segunda-feira, 13 de maio de 2019

DE EX-JUIZ DE SUCESSO, MORO PASSA A MINISTRO FRUSTRADO



A roubalheira não atingiu o estágio epidêmico no Brasil por acaso. A oligarquia política e empresarial tornou-se corrupta porque a corrupção tem defensores poderosos no país. Feridos, os paladinos da imoralidade estavam recolhidos. Jogavam com o tempo. Festejaram em silêncio a volta das ruas para casa. E passaram a sonhar com a chegada do momento em que a Lava-Jato se tornaria um assunto chato.

A julgar pelo rebuliço que se observa em Brasília, o grande dia chegou. Os cavaleiros da velha ordem estão de volta. Movem-se com desenvoltura incomum. É como se planejassem tirar o atraso. Já nem se preocupam em maneirar. Perderam o recato. Há poucos, muito poucos, pouquíssimos inocentes em cena. Juntos, culpados e cúmplices compõem a maioria.

Na comissão especial que se incumbiu de examinar a medida provisória 870, que remodelou os ministérios ao gosto de Jair Bolsonaro, o esforço anticorrupção recebeu duas pauladas. Primeiro, deslocou-se o Coaf da Justiça para a Economia. Poder-se-ia alegar que a volta atrás seria tecnicamente justificável. Mas a segunda cacetada deixou evidente o que se passava na comissão.

Aprovou-se uma emenda-jabuti que restringe a atuação dos auditores da Receita Federal, afastando-os do Ministério Público. A turma do Fisco terá de se ater aos crimes tributários. Se esbarrarem em indícios de corrupção, lavagem de dinheiro e toda sorte de delitos, não poderão se reportar diretamente ao Ministério Público, como fazem hoje. O compartilhamento dos dados só será admitido mediante autorização judicial.

ObservaçãoEm entrevista à rádio Bandeirantes, Jair Bolsonaro afirmou neste domingo que devolver o Coaf ao Ministério da Economia é uma “medida inócua”. Segundo o presidente, Paulo Guedes tem boa interlocução com Sergio Moro. Antes de aceitar a oferta de comandar a pasta e deixar para trás 22 anos de magistratura, Moro e Bolsonaro negociaram dois pontos. Um deles seria o comando sobre o Coaf. O outro, a possibilidade de tornar-se ministro do STF. No anúncio deste domingo, o presidente deixou claro que, mesmo com o primeiro ponto comprometido por vontade dos parlamentares, manterá sua palavra em relação ao segundo. Moro havia dito a interlocutores que deixaria o governo se perdesse o controle do Coaf, mas reconsiderou e resolveu ficar. A meu ver, pesou em sua decisão a perspectiva de ser alçado à nossa mais alta Corte dentro de 1 ano e meio, na vaga aberta pela aposentadoria do decano Celso de Mello. Mas não custa reproduzir o que o ministro disse à Jovem Pan: "Fico honrado com o que presidente falou, mas não tem a vaga no momento. Quando surgir, ele vai avaliar se vai manter convite, eu vou avaliar se vou aceitar, se for feito efetivamente o convite." Para restabelecer a aura de respeitabilidade do STF não basta substituir um de seus membros. O Tribunal, hoje presidido por um ex-militante petista reprovado duas vezes seguidas em concurso para juiz de primeira instância, conta com outros sete magistrados indicados nas gestões de Lula e de Dilma, e três egressos dos governos Sarney, FHC Temer. Esperar o que de uma confraria dessas?

Ah, que maravilha! A corrupção passa pelo portão dos fundos, sobe pelo elevador privativo, encontra a porta aberta e entra sem bater. A fiscalização marca hora e toma chá de cadeira na antessala. Esbarrando em algum crime, fica de bico calado, redige um requerimento à chefia, que envia um ofício ao Departamento Jurídico, que protocola uma petição ao juiz, que produz um despacho qualquer quando bem entender.

O secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, chamou a manobra pelo nome próprio numa postagem no Twitter: "Mordaça", ele anotou. "É incrível uma lei proibir um auditor fiscal de comunicar ao Ministério Público a suspeita de um crime, conexo ou não a um crime tributário investigado. Isso é uma obrigação de qualquer cidadão. Uma mordaça está sendo colocada na Receita Federal…"

Na outra ponta da Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal decidiu que as Assembleias Legislativas, a exemplo do que sucede com o Congresso Nacional, têm poder para reverter decisões judiciais desfavoráveis aos deputados estaduais. Podem anular ordens de prisão, rever medidas cautelares e até suspender ações penais. Na prática institucionalizou-se o modelo baseado na regra número um do corporativismo: uma mão suja a outra.

Como se fosse pouco, o Supremo validou o decreto de indulto natalino assinado por Michel Temer em 2017. Coisa fina: inclui no rol dos beneficiários condenados por corrupção, peculato, concussão, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, etc. Coisa generosa: perdão de 80% da pena e 100% das multas. Tudo isso no mesmo dia em que Temer foi recolhido à prisão pela segunda vez no âmbito de um processo em que é acusado de chefiar organização criminosa.

Aos pouquinhos, o pedaço do mapa de Brasília por onde transita o Poder vai recuperando aquele velho formato de forno —um forno de assar pizzas. Eleito como capitão de uma nova ordem, Jair Bolsonaro diverte-se distribuindo portes de arma. Simultaneamente, divide ministérios em dois para tentar, sem sucesso, saciar o apetite de aliados. Quem olha de longe fica com a impressão de que Brasília é movida pelo desejo inconsciente de acordar a rua. Tomara que consiga. Só o meio-fio pode salvar o Brasil dos defensores da imoralidade.


Com Josias de Souza