Resolvi publicar a sequência histórica iniciada no post
do último dia 9 devido ao desalento — não sei se o termo define a sensação que tenho ao acompanhar o noticiário, sobretudo a parte que trata da
política tupiniquim, mas não me ocorre outro melhor diante de um país que vai
de mal a pior.
Li certa vez que furacões e tempestades tropicais são batizados
a partir de uma lista de 126 nomes escolhidos pelo comitê da Organização Meteorológica Mundial
e repetidos em um ciclo de 6 anos. E que, desde a implantação dessa lista, 67
nomes já foram retirados — o primeiro foi Hazel, em 1954, e o últimos
foram Dennis, Katrina, Rita, Stan e Wilma,
na violenta temporada de 2005. Talvez fosse a hora de incluir Bolsonaro em tão seleta confraria.
Dias atrás, nosso indômito capitão — cuja maior habilidade
consiste em culpar os outros pelos próprios malfeitos — teve o desplante de
dizer que a CPI do Genocídio conspurcou a imagem do Brasil aos olhos do
mundo, e que vacinas
contra a Covid podem causar AIDS. De tão rocambolesca, essa bolsonarice
mereceu críticas
do próprio deputado-réu que preside a Câmara e é unha e carne com sua
alteza irreal. Não à toa, às vésperas da leitura
do relatório final, a Comissão resolveu incluir o pedido de suspensão
das redes sociais de Bolsonaro devido à disseminação de notícias falsas
e desinformação sobre a pandemia. Também não à toa, o YouTube removeu
33 vídeos do canal de Bolsonaro desde abril.
Durante seis meses, o Brasil acompanhou o desenrolar da mais
importante CPI da história desta banânia desde sua redemocratização. Reconheço
que a visibilidade proporcionada pela transmissão ao vivo dos depoimentos e
embates acalorados transformou alguns senadores desconhecidos em celebridades
instantâneas, resgatou a imagem de outros e serviu de palanque eleitoral para a
grande maioria. Mas é impossível negar que o relatório foi devastador para a
imagem do governo como um todo — e para o Sultão do Bolsonaristão em
particular.
Em quase 1.200 páginas,
o senador Renan Calheiros enumerou uma teia de ações e omissões
do governo, listando uma série de decisões equivocadas, exemplos de
incompetência, suspeitas de corrupção e inúmeras situações que ressaltam o
negacionismo e a pregação oficial contra as medidas de prevenção à doença. São
acusações sérias e precisam ser investigadas. Para que todo esse trabalho não
se perca, e imperativo que a encenação política dê agora lugar à realidade e os
fatos ocupem o lugar das teorias.
Convencido pelos colegas, o relator suprimiu o crime de “genocídio”
— até porque exageros motivados por conveniências políticas podem fragilizar a
credibilidade do relatório e comprometer todo o árduo trabalho dos senadores. A
princípio, Renan solicitou o indiciamento de Bolsonaro e outras
65 pessoas — entre as quais 4 ministros do governo (Marcelo Queiroga, Onyx
Lorenzoni, Wagner Rosário e Braga Netto), três ex-ministros (Eduardo
Pazuello, Ernesto Araújo e Osmar Terra) e 3 filhos do
presidente (Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro). Na versão
atualizada ontem, porém, já havia
81 nomes, sendo 79 de pessoas físicas e dois de pessoas jurídicas.
É a primeira vez na história que uma comissão parlamentar aponta uma lista de
delitos tão extensa atribuídos a um presidente da República.
O relator destaca em seu parecer que Bolsonaro agiu
de modo consciente e sistemático contra os interesses do Brasil, colaborou
fortemente para a propagação da Covid, foi responsável por erros de
gestão e tinha interesse em encorajar os brasileiros a se expor ao contágio sem
proteção, para que pudessem ser infectados pelo vírus sem barreiras. "A
população inteira foi deliberadamente submetida aos efeitos da pandemia, com a
intenção de atingir a imunidade de rebanho por contágio e poupar a economia, o
que configura um ataque generalizado e sistemático no qual o governo tentou,
conscientemente, espalhar a doença", diz o relatório em um dos trechos,
segundo matéria
publicada em O Globo.
O relatório está sendo votado enquanto eu rabisco estas
linhas. Em entrevista à CNN Brasil, o senador Randolfe Rodrigues,
vice-presidente da Comissão, afirmou que Bolsonaro é mencionado 80 vezes
e lidera a lista dos supostos crimes com nove citações. Uma vez aprovadas pela
Comissão, as propostas de indiciamento devem ser encaminhadas ao Ministério
Público e à Câmara dos Deputados. O documento traz ainda 17
propostas legislativas, entre as quais a de instituição dos crimes de
extermínio e de criação e disseminação de fake news, bem como de
alterar a lei 1079/1950, estabelecendo um prazo de 30 dias, prorrogável
por igual período, para manifestação do presidente da Câmara dos Deputados
sobre pedidos de impeachment contra o presidente da República, e
determinando que, uma vez cumpridos os requisitos legais, o recebimento da
denúncia será deferido.
Atualização: Deu a lógica: o relatório foi aprovado pelo G7 e rechaçado pelos governistas Moe, Larry e Curly e por um coió autodeclarado "independente", que admitiu que Bolsonaro "errou ao provocar aglomerações e ao dar declarações infelizes sobre a vacina", mas votou contra mesmo assim, afirmando que o relator "se perdeu, errou a mão". Renan, por seu turno, caprichou: "Há um homicida no Palácio do Planalto". Para o senador alagoano, Bolsonaro agiu como “missionário enlouquecido para matar o próprio povo”, e “bestas feras” tentaram ameaçar a Comissão, mas não obtiveram sucesso.
Na manhã de ontem, a lista de indiciados chegou a 79 pessoas. A pedido do senador Alessandro Vieira, o relator incluiu o nome do também senador Luis Carlos Heinze — defensor incondicional da eficácia do "tratamento precoce" e bobagens que tais. Ao final, Vieira voltou atrás (ainda que a contragosto), e Renan acolheu sua solicitação. O relatório deve ser apresentado ao presidente do Senado e encaminhado à PGR na manhã desta quarta-feira. Aras havia dito disse que não será omisso diante dos fatos levantados pela comissão — caso ele não dê sequência às investigações, os senadores estudam cogitam de ingressar com uma ação penal privada subsidiária no STF.
Em sua última manifestação na CPI, o sujo criticou o mal lavado, ou melhor, o senador Flávio "Rachadinha" Bolsonaro leu uma relação de 21 crimes “supostamente cometidos” por Renan durante a pandemia, entre eles o de “perseguição”, e disse que o relatório final era uma “peça política”.
Desde o início da pandemia, Bolsonaro, de maneira absolutamente irresponsável, colocou o governo na contramão de praticamente todas as recomendações feitas pelas autoridades sanitárias. Foi contra o isolamento social e a obrigatoriedade do uso de máscaras, demorou a comprar as vacinas, infringiu reiteradamente as medidas sanitárias impostas pelos governadores e prefeitos, praticou curandeirismo e charlatanismo, estimulou a população a se aglomerar, incentivou a produção de medicamentos reconhecidamente ineficazes contra a Covid, e por aí segue a procissão. A CPI ouviu vários depoimentos que mostraram ações explícitas de negacionismo e pregação oficial contra as medidas de prevenção, além de obter relatos de omissões que podem ter ampliado a contaminação e o número de mortes.
A despeito do que reza a Constituição de 1988 — que o
próprio Ulysses Guimarães reconheceu ser
imperfeita, tanto que admitia reforma —, não pode caber apenas ao
presidente da Câmara a última palavra sobre os pedidos de impeachment; é
preciso criar uma comissão permanente para avaliar as solicitações ou atribuir
a outra já existente essa função. Para além disso, diferentemente das decisões
de arquivamento de inquéritos determinadas por procuradores e promotores — que
são submetidas a revisão —, as do procurador-geral da República são
"soberanas". E o atual, Augusto Aras, disputa com Geraldo
Brindeiro o epíteto de "engavetador-geral
da República". Para mudar essa vergonha, o relator incluiu uma PEC
que prevê que o procedimento seja seguido "inclusive pelo chefe do
Ministério Público", ou seja, pelo procurador-geral de plantão.
Não faltam motivos para considerarmos o governo Bolsonaro
o pior da história recente — eu achava a nefelibata da mandioca
insuperável, mas o capitão conseguiu me surpreender. Claro que a escolha feita
pelo sempre mui esclarecido eleitorado tupiniquim, no primeiro turno do pleito
de 2018, não nos deixou alternativa que não apoiar o "furação Bolsonaro"
no segundo. Até porque o bonifrate do então presidiário de Curitiba
jamais foi uma opção. Mal sabíamos nós, então, que não tardaríamos a comprovar (da
pior maneira possível) o quão acertado é o adágio segundo o qual "quem
semeia ventos colhe tempestades". Que Deus nos ajude no ano que vem,
se ainda houver um Brasil no ano que vem.
Como diz outro aforismo, "o que começa mal acaba mal".
Mas eu não esperava que esse "mal" pudesse ser "tão pior".
Em fevereiro de 2019, dias antes de Bolsonaro completar 2 meses no cargo
para o qual ele
próprio reconheceu que não foi talhado, eu comentei que me causava
espécie o fato de muitos que defendiam o governo se comportarem nas redes
sociais como petistas
de sinal trocado, como se não tivessem se dado conta de que a disputa
eleitoral terminara, que o treino acabara e que o jogo havia começado, embora o
próprio presidente desse sinais de continuar em campanha. Pena eu não ter feito
uma fezinha no jogo do bicho naquele dia. Segue um excerto da postagem:
"Não há como não ficar apreensivo diante da
ingerência da prole real no governo federal, como se viu no lamentável episódio
que resultou na exoneração do coordenador de campanha, advogado e
pau-pra-toda-obra, Gustavo Bebianno. Escolher seus ministros e
demiti-los a qualquer tempo é prerrogativa do presidente, mas não é aceitável
ele transformar uma questão de somenos numa aula magna sobre as misérias
políticas do governo. (...)Apoiar Bolsonaro no comando
desta nau de insensatos é fundamental. Torcer contra e sabotar projetos
importantes, como a PEC da Previdência e o pacote de medidas
anticrime e anticorrupção, é coisa da escória inconformada com a derrota do
ventríloquo e seu boneco, de quem não se poderia esperar comportamento
diferente (...), mas daí a aplaudir as asnices do governo vai uma longo
distância. (...)Para além do manifesto despreparo e do 'estilo despojado' de Bolsonaro —
que beira o ridículo quando ele se deixa fotografar, numa reunião de cúpula
sobre a reforma da previdência, trajando uma camiseta pirata do
Palmeiras e calçando chinelos Rider —, a constante preocupação do
presidente com supostas conspirações orquestradas por adversários reais e
imaginários gera um clima de desconfiança e incerteza sobre seu processo mental
e sua sistemática atuação em relação aos filhos. Talvez a imagem tosca que ele
transmite seja uma construção planejada e conscientemente administrada, mas daí
a ter um compromisso deliberado com o mau gosto..."
Dois anos e sete meses depois, durante a reunião do G20
em NYC, Bolsonaro voltou a demonstrar que não tem a menor noção
da liturgia do cargo. Para além de outras barbaridades, ele sua comitiva de
puxa-sacos foram fotografados como uma trupe de indigentes comendo
pizza em pé, na calçada. Como bem lembrou o ex-ministro Maílson da
Nóbrega em sua coluna na edição de Veja desta semana, o cargo de
presidente da República tem alto valor simbólico — o modo como ele discursa, se
veste e se dirige ao público repercute, e dele se esperam compostura,
tolerância, sobriedade, temperança e autocontrole.
Bolsonaro não deveria calçar chinelos de plástico em
público, nem receber autoridades trajando camisetas de clubes de futebol. Nada
a ver com elitismo. Na democracia representativa, pressupõe-se que a eleição é
um processo de seleção de pessoas da elite com atributos para o trato da coisa
pública. Isso implica a percepção da liturgia e do significado do exercício do
poder, requerendo posturas compatíveis com essas qualificações. Foi assim com George
Washington.
Herói épico da vitória na Guerra da Independência
contra a Inglaterra, o líder político, militar e estadista norte-americano
renunciou à remuneração de comandante das tropas. Liderou com equilíbrio,
firmeza e dignidade a assembleia que escreveu a Constituição. Lá, perguntado se
o chefe do governo deveria ser tratado como “Sua Alteza”, optou por
chamá-lo simplesmente de “Senhor Presidente”, como é até hoje. A força
de seu caráter foi fundamental para a aprovação do texto final e para sua
ratificação pelos treze estados originais.
Eleito por unanimidade pelo Colégio Eleitoral, Washington
pensou nos mínimos detalhes quando se deslocou, em 1789, de Mount Vernon para
Nova York, onde tomaria posse do cargo (a cidade foi a capital entre 1785 e
1790). Avaliava que cada gesto e cada ação criariam precedentes para os
próximos governos. No discurso de posse, declarou que gostaria de renunciar a
seus honorários. Seu desprendimento não resistiu à lógica. Não foi atendido
nessa pretensão. Se fosse assim, somente os ricos, como ele era, poderiam
exercer a Presidência.
Washington foi um mestre na arte da liturgia do
cargo. O termo denomina os ritos e as cerimônias das igrejas cristãs, mas a
área política adotou a ideia por seu conteúdo solene. Bolsonaro é o
antípoda de Washington. Voltando ao lamentável episódio da pizza, houve
quem idealizasse a cena como o retrato de um presidente autêntico, mas o que se
viu ali se viu desleixo e comportamento lamentáveis.
Altos servidores precisam dar-se ao respeito. Washington
foi talvez o presidente que mais honrou o cargo. Aqui, o desapreço de Bolsonaro
pela forma como procede na Presidência bem diz de seu despreparo para ocupar a
posição mais excelsa desta banânia. Vituperar aos berros as instituições — como
fez na Avenida Paulista no último dia 7 de setembro —, chamar de canalha um
ministro do STF e arvorar-se de rei medieval ao dizer que não cumpriria
determinação judicial são provas eloquentes de seu destempero e desequilíbrio.
São muitos os casos de comportamento reprovável. Não é
estranho, pois, que Bolsonaro não se preocupe em seguir, com bons modos,
a liturgia do cargo. Estranho é que ele ainda continue ocupando o cargo. Vamos
esperar que o relatório da CPI mude alguma coisa. Aturar esse indigitado
por mais catorze meses, ninguém merece. Nem mesmo quem votou nele.
Retomo amanhã a sequência histórica a que me referi no início deste texto.