Vivemos
tempos estranhos, disse o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal
Federal. E com efeito: a julgar pelas pesquisas ― nem sempre muito confiáveis,
mas impossíveis de ser ignoradas ―, nosso esclarecidíssmo eleitorado está
dividido entre um criminoso condenado, populista de carteirinha, e um militar
aposentado, estadista de quatro costados.
A
polarização da política ― fomentada em grande medida pelo “nós contra eles” do
ex-presidente petista ― leva os “petralhas” a escolher um
candidato que dificilmente disputará a presidência (e que deve apodrecer na
prisão, em havendo justiça nesta terra), e os extremistas de direita a escolher
alguém que emula a volta dos militares ao poder.
Sobre Lula,
não há muito a dizer além do que eu já disse em minhas minhas humildes postagens. Mas
Bolsonaro só foi citado meia dúzia de vezes, se tanto, e mesmo assim de
passagem. Portanto, resolvi preencher essa lacuna. Acompanhe.
O
ex-capitão do exército que hoje vive dias de celebridade aparece com
respeitáveis 20% nas pesquisas de intenção de voto ― a título de comparação, Geraldo
Alckmin, o eterno picolé de chuchu, não chega a 1/3 disso ― e vive hoje sua
terceira e melhor fase na pré-campanha presidencial. Há um ano, ele era
considerado o candidato folclórico da disputa, como tantos outros o foram em
todas as eleições desde a redemocratização. De alguns meses para cá, porém, surfando
na derrocada do PT, começou a crescer nas sondagens e agora parece ter
presença garantida no segundo turno.
Aos
poucos, Bolsonaro construiu uma narrativa eloquente contra
bandeiras tradicionais da esquerda, sem se importar com a pecha de machista,
homofóbico e racista que viria junto. Além disso, explorou o fato de não estar
envolvido em escândalos de corrupção, especialmente na Lava-Jato para se
vender como um político diferente ― a despeito dos sete mandatos como deputado
federal e um como vereador no Rio. Mas não é só. O deputado-capitão também atrai o voto
de protesto que outrora era comum em eleições legislativas como a de 2014,
quando foi eleito o palhaço Tiririca.
Tamanha é
a frustração do brasileiro com a política e a economia que Bolsonaro virou uma espécie de refúgio dos indignados. “Ele atende aos descontentes com o
Brasil atual, principalmente os descontentes com a corrupção”, diz David
Fleischer, professor de ciências políticas da Universidade de Brasília. “A
figura que ele encarna é quase ideal. É um personagem de um drama, comédia ou
tragédia política”, afirma Roberto Romano, professor aposentado de Ética e
Filosofia da Unicamp.
Com o pé
no segundo turno, o debate que se impõe é: se eleito, Bolsonaro terá condições
de presidir o país? Além disso, qual Bolsonaro seria presidente? O mais
radical, com forte discurso contra a política e o sistema, ou o que agora
começar a vestir um figurino um pouco mais flexível para atrair um eleitorado
que ainda duvida de sua capacidade para conduzir o Brasil em um dos períodos
mais conflagrados da história?
Capitão
da reserva do Exército, Jair Messias Bolsonaro sempre balizou sua atuação política em
assuntos caros a seu eleitorado original ― os militares. Foi erguendo bandeiras
de interesse dos colegas de farda que se elegeu pela primeira vez. Era um
rebelde nos quartéis, lutando por melhorias nas condições de trabalho de
soldados e cabos (o baixo clero da caserna), e, da Câmara de Vereadores do Rio,
levou a bandeira para a Câmara Federal, nos anos 1990 ― que atravessou com uma
apagada atuação parlamentar, focada no atendimento de demandas corporativas das
Forças Armadas.
A chegada
de Lula ao poder, em 2003, daria ao deputado Bolsonaro um inimigo de
peso para combater — e aparecer. Foi a partir daí que se deu sua primeira guinada
política. Na era petista, ele ampliou o foco de sua atuação, passou a falar não
apenas para os militares de baixo coturno e adotou bandeiras conservadoras para
rebater as políticas públicas propostas pelo PT. Aos poucos, foi se
consolidando como um dos mais virulentos críticos do petismo e ganhou
protagonismo.
Ainda no
governo Lula, Bolsonaro depois de ser abordado agressivamente Maria do Rosário durante
um debate sobre redução da maioridade penal, disse que a deputada petralha gaúcha
não merecia ser estuprada. No começo do governo Dilma, comprou a briga contra o
chamado kit-gay ― uma espécie de cartilha contra a homofobia que o Ministério
da Educação queria distribuir às escolas. Ao deputado Jean Willys, homossexual assumido, disse que teria vergonha de ter um filho como
ele.
Cada
polêmica era bem explorada pela equipe de Bolsonaro nas redes sociais, o que
fez com que seu nome passasse a ser admirado país afora (e também odiado por
grupos mais simpáticos às bandeiras de esquerda). Os vídeos foram viralizando —
e, paulatinamente, ajudando o deputado a fidelizar o eleitorado antipetista. Com
o recrudescimento da crise econômica e o avanço da Lava-Jato, seu número de eleitores saltou dos 120 mil, em 2010, para 464 mil, em
2014, quando foi reeleito para o sétimo mandato na Câmara e se tornou o terceiro
deputado mais votado do país (só para constar: Tiririca teve 1,3 milhão de votos em 2010 e cerca de 1 milhão em
2014). Foi então que ele começou a cogitar a ideia de concorrer ao
Palácio do Planalto. A hipótese
foi aventada ainda em 2014, mas o deputado não encontrou apoio no PP ― partido
que o abrigava àquela altura. Fez algumas abordagens ao presidente da
sigla, o notório senador Ciro Nogueira, que sempre fugia do assunto.
Bolsonaro
abandonou o PP após a reeleição de Dilma, mas o PSC também não garantiu
legenda para seu projeto nacional. Em 2017, vendo que teria mais
chances de se candidatar a presidente em uma sigla menor, aproximou-se do
nanico PEN ― rebatizado de Patriota a pedido do próprio Bolsonaro ― e, mais
adiante, ingressou no PSL.
No Datafolha,
Bolsonaro começou a aparecer com 4% das intenções de voto em 2015, subiu para 7% em 2016 e para 15% em 2017. A pecha de sectário, contudo, continuava a ser um problema a
resolver, juntamente com a crítica frequente de que era leigo em relação a
temas importantes para alguém que pretende comandar o país. Foi então que, no
final do ano passado, ele passou a modular seu discurso e terceirizar a elaboração de propostas em algumas áreas cruciais. Para tentar
uma aproximação com o mercado, ator relevante em eleições presidenciais,
escalou o economista Paulo Guedes, fundador e ex-sócio do BTG Pactual e
doutor em economia pela Universidade de Chicago. A ideia de convidá-lo para
coordenar o programa econômico de sua campanha teve efeitos positivos. Ali, em
meio ao deserto de opções que se desenhavam, o pré-candidato foi ganhando a simpatia
de empresários e operadores de mercado e passou a participar de sabatinas
organizadas por bancos e associações empresariais.
Durante a
recente paralisação dos caminhoneiros, Bolsonaro apoiou as reivindicações da
categoria e chegou mesmo a prometer que anistiaria as multas aplicadas aos
grevistas. Mas ao longo da semana acabou assumindo uma posição mais crítica e
condenou os bloqueios nas estradas. “Houve infiltração no movimento”, disse. E completou: “Caso seja presidente, não quero pegar o país pior
do que está”.
Some-se à miopia política (para não dizer “ignorância”) de boa
parte do eleitorado a absoluta ausência de candidatos ilibados e qualificados
para presidir este arremedo de país e fica fácil compreender porque estamos nesta deplorável
situação.
Que Deus
nos ajude em outubro, nos próximos quatro anos e nos demais que estão por vir.