Ricardo Boechat — morto em fevereiro passado numa esdrúxula queda de helicóptero — dizia que se pode morrer de tudo no jornalismo, menos de tédio. E com efeito. Nesta semana, por exemplo, enquanto Bolsonaro e seu partido protagonizam um bate-boca que pegaria mal até em cortiço de quinta classe (se brigar pelo poder já uma merda, quando quase meio bilhão de reais estão em jogo, aí é merda e meia), o Senado votará em segundo turno a reforma previdenciária (o que deve acontecer hoje) e STF dará prosseguimento do julgamento das ADCs que podem mudar mais uma vez a jurisprudência quanto à possibilidade ou não do cumprimento antecipada da pena por condenados em segunda instância. Como se vê, é teste para cardíaco.
Observação: Para quem passou as últimas semanas em Marte, na semana passada, após as manifestações do relator, dos advogados dos autores das ações e de representantes da sociedade civil que discursaram na condição de amicus curiae (partes interessadas na discussão jurídica), a sessão foi suspensa e adiada para esta quarta-feira, com início previsto para as 9h30. Portanto, suas excelências togadas terão de pular da cama mais cedo que de costume.
Em fevereiro de 2016, quando Dilma Rousseff, Eduardo
Cunha e Renan Calheiros eram,
respectivamente, presidentes da República, da Câmara e do Senado, e a Lava-Jato aterrorizava a classe política,
Gilmar Mendes, na sessão plenária
que mudou o entendimento que a corte havia adotado sete anos antes, vociferou:
"Não se conhece no mundo civilizado
um país que exija o trânsito em julgado”. Hoje, passados pouco mais de três anos, de maior patrocinador da prisão após condenação em segunda instância o magistrado passou a articulador do movimento político-jurídico que começou a se materializar na última quinta 17. Na sessão extraordinária desta quarta, serão ouvidas ainda duas sustentações de amici curiae, além das manifestações da AGU e do MPF. Só então terá início a leitura dos votos, começando pelo ministro Marco Aurélio, relator das estapafúrdias ADCs.
Se, a exemplo dos ratos encantados com a música do Flautista de Hamelin, a maioria dos ministros se render ao canto e aos encantos da Maritaca de Diamantino, a mudança na jurisprudência pode fulminar os avanços experimentados pelo país no combate à impunidade, atingir frontalmente a maior operação anticorrupção da história e beneficiar ilustres condenados por desvio de dinheiro público, como o ex-presidente Lula e o ex-ministro José Dirceu, além de abir as portas da cadeia para outros quase 5 mil presos.
Para entender melhor essa questão é preciso voltar a março de 2016, pouco antes de Dilma ser afastada, quando Sérgio Moro, então juiz titular dos processos da Lava-Jato em Curitiba, tornou públicos os famosos áudios de
conversas entre a criatura e o criador — dos quais se inferia que a
nomeação do Lula para o cargo de ministro da Casa Civil de Dilma era uma forma de
protegê-lo do avanço da força-tarefa, e com base nisso Gilmar Mendes barrou a posse e ordenou que as investigações sobre o petralha ficassem em
Curitiba, onde tramitariam mais rapidamente. Vivia-se então o auge da boa
convivência entre os integrantes da força-tarefa e o semideus togado, mas
já se delineavam horizonte as auroras nascituras da nova era Gilmar.
A metamorfose se deu aos poucos. No final daquele ano, conforme a Lava-Jato avançava sobre políticos corruptos, o magistrado já falava em “excessos". "Para mim, por exemplo, no que diz respeito à prisão provisória sem limites, isso me parece excessivo e precisa ser discutido no TRF, no STJ e no Supremo”, disse ele em 24 de outubro. Detalhe: àquela altura já se antevia que o próximo alvo dos investigadores seria o Judiciário. Em 2017, os ataques de Gilmar à Lava-Jato se intensificaram no mesmo ritmo em que a operação engolfava figuras ilustres do PSDB, e o governo de Michel Temer tornou-se alvo das investigações. Nunca é demais lembrar que Mendes era carne com o Vampiro do Jaburu, tanto que sua atuação na presidência do TSE, durante o julgamento do pedido de cassação da chapa Dilma/Temer, foi determinante para a absolvição dos réus — por "excesso de provas", como ironizou o relator da ação, ministro Herman Benjamin.
A metamorfose se deu aos poucos. No final daquele ano, conforme a Lava-Jato avançava sobre políticos corruptos, o magistrado já falava em “excessos". "Para mim, por exemplo, no que diz respeito à prisão provisória sem limites, isso me parece excessivo e precisa ser discutido no TRF, no STJ e no Supremo”, disse ele em 24 de outubro. Detalhe: àquela altura já se antevia que o próximo alvo dos investigadores seria o Judiciário. Em 2017, os ataques de Gilmar à Lava-Jato se intensificaram no mesmo ritmo em que a operação engolfava figuras ilustres do PSDB, e o governo de Michel Temer tornou-se alvo das investigações. Nunca é demais lembrar que Mendes era carne com o Vampiro do Jaburu, tanto que sua atuação na presidência do TSE, durante o julgamento do pedido de cassação da chapa Dilma/Temer, foi determinante para a absolvição dos réus — por "excesso de provas", como ironizou o relator da ação, ministro Herman Benjamin.
A partir de então, travestido de cruzado, Gilmar passou a atacar as “prisões alongadas que se determinam em Curitiba”. A certa altura, declarou que uma denúncia
feita pelo Ministério Público era quase “uma brincadeira juvenil”. Além dos emedebistas
investigados, o PT e uma parte importante do establishment político passou a ver nele um
aliado. Encontros com lideranças desses partidos passaram a ser frequentes, mas faltava ao magistrado a influência sobre a agenda do STF — que ele conseguiu quando Toffoli
substituiu Cármen Lúcia na presidência
do tribunal.
A relação de Toffoli
com Gilmar já era de muita
proximidade (detalhes nas postagens anteriores), e o vínculo se
fortaleceu depois que suas respectivas consortes, as também advogadas Roberta Rangel e Guiomar Mendes, entraram no radar da Receita Federal por suspeita
de fraudes tributárias em suas atividades profissionais. Mas o movimento articulado
pela dupla contra a Lava-Jato ganhou força
com os vazamentos das conversas hackeadas dos celulares de integrantes da
força-tarefa, que levaram o STF,
notadamente a ala garantista (ou banda podre, como preferem alguns), a rever
decisões que antes abriram caminho para que a investigação deslanchasse.
Alguns ministros começaram a impor travas a métodos
utilizados pelos investigadores, como fez Toffoli ao limitar a atuação do
antigo COAF, hoje UIF. Outros recursos em andamento na
corte, como o que pede a declaração de suspeição de Sergio Moro no julgamento de Lula,
tornaram-se uma espada de Dâmocles sobre
a Lava-Jato e seus integrantes. Muitos desses recursos chegaram a ser acolhidos, sempre com Gilmar liderando o coro dos críticos.
Foi nessa toada, por exemplo, que o tribunal ordenou a primeira anulação de uma
sentença de Moro pela jabuticaba
jurídica segundo a qual o réu delatado deve apresentar seus memoriais (ou alegações
finais) depois do réu delator — regra que não existe nem na Constituição nem nos códigos penal de de processo penal, e que, aliás, não muda em nada o
rumo do processo.
Há tempos que Gilmar vem buscando embasamento para sustentar a guinada no entendimento da Corte sobre o início do cumprimento da pena após condenação em segundo grau. Seu principal argumento é que
o Supremo havia decidido que a prisão após a condenação por um juízo colegiado
era apenas uma “possibilidade”, mas virou regra nas instâncias
inferiores. O próximo passo foi convencer Toffoli de que havia maioria favorável à retomada do debate, já que Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello,
defensores atávicos da prisão somente o trânsito em julgado da sentença
condenatória, reivindicavam uma nova análise. No canto oposto do tablado, os ministros Barroso, Fachin, Fux e Cármen Lúcia vinham resistindo à ideia, mas não só se tornaram minoria como perderam o controle da agenda do tribunal quando Cármen deixou a presidência.
Como tudo que envolve o plenário do STF de uns tempos a
esta parte, o resultado do julgamento das ADCs é
imprevisível. Se a tendência de retrocesso se confirmar, será a terceira
mudança nas últimas três décadas. É bom lembrar que o entendimento pela prisão dos
condenados em segunda instância, sem prejuízo da interposição de recursos,
prevaleceu desde a promulgação da Lei Fleury, durante a ditadura militar, até 2009, quando o STF
mudou a jurisprudência. Em 2016, Teori Zavascki, liderou a virada; no julgamento ora em curso, os votos de Rosa
Weber e Alexandre de Moraes são considerados determinantes. A ministra sempre foi contra a prisão em segunda instância, mas no julgamento do habeas corpus de Lula, em abril de 2018, posicionou-se a favor, alegando que deveria
respeitar a jurisprudência vigente. Já o novato da Corte era a favor do
cumprimento antecipado da pena, mas passou a ser contabilizado como um possível
voto contra depois que se aproximou da dupla Mendes/Toffoli.
Menos improvável que a manutenção da jurisprudência vigente
é o tribunal estabelecer um meio-termo. O próprio Toffoli, que quer vincular sua passagem pela presidência da corte a uma postura conciliadora, chegou a propor que a prisão dos réus se
dê após a confirmação da sentença em terceira instância (STJ). Em algum momento, Mendes se mostrou favorável a essa solução, mas não se sabe se continua a sê-lo ou se defenderá de maneira intransigente o cumprimento da pena depois do trânsito em julgado (que no Brasil equivale
ao Dia de São Nunca, conforme comentei nos capítulos anteriores).
Ao abrir a
sessão do dia 17, Toffoli fez questão de (tentar) desfulanizar o julgamento: “Que fique bem claro
que as presentes ações e o presente julgamento não se referem a nenhuma situação
particular. (…) O objetivo é dar o alcance efetivo e a interpretação a uma das
garantias individuais previstas na nossa Constituição. Esse entendimento se estenderá a todos os cidadãos brasileiros”,
afirmou sua excelência. Mas é óbvio que, como quase tudo mais neste país, esse furdunço tem a ver com o picareta dos picaretas, o desempregado que deu certo, o criminoso de Garanhuns, o presidiário de Curitiba.
Depois do discurso de Toffoli, Marco Aurélio Mello leu seu
relatório e aproveitou para disparar contra o presidente da Corte — que no final do ano passado cassou a liminar que Mello concedera para soltar todos os condenados em segunda instância
que aguardavam presos o julgamento de seus recursos às instâncias superiores, Lula incluído. O primo de Collor fez questão de enfatizar que
"o presidente da Corte é coordenador e não superior hierárquico dos pares". A resposta veio ao final da sessão, quando Toffoli, com a voz embargada, elogiou o
relatório e disse
que sua admiração por Marco Aurélio só aumentava. Puro teatro...
Nesta quarta-feria, as rusgas entre os ministros devem ser expostas, deixando evidente, mais uma vez, a cizânia entre a ala que defende
Lava-Jato, com Fachin e Barroso à frente, e a que se esforça
para limitar a operação, capitaneada pelo ministro que o próprio Barroso qualificou como "uma pessoa horrível, uma mistura do mal com
atraso e pitadas de psicopatia, uma desonra para o tribunal, uma vergonha, um
constrangimento" — em outro momento, referindo-se ao colega mas
sem citá-lo nominalmente, disse o ministro: “Há no Supremo gabinete distribuindo senha para soltar corrupto, sem
qualquer forma de direito e numa espécie de ação entre amigos”.
Eventual mudança na jurisprudência teria grande impacto sobre
o combate à corrupção no país. A autorização concedida pelo Supremo em 2016 tem
eficácia, principalmente, contra políticos e poderosos que, mesmo tendo dinheiro
para pagar bons advogados, não conseguem mais alongar tanto os processos e se livrar das punições. Sem medo da prisão, as
delações premiadas, outro instrumento fundamental para os investigadores em geral, tendem a diminuir, e o país volta a ser uma exceção à regra: em grande
parte do mundo desenvolvido, a prisão após condenação em segunda instância é
permitida; Inglaterra, França, Alemanha, Canadá, Itália e
Argentina são alguns exemplos, e os Estados Unidos chegam a ser até mais rigorosos: o
cumprimento da pena começa, muitas vezes, após a condenação em primeira
instância.
Gilmar, o porta-estandarte
da mudança, diz estar pronto para o embate. Em 2016, quando sua posição
era outra, para além de dizer que "não se conhece no mundo civilizado um país
que exija o fim do processo para prender os réus", ele anotou como positiva a prisão de
personagens graúdos, algo que poderia até levar à melhoria das condições das
cadeias brasileiras. Em favor da tese que sairia vitoriosa naquela ocasião, a maritaca mato-grossense destacou
que os réus vão perdendo a presunção de inocência à medida que o processo avança — para prender, portanto, não seria
necessário o tal trânsito em julgado. Era, de fato, um outro Gilmar. O Brasil continua a ser o mesmo, mas o autoconcedido papel desse magistrado, de dono do Supremo e decisor capaz de levar a corte para lá ou para cá, está, mais do que nunca,
evidente. Urge podar-lhe as asas.
Com Crusoé.