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terça-feira, 17 de setembro de 2019

BRASILHA DA FANTASIA? PERGUNTA ALI NO POSTO IPIRANGA


Publicar fatos de interesse público é a função precípua do jornalista; divulgar fatos de interesse do público é coisa de fofoqueiro. Mesmo assim, precedo meu artigo de hoje da informação sobre a alta médica do presidente Bolsonaro, que deixou o hospital na tarde de ontem. Nosso indômito capitão ficou de molho durante oito dias no Hospital Vila Nova Star, onde foi submetido a mais uma cirurgia no abdome, desta feita para resolver problemas de aderência e corrigir uma hérnia incisional. Diferentemente das outras vezes, ele não se internou no Hospital Albert Einstein, pois o cirurgião Antonio Luiz Macedo, que o acompanha desde sua transferência da Santa Casa de Juiz de Fora para São Paulo, trocou o nosocômio israelita, onde trabalhou durante 4 décadas, pelo hospital da Rede D'Or. Fala-se que seu passe vale ouro e que seu salário é de sete dígitos. Enfim, preparemo-nos para a mais recente versão da franquia O Retorno da Múmia. Dito isso, vamos adiante:

O Tesouro secou. Não há dinheiro nem para fazer frente às despesas mais comezinhas. Bolsonaro não só cogita flexibilizar a lei do teto dos gastos, "para não ter de cortar a luz dos quartéis", como sugere espaçar as idas ao banheiro, para economizar papel higiênico. Isso e outras bobagens que nem vale a pena repetir.   

É nesse contexto que os deputados, depois de aprovarem a toque de caixa e em votação simbólica e secreta a lei de abuso de autoridade egressa do Senado — da lavra de Renan Calheiros, que coloca barreiras legais, ou reforça as já existentes, às investigações da Lava-Jato —, preparam mais uma emboscada à carteira dos contribuintes: um projeto que modifica as regras eleitorais e partidárias — já aprovado na Câmara e prestes a ser referendado pelo Senado — prevê, dentre outras barbaridades, o aumento fundo eleitoral de R$ 1,8 bilhão para R$ 3,7 bilhões.  

Trata-se de mais uma evidência cabal de que o interesse público se encontra indefeso no Congresso, que quer a compreensão de todos para restaurar velhas práticas. Como bem lembrou Josias de Souza em seu Blog, os partidos sempre foram financiados pelo déficit público, mas agora o dinheiro já não faz escala na caixa registradora de empreiteiras e de empresas fornecedoras do governo. A grana que financia a fuzarca escorre agora diretamente do Tesouro Nacional para as arcas das legendas. Mal comparando, é como se os políticos se colocassem na posição do personagem da anedota em que o sujeito mata pai e mãe e, no dia do julgamento, pede ao tribunal de júri que tenha misericórdia com um pobre órfão. A diferença entre os parlamentares e o órfão assassino é que deputados e senadores matam a paciência alheia sem pedir perdão.

Resta saber de onde virão os recursos para bancar essa farra do boi, se já não há dinheiro para comprar giz para as escolas nem esparadrapo para os hospitais. O Plano A, que era recriar a CPMF sob o argumento de que o gambá retirado da cartola viraria um lindo coelhinho quando fosse apresentado como alternativa à desoneração da folha salarial, foi descartado, levando de embrulho o secretário da Recita Federal, penabundado um dia depois da divulgação, pelo secretário-adjunto da Receita, de um imposto nos moldes da execrável "contribuição sobre movimentações financeiras". Já o Plano B… Não havia um Plano B.

Deputado, o hoje presidente Bolsonaro esculhambou a CPMF. "Uma desgraça", dizia. Coisa de "cara de pau", enfatizava. Candidato, jurou que jamais admitiria a volta da encrenca caso fosse eleito. Ainda assim, Paulo Guedes e os frentistas do Posto Ipiranga não tinham pensado na possibilidade de o Plano A não dar certo.

Demitido da chefia da Receita, Marcos Cintra, o apologista da CPMF, reforça a ausência de um plano de contingência. Segundo ele, a volta do nefando "imposto do cheque" seria a única alternativa viável de fazer a desoneração da folha. Aposta que Guedes e seu staff terão de ressuscitar o defunto, ainda que "de maneira modificada, atenuada e mais gradativa".

O superministro encomendou estudos novos aos sobreviventes da equipe. Improvisa-se uma alternativa em cima do joelho. Quem dá ouvidos a Marcos Cintra fica tentado a concluir que o Plano B de Guedes é a versão atenuada do Plano A. Consiste em oferecer ao brasileiro um sacrifício à vista — a mordida do imposto seminovo — e um benefício a prazo — a hipotética criação de empregos que resultaria da desoneração da folha.

Antes de ser deposta e de virar cuidadora de netos, a folclórica gerentona de araque  tentou executar o pedaço final da mágica. Mas o gambá da época (renúncia fiscal, sem novo imposto para compensar) não virou coelho e a fila do desemprego continuou crescendo.

Parece incrível que ninguém, na pasta da Economia, tenha previsto que Bolsonaro poderia, em algum momento, interditar a recriação de um tributo que sempre abominou. Faltou no quadro de funcionários do Posto Ipiranga uma criança de cinco anos para prever o que poderia acontecer. A mesma criança constataria que, em matéria tributária, o governo está desnorteado.

Há no Congresso duas propostas de reforma tributária. Nenhuma delas traz as digitais do governo: na Câmara, corre o projeto do deputado Baleia Rossi; no Senado, a proposta elaborada sob a coordenação do ex-deputado Luiz Carlos Hauly. Com oito meses e meio de existência, tudo que o governo conseguiu exibir em termos tributários foi uma crise do Plano B.

Quando Bolsonaro declarou que encontrara um Posto Ipiranga para abastecer sua ignorância econômica, não se imaginou que faltaria combustível tão cedo.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

DE EX-JUIZ DE SUCESSO, MORO PASSA A MINISTRO FRUSTRADO



A roubalheira não atingiu o estágio epidêmico no Brasil por acaso. A oligarquia política e empresarial tornou-se corrupta porque a corrupção tem defensores poderosos no país. Feridos, os paladinos da imoralidade estavam recolhidos. Jogavam com o tempo. Festejaram em silêncio a volta das ruas para casa. E passaram a sonhar com a chegada do momento em que a Lava-Jato se tornaria um assunto chato.

A julgar pelo rebuliço que se observa em Brasília, o grande dia chegou. Os cavaleiros da velha ordem estão de volta. Movem-se com desenvoltura incomum. É como se planejassem tirar o atraso. Já nem se preocupam em maneirar. Perderam o recato. Há poucos, muito poucos, pouquíssimos inocentes em cena. Juntos, culpados e cúmplices compõem a maioria.

Na comissão especial que se incumbiu de examinar a medida provisória 870, que remodelou os ministérios ao gosto de Jair Bolsonaro, o esforço anticorrupção recebeu duas pauladas. Primeiro, deslocou-se o Coaf da Justiça para a Economia. Poder-se-ia alegar que a volta atrás seria tecnicamente justificável. Mas a segunda cacetada deixou evidente o que se passava na comissão.

Aprovou-se uma emenda-jabuti que restringe a atuação dos auditores da Receita Federal, afastando-os do Ministério Público. A turma do Fisco terá de se ater aos crimes tributários. Se esbarrarem em indícios de corrupção, lavagem de dinheiro e toda sorte de delitos, não poderão se reportar diretamente ao Ministério Público, como fazem hoje. O compartilhamento dos dados só será admitido mediante autorização judicial.

ObservaçãoEm entrevista à rádio Bandeirantes, Jair Bolsonaro afirmou neste domingo que devolver o Coaf ao Ministério da Economia é uma “medida inócua”. Segundo o presidente, Paulo Guedes tem boa interlocução com Sergio Moro. Antes de aceitar a oferta de comandar a pasta e deixar para trás 22 anos de magistratura, Moro e Bolsonaro negociaram dois pontos. Um deles seria o comando sobre o Coaf. O outro, a possibilidade de tornar-se ministro do STF. No anúncio deste domingo, o presidente deixou claro que, mesmo com o primeiro ponto comprometido por vontade dos parlamentares, manterá sua palavra em relação ao segundo. Moro havia dito a interlocutores que deixaria o governo se perdesse o controle do Coaf, mas reconsiderou e resolveu ficar. A meu ver, pesou em sua decisão a perspectiva de ser alçado à nossa mais alta Corte dentro de 1 ano e meio, na vaga aberta pela aposentadoria do decano Celso de Mello. Mas não custa reproduzir o que o ministro disse à Jovem Pan: "Fico honrado com o que presidente falou, mas não tem a vaga no momento. Quando surgir, ele vai avaliar se vai manter convite, eu vou avaliar se vou aceitar, se for feito efetivamente o convite." Para restabelecer a aura de respeitabilidade do STF não basta substituir um de seus membros. O Tribunal, hoje presidido por um ex-militante petista reprovado duas vezes seguidas em concurso para juiz de primeira instância, conta com outros sete magistrados indicados nas gestões de Lula e de Dilma, e três egressos dos governos Sarney, FHC Temer. Esperar o que de uma confraria dessas?

Ah, que maravilha! A corrupção passa pelo portão dos fundos, sobe pelo elevador privativo, encontra a porta aberta e entra sem bater. A fiscalização marca hora e toma chá de cadeira na antessala. Esbarrando em algum crime, fica de bico calado, redige um requerimento à chefia, que envia um ofício ao Departamento Jurídico, que protocola uma petição ao juiz, que produz um despacho qualquer quando bem entender.

O secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, chamou a manobra pelo nome próprio numa postagem no Twitter: "Mordaça", ele anotou. "É incrível uma lei proibir um auditor fiscal de comunicar ao Ministério Público a suspeita de um crime, conexo ou não a um crime tributário investigado. Isso é uma obrigação de qualquer cidadão. Uma mordaça está sendo colocada na Receita Federal…"

Na outra ponta da Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal decidiu que as Assembleias Legislativas, a exemplo do que sucede com o Congresso Nacional, têm poder para reverter decisões judiciais desfavoráveis aos deputados estaduais. Podem anular ordens de prisão, rever medidas cautelares e até suspender ações penais. Na prática institucionalizou-se o modelo baseado na regra número um do corporativismo: uma mão suja a outra.

Como se fosse pouco, o Supremo validou o decreto de indulto natalino assinado por Michel Temer em 2017. Coisa fina: inclui no rol dos beneficiários condenados por corrupção, peculato, concussão, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, etc. Coisa generosa: perdão de 80% da pena e 100% das multas. Tudo isso no mesmo dia em que Temer foi recolhido à prisão pela segunda vez no âmbito de um processo em que é acusado de chefiar organização criminosa.

Aos pouquinhos, o pedaço do mapa de Brasília por onde transita o Poder vai recuperando aquele velho formato de forno —um forno de assar pizzas. Eleito como capitão de uma nova ordem, Jair Bolsonaro diverte-se distribuindo portes de arma. Simultaneamente, divide ministérios em dois para tentar, sem sucesso, saciar o apetite de aliados. Quem olha de longe fica com a impressão de que Brasília é movida pelo desejo inconsciente de acordar a rua. Tomara que consiga. Só o meio-fio pode salvar o Brasil dos defensores da imoralidade.


Com Josias de Souza