No Rio, a criminalidade transbordou das bocas de fumo e escritórios da milícia para os palácios Guanabara e Laranjeiras — sede do governo estadual e residência oficial do governador respetivamente. Quando era deputado federal, Jair Bolsonaro ocupou a tribuna da Câmara para elogiar milicianos — gente que despia a farda de policial nas horas vagas para vender segurança a preços módicos a comerciantes e moradores das áreas conflagradas. Na campanha de 2018, ensaiou um lamento: "As milícias tinham plena aceitação popular, mas depois acabaram se desvirtuando, passaram a cobrar “gatonet” e gás".
Faltou mencionar o transporte clandestino e as construções ilegais, mas, vindo de que tinha a seu redor o ex-sargento da PM Fabrício Queiroz e o ex-capitão do BOPE Adriano da Nóbrega, o lapso de memória foi compreensível. (Queiroz se livrou da cadeia graças ao prestígio dos amigos nos tribunais superiores de Brasília, e Adriano foi fuzilado no interior da Bahia.)
Pegando carona na campanha do "mito" à Presidência e prometendo extinguir a corrupção "mirando na cabecinha" dos bandidos, o ex-juiz Wilson Witzel se elegeu governador, mas acabou deposto por desvio de verbas da saúde. Antes disso, seu antecessor Luíz Fernando Pezão armou com Temer a tal intervenção federal cenográfica na segurança do estado fluminense.
Marielle Franco e seu motorista foram assassinados em março de 2018. No último domingo — ou seja, 6 anos de 10 dias depois — a PF concluiu o inquérito e prendeu os irmãos Brazão e o ex-chefe da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa, apontados como "mentores intelectuais" da execução. O crime ocorreu dois dias depois que o então presidente Michel Temer decretou intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro sob o general Braga Netto (que viria a ser candidato a vice-presidente na chapa encabeçada por Bolsonaro em 2022).
Os irmãos que estrelaram o epílogo escrito pela PF para o caso frequentavam o rol dos suspeitos desde o início das investigações, mas foram blindados por um delegado que se dizia "amigo" da vítima enquanto era remunerado pela milícia. A "federalização" do inquérito, sugerida pela então procuradora-geral Raquel Dodge e pelo então ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, se deu somente em fevereiro de 2023, quando o ministro Flávio Dino guindou a elucidação do caso ao patamar de "questão de honra" e impôs à PF o desafio de provar que não existe crime perfeito, mas crime mal investigado.
Ironicamente, a familia de Marielle guerreou pela manutenção das apurações no âmbito estadual, levando água ao moinho dos criminosos, que assim conseguiram embaralhar as investigações por seis anos. Em setembro de 2019, no apagar das luzes de sua gestão, Dodge tornou a requisitar a federalização ao STF — foro do conselheiro do TCE-RJ Domingos Brazão —, mas seu pedido tornou a ser indeferido. Quando Dino finalmente incluiu a PF no jogo, os executores Ronnie Lessa e Élcio Queiroz já estavam presos, e os "mentores" Domingos e Chiquinho Brazão eram tratados como suspeitos de encomendar a execução.
A PF não partiu do zero ao ser acionada por Dino. Mesmo o envolvimento do delegado Rivaldo Barbosa — que chegou a consolar a família de Marielle após o crime — já era cogitado havia pelo menos cinco anos, e em 2019 o atual superintendente da PF no Rio, Leandro Almada — que havia coordenado uma investigação das obstruções que travavam a elucidação do caso — anotou em seu relatório que a atuação de Rivaldo merecia ser averiguada (o policial era suspeito de receber R$ 400 mil para acobertar o crime). Dias atrás, o ministro Ricardo Lewandowski — que substituiu Dino na pata da Justiça — revelou à imprensa que o Supremo havia homologado a delação premiada de Ronnie Lessa —o criminoso acusado de puxar o gatilho — e que a solução do assassinato se daria em breve.
A presença de personagens que frequentavam a cena do prefácio do crime ao epílogo da investigação evidencia que: 1) as relações promíscuas entre criminosos, autoridades e o aparato policial produzem um câncer que carcome as entranhas do Estado, tornando-o coautor do crime; 2) o tumor não será extirpado sem a participação do governo federal. Nesse contexto, a elucidação tardia deveria ser considerada não como o fim, mas como o início de um processo de reestatização do combate ao crime organizado no Brasil. Falta esclarecer a motivação — que Lewandowski apenas tangenciou de forma primária.
A prisão dos mentores intelectuais impôs a mudança do letreiro da novela "Quem mandou matar Marielle?" para "Quem vai reestatizar a segurança pública no Rio de Janeiro?". Até porque a PF revelou um segredo de polichinelo: não há organizações criminosas no Brasil; o Brasil é uma organização criminosa de dimensões continentais.
Domingos e Chiquinho Brazão ocupam respectivamente as funções de conselheiro do TCE-RJ e deputado federal, os "executores" Ronnie Lessa e Élcio Queiroz são egressos da PM, e Rivaldo Barbosa — o chefe de polícia que deveria elucidar os homicídios — não só estava no bolso dos milicianos como foi nomeado para o cargo pelo general Braga Netto, então interventor federal na segurança do Rio e atual coadjuvante do inquérito em que arde o alto-comando da intentona bolsonarista.
Domingos foi de deputado estadual a conselheiro de contas em 2015 com o aval do presidente da Alerj, o deputado André Ceciliano, do PT. Eclético, o atual chefe da Secretaria de Assuntos Federativos do terceiro governo Lula já fez campanha no RJ para Dilma e Bolsonaro. O irmão Chiquinho, que se elegeu deputado em coligação com o governador bolsonarista Claudio Castro e pedia aval à Justiça Eleitoral para migrar do União Brasil para o Republicanos (ambos compõem a coligação de Lula), foi expulso do UB antes de sentar praça na nova legenda. Até o mês passado, o parlamentar integrava o secretariado do prefeito Eduardo Paes, mas reassumiu a cadeira na Câmara ao saber que Ronnie Lessa levara os lábios ao trombone numa delação à PF.
Observação: Ronnie Lessa e Élcio Queiroz prestavam serviço ao Escritório do Crime, estruturado ex-PMs major Ronald Paulo Pereira e capitão Adriano da Nóbrega — ambos homenageados na Alerj com menções honrosas propostas pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, em cujo gabinete o miliciano enfiou uma ex-mulher e a mãe.
As travas que retardaram a elucidação do caso escancararam as entranhas do relacionamento promíscuo entre a criminalidade e o aparato estatal no RJ. As milícias aderiram à lógica das coalizões, dominaram territórios e passaram a controlar o voto, eleger bancadas e indicar prepostos para cargos públicos — não só na área de segurança. Lula, que rompeu a inércia quando autorizou Dino a colocar a PF no encalço dos criminosos, deveria aprofundar o serviço capitaneando um movimento pela reestatização da segurança — não só no Rio, mas também outras praças. Resta saber se terá ousadia compatível com o tamanho da empreitada.
A volta de Mauro Cid para a cadeia sugere que a denúncia de Bolsonaro e de seus cúmplices militares e paisanos na "suposta" tentativa de golpe de Estado seja mera questão de tempo. O ex-capitão é alvo de 7 investigações no STF, das quais três, incluindo a do cartão de vacina, correm dentro do chamado "inquérito das milícias digitais". Os crimes imputados a ele pela PF têm pena de até 15 anos de prisão.
Na Presidência, Bolsonaro se comportava como um suicida didático; agora, assombrado pela perspectiva de uma prisão que já enxerga como incontornável, deixa-se filmar esboçando algo muito parecido com uma rota de fuga. Na última segunda-feira, o jornal The New York Times revelou que ele se hospedou na embaixada da Hungria em Brasília quatro dias depois que o ministro Alexandre de Moraes mandou recolher seu passaporte. Constrangido pela divulgação das imagens, o "mito" confirmou que passou dois dias lá, "conversando com autoridades da Hungria". Considerando que apenas 20 minutos separam sua residência em Brasília do prédio da embaixada, fica difícil revestir de lógica uma desculpa tão esfarrapada, incapaz de deter a maledicência segundo a qual o ex-verdugo do Planalto se equipa para pedir asilo diplomático ao déspota húngaro Viktor Orbán, a quem já chamou de "irmão".
Ninguém em sã consciência deixa tantas pistas óbvias, mas Bolsonaro, como uma caricatura que foge ao controle de si mesma, antecipa a rota de fuga. Para deixar o Brasil, ele precisaria de um salvo-conduto do governo. Negando-o, Lula estimularia os devotos do mito a erguerem suas barracas no setor de embaixadas de Brasília. Tanto didatismo submete esse dejeto da escória da humanidade ao risco de amargar antes da hora uma prisão preventiva que o STF prefere evitar.