Dizem que Deus é brasileiro, mas que se autoexilou e queimou o passaporte quando Bolsonaro foi eleito. Outros afirmam que Ele jogou a toalha semanas antes, quando viu que os eleitores haviam
escalado dois cavaleiros do apocalipse para o embate final. Até Nossa Senhora
Aparecida, padroeira do Brasil há 90 anos, está tão assustada com a
situação do país que deu entrada num pedido de adicional por insalubridade. De
acordo com o site Sensacionalista, a Santa, constantemente atacada pela bancada evangélica do Congresso — que a acusa
de ter conseguido o emprego por ser mãe do chefe — chegou a cogitar de
largar o posto e passar a ser padroeira da Síria. O que ela queria mesmo era se aposentar,
mas tem apenas 300 anos e, portanto, ainda não tem direito ao
benefício.
Brincadeiras à parte, a figura que ilustra esta postagem dá uma boa ideia do tamanho da encrenca. O desalento é geral. Menos entre os bolsomínions,
é claro — a exemplo de como se comportam os devotos da seita do inferno diante
de seu sumo pontífice ora presidiário, as toupeiras bolsonaristas, cegas pelo fanatismo
desbragado, se deliciam com qualquer flatulência do "mito", pouco lhes importando o fato de o capitão vira-casaca ter quebrado suas promessas de campanha, como acabar com a reeleição,
combater o crime, a corrupção e o PT.
Depois de preterir Deltan
Dallagnol para o cargo de PGR e
nomear Augusto Aras — que ameaça destituir
Dallagnol do comando da Lava-Jato
em Curitiba devido aos factoides criados pela Vaza-Jato de Verdevaldo das
Couves —, o capitão promete indicar para o STF ninguém menos que o atual AGU,
André Luiz de Mendonça, que é
protegido de Toffoli e apoia de
forma ampla, geral e irrestrita o inquérito aberto na Suprema Corte para
perseguir qualquer cidadão que fale mal dos togados. Mas pior seria se pior
fosse: se o bonifrate do sevandija de Garanhuns tivesse vencido o pleito, aí,
sim, olharíamos para o brejo e veríamos da vaca somente as pontas dos chifres.
Seja como for, não há motivos para comemorações. Ao celebrar um
acordão com os chefes dos demais podres Poderes — para escapar de uma deposição
que estaria sendo articulada por parlamentares e parte da sociedade civil, além
de blindar seu primogênito contra as investigações do escândalo Queiroz —, Bolsonaro
se tornou refém do Congresso e do Judiciário. E falando no Judiciário, tão logo
retornou do Vaticano, onde se fez de
romeiro devoto de Santa Dulce dos Pobres,
o mestre de cerimônias do circo supremo mandou abrir as bilheterias e apregoar
que amanhã haverá função, e que o ponto alto do espetáculo será a prisão após condenação em segunda
instância exibindo-se no trapézio sem rede de segurança.
Analogias à parte, eventual reversão na jurisprudência que
vem se sustentando a duras penas fará com que cerca de 170 mil condenados,
entre os quais o picareta dos picaretas, deixem a cadeia e aguardam em
liberdade o julgamento de seus recursos. Por conta do vasto cardápio de
chicanas protelatórias que as quatro instâncias do Judiciário colocam à disposição
de criminalistas estrelados, esses criminosos só voltarão para a cadeia no dia de São Nunca, já que a pretensão punitiva do Estado não tem como
vencer a corrida contra o trânsito em julgado das condenações.
O encarceramento de condenados em duas instâncias
representou uma reviravolta. Além de levar à cadeia gente que se imaginava
invulnerável, inverteu a lógica dos recursos. Preso, o condenado mantém intacto o direito de recorrer, mas perde o interesse pela postergação dos julgamentos. A abertura das celas restabelece a lógica da
procrastinação. Com a restauração do velho ambiente propício à impunidade, a
restrição do foro privilegiado, que parecia o fim de um privilégio, pode virar
um superprivilégio: quem é julgado no STF
não tem a quem recorrer, mas um corrupto empurrado para a primeira instância
passa a dispor de todo o manancial de recursos judiciais. Com sorte e dinheiro
para contratar bons advogados, provavelmente baterá as botas e passará a comer capim pela raiz na Chácara do Vigário muito antes de ver o sol nascer quadrado.
Quando assumiu a presidência do Supremo, Toffoli sinalizou que submeteria ao plenário uma proposta
"conciliatória", que definiria como marco inicial do cumprimento da
pena a condenação em terceira instância.
Quando o recurso de Lula foi rejeitado
por unanimidade no STJ, o interesse
da banda podre da Corte por essa alternativa foi pro brejo junto com a vaca. Agora,
ao pautar a rediscussão do tema (será a quarta vez em menos de
quatro anos), o eminente ex-advogado do Sindicato dos Metalúrgicos, do PT e das campanha de Lula pode realizar o sonho de todos os
bandidos de colarinho-branco e do crime organizado do Brasil, que é cometer
crimes e, se pilhados com a boca na botija, recorrer em liberdade até o
trânsito em julgado de suas sentenças.
Nunca é demais lembrar que quem está por trás desse rebosteio
é ninguém menos que o ministro Gilmar
Mendes, apelidado de Maritaca de Diamantino
por Augusto Nunes e brilhantemente
definido pelo também togado supremo Luís
Roberto Barroso como "uma pessoa
horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia, uma desonra
para o tribunal, uma vergonha, um constrangimento". A anunciada mudança de posição desse
magistrado — que foi indicado para o STF
em 2002 pelo então presidente FHC, e
que votou a favor da prisão em segunda instância e se mostrava disposto a
aceitar a proposta de Toffoli —, somada aos votos de Celso de Mello, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, pode desencadear um formidável retrocesso se sensibilizar os ministros Alexandre de Moraes e Rosa Weber.
Moraes, indicado
por Michel Temer para a vaga de Teori Zavascki, é o novato
da Corte e unha e carne com seu atual presidente. Este, que deve
o cargo a Lula e ostenta em seu
invejável currículo, além de uma longa lista de bons serviços prestados ao PT, duas reprovações em exames para juiz
de primeira instância, pode ser levado a apoiar o trânsito em julgado se sua
proposta não for aceita. Já
a ministra Rosa, cujos votos costumam
ser tão ininteligíveis quanto os pronunciamentos que a ex-presidanta Dilma fazia de improviso, já se
declarou a favor do trânsito em julgado, mas vinha acompanhando a maioria a
favor da prisão em segunda instância por entender que o tribunal deve manter
coerência em suas decisões. Para evitar o pior, é preciso que os cinco
ministros que votaram a favor da prisão em segunda instância — Moraes, Barroso, Fux, Fachin e Carmem — apoiem a proposta de Toffoli,
que assim derrotaria seus próprios aliados.
Por último, mas não menos importante: o julgamento das nefastas ADCs (que dificilmente será concluído na sessão de
amanhã) pode ter consequências também no âmbito político-eleitoral. Mesmo que o
plenário decida pelo trânsito em julgado, Lula estaria impedido de se candidatar, pois a lei da Ficha-Limpa explicita
que um condenado em segunda instância fica inelegível por oito anos contados
a partir do cumprimento da pena. A menos que a 2ª Turma do STF anule no
caso do triplex, só restará ao petralha tentar deslegitimar a própria
lei, argumentando que, se a condenação em segunda instância deixou de ser o
final de um processo penal, ela não pode ser considerada como fator impeditivo
de uma candidatura eleitoral. Isso daria azo a outra disputa jurídica que fatalmente
desaguaria no STF.
Merval Pereira
lembra que a exigência de não ter condenação em segunda instância para um
candidato é igual à exigência da idade mínima ou ao domicílio eleitoral, ou
seja, nada tem a ver com a legislação penal. Mesmo porque ela foi aprovada em
1990, quando ainda vigia a exigência do STF
do trânsito em julgado para a prisão de um condenado. Por outro lado, não se
pode perder de vista que o ministro Gilmar
Mendes (sempre ele) faz críticas severas à lei em questão, chegando mesmo a
afirmar que ela parece ter sido escrita por um bêbado.
Como o futuro a Deus pertence, vamos aguardar o desenrolar
dos acontecimentos. E torcer. Se isso não ajudar, atrapalhar é que não vai.