segunda-feira, 1 de julho de 2019

COISAS DO BRASIL — PARTE 2



Na avaliação de Dora Kramer, ao pedir ao TRF-4 o aumento da pena (de 12 anos e 11 meses) de Lula no processo referente ao sítio de Atibaia, o MPF claramente reagiu à tentativa de Gilmar Mendes de criar um atalho jurídico para a soltura do petista. Dora pondera ainda que os procuradores não só deixaram patente o tratamento que entendem deva ser dispensado ao condenado, como reafirmaram seu apoio ao ministro da Justiça, que conduziu o processo quando era juiz da 13ª Vara Federal do Paraná — à juíza substituta Gabriela Hardt coube apenas firmar a condenação e estabelecer a pena.

A narrativa de perseguição política e condenação sem provas que Lula e seus eternos apoiadores cantam em prosa e verso não se sustenta senão nos delírios megalômanos do demiurgo pernambucano — se bem que megalomania é uma característica que ele já demonstrou ad nauseam, inclusive no discurso-comício que fez no dia em que foi preso, quando disse não ser mais uma pessoa, mas sim uma ideia. Naquela época, a 8ª Turma do TRF-4 havia confirmado por unanimidade sua condenação, aumentado sua pena para 12 anos e 1 mês e, após apreciar os embargos declaratórios da defesa, determinado sua prisão. Ao então juiz Moro — que o ex-presidente vê como seu algoz — coube apenas fazer cumprir a decisão do Tribunal.

No post daquele sábado, 7, comentei jamais ter visto em 6 décadas de existência a imprensa cobrir ao vivo, durante tanto tempo, uma comédia burlesca como aquela, cujo ápice se deu na manhã do sábado, no discurso-comício feito sob medida para militontos e apoiadores em que o petista, em sua peroração patética, desafiou procuradores e asseclas, Moro e os desembargadores do TRF-4 para um debate sobre as provas que embasaram sua condenação (volta a esse assunto mais adiante). 

Se em algum momento Moro pecou, foi quando ofereceu ao condenado, “em homenagem à dignidade do cargo” (do qual Lula jamais foi digno), a opção de se entregar espontaneamente, além de vetar o uso de algemas e mandar preparar uma cela especial para acomodá-lo, esquecendo-se de que oferecer a mão a um petista implica o risco de perder o braço. Lula brincou de gato e rato com a PF durante mais de 24 horas, e quando o prazo para se entregar voluntariamente expirou, às 17h do dia 6 de abril de 2018, encastelou-se no Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e lá ficou até o início da noite seguinte. Ao longo de toda a palhaçada, integrantes da alta cúpula petista estimularam seu amado líder a não se entregar, enquanto seus advogados sugeriam o contrário. Entrementes, o STJ negou mais um pedido de habeas corpus — em seu despacho, Fachin, escreveu que a existência de recursos sub judice (no caso, os famigerados “embargos dos embargos”) não constituía fator impeditivo ao cumprimento da pena de prisão.

Terminado o “ato ecumênico” em homenagem a Marisa Letícia — que completaria 68 anos naquele sábado se não tivesse morrido 14 meses antes —, o metalúrgico que aprendeu a falar com tanto brilho que bastava abrir a boca para iluminar o mundo de Marilena Chauí resolveu tomar mais uns tragos, almoçar e dormir a sesta antes de, finalmente, dignar-se de ser conduzido pela PF ao aeroporto de Congonhas e de lá para Curitiba, onde uma sala VIP havia sido preparada para acomodá-lo (ao custo de 10 mil reais por mês).

Réu em 10 ações criminais (detalhes mais adiante), condenado em duas e preso há 450 dias, o pseudo parteiro do Brasil Maravilha continua protestando inocência — e assim continuará até o dia em que o diabo finalmente o carregar. No processo do tríplex, nada menos que 21 juízes viram evidências de culpabilidade suficientes para condená-lo ou, conforme o caso, manter sua condenação e ordem de prisão. Seu batido ramerrão — em que os ratos põem a culpa no queijo — insulta nossa inteligência com a fantasiosa teoria em que a ratazana mor atribui suas mazelas, que são mera consequência dos crimes que cometeu, a uma conspiração política, a uma tramoia da elite que não a perdoa por dar aos pobres a chance de andar de avião e comer carne, a Moro e os procuradores da Lava-Jato, que o condenaram sem provas para impedi-lo de disputar a presidência da Banânia. É muita cara de pau!

Observação: Em nenhum país que se pretende civilizado e democrático a candidatura de um criminoso condenado e encarcerado seria levada a sério, e tampouco que as mais altas esferas judiciais declarassem que a inelegibilidade do presidiário era tão chapada quanto sua culpabilidade — coisa que um servidor do cartório eleitoral poderia ter dito logo no começo dessa patética função circense. Mas estamos no Brasil, o “sistema” está fora do ar e por conta disso tivemos de pagar por uma das farsas mais velhacas já aplicadas na política deste país.

Insulta nossa inteligência, também, a falácia de que todos os juízes que condenaram o pseudo redentor dos miseráveis — muitos dos quais foram indicados por ele próprio ou por sua imprestável sucessora — se mancomunaram para colocá-lo atrás das grades sem prova alguma. Seriam todos perseguidores e/ou incompetentes? Só mesmo nos delírios mais megalomaníacos do parteiro do Brasil Maravilha — e na cabeça oca daqueles cuja capacidade de discernimento, rasa a ponto de uma formiguinha conseguir atravessar sem sequer molhar as canelinhas  que tamanho absurdo poderia fazer sentido.  

Observação: Se você tem estômago forte para rever cenas autênticas com Lula, Dilma, Cunha, Temer, Cardozo e outros ícones da corrupção nacional, não deixe de assistir ao documentário Democracia em Vertigem, no qual a cineasta Petra Costa ora pinta o desempregado que deu certo como herói nacional, ora deixa claro que ele enveredou pelo caminho sem volta da corrupção ao comprar apoio parlamentar através do Mensalão, mas as cenas gravadas no dia de sua prisão são imperdíveis.


Durante a tramitação do processo sobre o tríplex do Condomínio Solaris, na badalada Praia das Astúrias, que foi totalmente remodelado e ricamente decorado pela construtora OAS como “agradecimento” pela ajuda na obtenção de contratos da empreiteira com a Petrobras, os advogados de Lula ingressaram com mais de 100 recursos. Nunca antes na história deste país houve outro caso em que o direito de defesa tenha sido tão amplamente explorado. Ao contrário do que afirma a defesa, o então juiz Moro e os três desembargadores da 8º Turma do TRF-4 não condenaram o demiurgo de Garanhuns com base “em meros depoimentos”, mas à luz de um conjunto avassalador de provas documentais — tais como termos de adesão e compromisso, formulários (alguns dos quais rasurados, mostrando intenção de ocultar a real propriedade do imóvel), contratos, declarações de Imposto de Renda, emails trocados entre executivos da OAS e até imagens do ex-presidente em visita ao imóvel. Não havia como não reconhecer a culpabilidade chapada do acusado — tanto assim que o TRF-4 aumentou a pena de 9 anos e meio para 12 anos e 1 mês de prisão. 

A defesa levou o caso aos tribunais superiores, não para analisar o mérito da condenação, até porque o reexame das provas só é possível até a segunda instância, mas para conseguir os habeas corpus que livrariam o exterminador do plural do cumprimento antecipado da pena. Se tivesse havido arbitrariedade, se a defesa tivesse sido cerceada ou prejudicada, se a condenação tivesse alguma irregularidade jurídica ou factual, haveria motivo para conceder o habeas corpus. Mas nenhum dos cinco membros da 5ª Turma do STJ (Fischer, Mussi, Fonseca, Dantas e Paciornik) e os seis ministros que votaram contra o HC de Lula no Supremo (Fachin, Moraes, Barroso, Rosa, Fux e Cármen) viram qualquer irregularidade no processo. E os que votaram a favor (Gilmar Mendes, Toffoli e Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello) só o fizeram porque são contrários ao início da execução da pena após condenação em segunda instância — se algum deles tivesse encontrado algum problema, certamente teria feito alguma menção explícita, mas todos embasaram seus votos na tese geral a respeito da presunção de inocência.

Na semana passada, ao decidir não decidir sobre o habeas corpus com base na suposta parcialidade do ex-juiz Sergio Moro, a 2ª Turma do STF deu abertura a uma manobra indecente, mas não inédita, semelhante ao salvo-conduto dado pelo plenário da Corte ao próprio Lula, em março de 2018, quando, depois desistiram de prosseguir com o julgamento e, atendendo a um pedido verbal da defesa, concederam uma estapafúrdia liminar que impedia a prisão do molusco até que o mérito do recurso fosse julgado — o que só ocorreu depois dos feriados da Semana Santa. Desta vez, o procedimento foi parecido, mas o resultado, felizmente, foi diferente: Celso de Mello votou com Fachin e Cármen Lúcia contra a concessão da liminar ou seja, Gilmar e Lewandowski, que votaram favoravelmente à soltura do paciente, "entraram pelo decano", como disse o sempre inspirado José Simão.

STF esteve muito perto de manchar sua história como poucas vezes se viu na vida deste país: uma decisão equivocada da corte, motivada por determinadas visões jurídicas ou mesmo ideológicas, é grave e perigosa, mas ainda passível de debate e argumentação. Já se Lula tivesse conseguido a liberdade, estaríamos diante da validação do truque regimental, da institucionalização da chicana, do abandono da missão de julgar, da promoção objetiva da injustiça ou do privilégio por meio de atalhos, independentemente de haver alguma intencionalidade neste sentido. E isso não há como defender.

Eu pretendia concluir este post com uma breve retrospectiva da situação jurídica do deus pai da Petelândia, mas o tamanho do texto recomenda deixá-la para uma próxima oportunidade.