.
O presidente pode achar o que quiser e condecorar quem bem
entender, até porque já fez — e continua fazendo — coisas muito piores. Mas
tecer loas à gestão do ex-interventor da Saúde é cuspir (mais uma vez) na cara dos
brasileiros. Senão vejamos.
Em maio do ano passado, depois que o ortopedista Luiz
Henrique Mandetta foi
exonerado e seu sucessor, o oncologista Nelson Teich, pediu
demissão, Pazuello assumiu interinamente o ministério da Saúde sem
sequer saber o que era SUS.
Naquela época, o coronavírus havia causado cerca de 15 mil mortes no Brasil. Em
setembro, mês em que o general-vassalo do capitão-suserano foi efetivado, mais
de 130 mil brasileiros tinham sido vitimados pela pandemia, e em março, quando ele foi finalmente apeado do posto, o número de vítimas fatais passava de
300 mil.
Nesse entretempo, Pazuello transformou o ministério
em cabide de fardas. Seu primeiro ato oficial como interino foi cumprir a ordem
do chefe cuja recusa provocou a saída de seus antecessores: autorizar
o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina no tratamento da Covid.
Sua gestão, pautada pela mais absoluta inabilidade, foi uma sequência de omissões
trágicas e erros elementares de administração, entre os quais entregar dezenas
de cargos-chave para outros militares e se aconselhar com figuras como o dono
de uma rede de escolas de inglês e um marqueteiro
que se autodeclara “palestrante motivacional e hipnólogo”.
Sob o comando de Pazuello, milhões de testes RT-PCR
não utilizados perderem
a validade. Depoentes convocados pela CPI do Genocídio revelaram
que o ministério da Saúde ignorou pelo
menos 10 emails enviados pela Pfizer. O suposto expert em logística
jamais se preocupou em abastecer as prateleiras do SUS com seringas
hipodérmicas, agulhas e outros insumos necessários à vacinação em massa
dos brasileiros.
Em outubro, quando negociou compra de 46 milhões de
doses da CoronaVac — uma de suas poucas decisões acertadas — e foi
desautorizada por Bolsonaro, o general-vassalo resumiu em poucas
palavras seu patético papel de marionete do capitão-suserano: “Senhores,
é simples assim: um manda e o outro obedece”.
Questionado sobre o calendário de vacinação, Pazuello
garantiu que a população começaria
a ser imunizada em dezembro. No espaço de poucos dias, mudou a previsão
várias vezes. Pressionado pelo STF, apresentou um plano mal-ajambrado,
sem datas nem informações precisas sobre protocolos de segurança e baseado em doses
de imunizantes que nunca seriam compradas — sem mencionar que cientistas
citados como colaboradores negaram ter participado dessa tragicomédia.
Em janeiro, enquanto o mundo assistia estarrecido ao
segundo colapso
do sistema de saúde em Manaus — somada
à escassez de leitos de UTI, a falta de oxigênio hospitalar resultou
na morte de centenas de manauaras por asfixia — o ministro-general e a
secretária Mayra Pinheiro, mais conhecida como Capitã Cloroquina, distribuíam kits-covid
e anunciavam o lançamento de um aplicativo criado para estimular
o consumo de hidroxicloroquina e outros itens do tratamento
bolsonarista até para bebês.
Informado por uma cunhada de que o irmão não tinha
oxigênio sequer para passar o dia, o luminar da logística respondeu: “Você
e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio e ser distribuído. Não tem o que
fazer. Então, vamos com calma.” Perguntado sobre o calendário de
vacinação, sentenciou: “Vai
começar no dia D, na hora H” — uma fala que acabaria simbolizando a
falta de organização de sua tétrica administração. E ainda questionou,
irritado, o motivo de “tanta
ansiedade, tanta angústia”. Como se milhares de brasileiros perderem a
vida todos os dias para o vírus maldito fosse a coisa mais natural deste mundo.
No final do ano passado, enquanto o ministério da Saúde
não tinha sequer encomendado as seringas necessárias à vacinação da população,
o governador João Dória já havia criado um cronograma estabelecendo
o início da imunização dos paulistas para 25 de janeiro, aniversário da capital
do Estado. Depois que o tucano divulgou essa informação, o governo federal resolveu
finalmente se mexer. Pazuello, que se negara a receber os
executivos da Pfizer, afirmou ter autorizado a compra de 70 milhões
de doses. Só que a essa a altura a Pfizer não tinha mais condições
atender a essa demanda no curto prazo.
Sem estratégia unificada de combate à pandemia, o
Brasil se transformou num criadouro de variantes mais contagiosas do coronavírus
e numa
ameaça global aos olhos da imprensa internacional. A falta de
coordenação levou os governos estaduais a tentar comprar eles mesmos o
imunizante. E o que fez o governo federal? Interveio para atrapalhar a “manobra”
dos governadores.
Falo no governo federal, não no ministério da Saúde,
porque o Pazuello jamais passou de um preposto do presidente. Até as
emas do Alvorada já sabiam disso, mas foi preciso instalar uma CPI para
que os parlamentares se dessem conta de tamanho descalabro.
A gestão de Pazuello não poderia ter sido pior,
mas quem ditou as regras e estabeleceu as diretrizes sempre foi o presidente,
que nomeou um general subserviente para “tirar a castanha com
a mão do gato”, como se costuma dizer. O hoje ex-ministro é alvo de uma investigação
no STF — que o procurador-geral que não procura não teve como evitar —,
mas, de novo, ele apenas executou a política genocida que matou (até
agora) quase meio milhão de pessoas no Brasil. Basta lembrar o que disse a propósito
Marcelo Queiroga em 16 de março, ainda como virtual substituto de
Pazuello:
“A política é do governo Bolsonaro. A política
não é do ministro da Saúde. O ministro da Saúde executa a política do governo.
O ministro Pazuello tem trabalhado arduamente para melhorar as condições
sanitárias do Brasil e eu fui convocado pelo presidente Bolsonaro para dar
continuidade a esse trabalho”.
Pazuello foi cúmplice do negacionismo de Bolsonaro,
que incentiva o boicote ao distanciamento social, defende charlatanices como
cloroquina e outras drogas para um nefasto tratamento precoce, mente sobre os
efeitos colaterais de máscaras e vacinas, desrespeita as vítimas da Covid
e seus familiares e faz da pandemia uma disputa política mesquinha, sem se
preocupar com os quase 2 mil mortos por dia que marcarão a história do país.
Por tudo isso, Pazuello deixou cargo não só como
o pior de todos os ministros, mas como um militar que maculou a imagem da
corporação. O Exército pagará um preço alto por ter permitido que um general da
ativa assumisse um cargo para o qual não tinha nenhuma qualificação. Mas o
fardado só foi expurgado porque a ressurreição dos panelaços e dos protestos de
rua produziram em Bolsonaro a desagradável sensação de que sua reeleição
não são favas contatas. Sobretudo depois que o ex-presidiário petista foi
promovido pelo STF à curiosa
condição de “ex-corrupto”.
Por um grave erro de cálculo, o Messias que não
miracula achava que podia fazer o que bem entendesse, já que a rejeição a Lula
e ao PT seria sempre maior que a desaprovação a seus atos. Demorou, mas
ele acabou percebendo que o luto das pessoas que perderam entes queridos para a
Covid e a raiva com a desorganização na vacinação — um dos poucos
orgulhos nacionais que vinham desde o Regime Militar — poderiam tornar (como de
fato tornaram) o antibolsonarismo tão forte quanto o antipetismo,
e que empresários que ele tinha como aliados eternos poderiam pular para o
navio lulista caso ele não mudasse a gestão no combate à pandemia. Esse foi o
erro, aliás, que culminou na derrota de Donald Trump.
Engana-se quem imagina que o capitão dará ao ministro
da Saúde — seja Queiroga, seja quem vier a suceder-lhe no cargo —
autonomia para tomar decisões com base na ciência. Prova disso foi o desconvite à também cardiologista Ludhmila Hajjar, indicada pelo presidente da Câmara com o aval do
Centrão. Bolsonaro descobriu que a médica defende vacinação em massa, é
a favor do lockdown e contrária ao uso da cloroquina e outros fármacos que o
pajé de fancaria defende com unhas e dentes.
Quem está do lado da ciência não pode ser ministro de Bolsonaro, porque Bolsonaro não quer deixar que a ciência evite o morticínio, embora finja o contrário para dar uma resposta política à ameaça da candidatura Lula. O que o presidente sempre quis (e continua querendo) é um ministro que diga “sim, senhor” às suas vontades e ajude a asfixiar os governadores rebeldes.
Bolsonaro substituiu Pazuello — um “tremendo gestor” —, por outro Pazuello, e blindou o anterior da merecida punição por ter participado do ato político realizado no Rio de Janeiro no final do mês passado. Ao passar o bastão para o cardiologista Marcello Queiroga, o tremendo gestor estufou o peito e declarou que havia cumprido sua missão.
Como recompensa pela fidelidade canina ao capitão, por ter mentido a mais não poder para não entregar a rapadura na CPI do Genocídio, o tremendo gestor foi nomeado secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência.
Na condição de ASPONE, o tremendo gestor causará menos problemas do que como ministro. O salário de R$ 16 mil corresponde a 50% do que percebe um ministro de Estado, mas vem bem a calhar para reforçar o soldo (de cerca de R$ 13 mil ) a que o tremendo gestor faz jus como general da ativa.