Não é de hoje que o Estado brasileiro atua exclusivamente para satisfazer ânsias de riqueza de seus mandatários e funcionários, a ponto de o verbo servir perder o sentido ativo e preservar apenas o significado passivo para a casta privilegiada e a burocracia que se presta a trabalhar só para ela.
Notícias
recentes trazem a público indícios claros de que os Poderes da República, na
ânsia de proteger seus privilégios corporativos, tomam o mando — que em teoria
é do povo — para exercê-lo em função de uma classe social que se reproduz por
via hereditária, como no ancien régime, por nomeação do chefe do
Estado, por concurso público ou até pelo voto.
Essa ruptura
do mais pétreo dos preceitos constitucionais — aquele segundo o qual todo o
poder emana do povo e em seu nome ser exercido — teve seu apanágio retórico no
julgamento do habeas corpus impetrado
por um condenado por crime comum. Nele, o advogado de defesa e político
profissional Roberto Battochio
elegeu como símbolo da justiça que pedia para seu representado, o ex-operário Lula, o discurso do nobre advogado do
monarca Luís XVI, Guillaume-Chrétien de Lamoignon de
Malesherbes (atenção para a duplicação da nobiliárquica preposição de)
contra o “punitivismo” jacobino na Revolução
Francesa.
Agora é
muito provável que estejamos em pleno paroxismo dessa lenta e inexorável tomada
de poder numa democracia que se perde pela aristocracia de estamento nesta
República (de res publica, no latim, coisa pública) assaltada pelos interesses privados de uma classe
cínica e insaciável, que não tem espírito cívico nem dá a mínima para a moral e
os bons costumes.
O presidente
mais impopular da História, Michel Temer,
protagonizou recentemente um dos episódios mais representativos, mas não o
único, nesse sentido. Para resolver o impasse criado pela falta de rumo,
autoridade e competência na gestão — o movimento organizado para defender os
interesses exclusivos de caminhoneiros e empresas transportadoras —, o chefe do
governo atropelou o bom senso e a lei, cedendo a tudo o que exigiam os
amotinados. Com isso interrompeu a política de preços adotada para recuperar as
finanças da Petrobras, quase falida pelo furto de seus ativos nos desgovernos
de Lula e Dilma, restabelecendo o tabelamento de seu correligionário José Sarney para o diesel e para o
frete.
Com a “bolsa
caminhoneiro”, como definiu o Estado em primeira página na
edição de domingo 17 de junho, o chefe do Executivo adotou uma medida ilegal,
pois, conforme advertiu o CADE, violou o princípio da livre concorrência, marco
basilar da economia de mercado vigente no País. Ou não é mais?
O economista
Edmar Bacha, em entrevista a este
blog na semana passada, lembrou que Temer
teve o juízo de montar “uma equipe econômica da melhor qualidade (que) opera
com relativa autonomia, dentro dos estreitos limites da atual
conjuntura”. Isso só “não funcionou porque o presidente perdeu
todo o seu capital político com a revelação de suas tratativas pouco
republicanas na calada na noite com o empresário Joesley Batista. A partir daí o governo teve de se dedicar a barrar
o impeachment, incapaz de desenvolver uma agenda econômica positiva”, disse Bacha.
O episódio
lembrado pelo criador do termo “Belíndia” (para definir o Brasil como parte
Bélgica e parte Índia) é um dos marcos de fundação dessa aristocracia de
cartéis. Estes vão do pacto entre políticos governistas e da oposição, grandes
empresários, principalmente empreiteiros, e burocratas de estatais, em
particular a Petrobras, e autarquias, até o compromisso ilegal do presidente
para interromper a recente pane seca e o consequente desabastecimento de derivados
de petróleo e gêneros alimentícios.
Um dos lemas
dessa situação surreal em que o quinteto Temer,
Padilha, Moreira, Marun e Etchegoyen meteu o País é a frase com
que o primeiro recebeu o meliante do abate Joesley
Batista na garagem do Jaburu (mais adequado seria chamar o palácio de
Guabiru) na calada da noite: “Tem que manter isso, viu?”
Apesar da
desesperada tentativa dos asseclas palacianos de desqualificarem a gravação do
palpite pra lá de infeliz, ela se perdeu por lembrar outro lema, que pode valer
para essa classe de roedores do erário, da lavra do presidente do MDB
temerário, Romero Jucá, ao
correligionário que presidiu a BR Distribuidora (de derivados e propinas), Sérgio Machado: “Tem que mudar o
governo pra poder estancar essa sangria”.
A sangria
ainda não foi estancada, apesar do esforço que tem sido feito pelos chefões
políticos. Mas as eleições gerais de outubro não são nada promissoras em
relação à atuação do combate à corrupção na polícia e na Justiça. Nenhum
presidenciável deu até agora sinal de que esteja fora desse pacto. Um deles, Geraldo Alckmin, cujo PSDB foi
derrotado por Dilma e Temer em 2014 e hoje é parceiro do
governo, teve o descaramento de dizer que este “padece de uma questão de
legitimidade”, como se o chanceler Aloysio
Nunes Ferreira não fosse tucano.
As duas
frases sobre as quais se sustenta a oligarquia dos cartéis nos levam, destarte,
a introduzir nessa constatação da total deturpação do Estado de Direito em
estágio de defeito o Poder Legislativo.
Jucá, pernambucano de Roraima, onde
faz praça e troça, é um bom exemplo da transformação do governo do povo em
desgoverno dos polvos. Desde que o “caranguejo” Eduardo Cunha se assenhoreou do comando da produção de leis, o
Congresso passou a servir apenas a “manter o que está aí” e, para isso, a
procurar fórmulas legais para “estancar essa sangria”, aplicando um garrote vil
contra a ação moralizadora de agentes, procuradores e juízes federais de
primeira instância.
Essa tarefa
mesquinha e traiçoeira contra o povo que deputados e senadores fingem
representar começou a ser cumprida com a “lei da bengala” que mantém os compadritos (apud Jorge Luís Borges) nos tribunais
superiores de Contas, Justiça e Supremo. Com a vigilância sobre propinas e caixa 2 na contabilidade
das campanhas eleitorais, para garantir suas vagas e as de parentes e cupinchas,
os legisladores criaram o Fundo
Eleitoral, que, segundo a Folha de S. Paulo, usando dados do TSE,
representa 86,5% das receitas de seus partidos.
Duas
notícias, publicadas lado a lado na primeira página do Estado de
segunda-feira 18, complementam a anterior. Uma dá conta de que a eleição para o
Senado este ano terá número recorde de candidatos – 70% – em busca de
reeleição. Em entrevista a Fausto Macedo
e Ricardo Galhardo, o ex-diretor da
Polícia Federal Leandro Daiello
informou que “há material para mais cinco anos de operações”.
A reeleição
de qualquer político que possa estar nesse “material” é uma ameaça à
continuidade do combate à corrupção, sem o qual não há como o Brasil deixar de
ser este trem descarrilado, cujo farol é a luz que se poderá ver saindo do
túnel das urnas. O pior de tudo é que a esperança que a sociedade passou a ter
na ação das operações a que Daiello
se referiu está nas mãos de quem mais as põe em risco. Os seguidores de Malesherbes, representados pelo
quinteto Gilmar, Lewandowski, Toffoli e a dupla Mello,
continuam a atuar como garantes não da igualdade dos cidadãos perante a lei,
assegurada pela Constituição vigente, mas dos caprichos e “dodóis” dos clientes
abonados das bancas que abrigam mulher, genro, amigos e antigos parceiros de
convescotes e salamaleques.
Vitimados
pelo desemprego, pela violência e por saúde e educação de péssima qualidade, os
pobres, que nem sonham poder um dia exigir seus direitos no fechadíssimo clube
da impunidade dos que são mais iguais perante a lei, pagam a conta do
desgoverno do Executivo, da safadeza
do Legislativo e do cômodo uso da
definição de Corte para seu
colegiado com os mesmos frufrus e minuetos das monarquias absolutistas. A
proibição da condução coercitiva de delinquentes de colarinho-branco e a
tentativa de garantir a honra de políticos desonrados proibindo fake
news são exemplos recentes, mas não os únicos, de como os ministros de
tribunais superiores participam, sem pudor, do golpe dos “aristo-ratos” que se
locupletam como dantes nos cartéis de Abrantes.
Publicado no Blog do Nêumanne