domingo, 23 de dezembro de 2018

AINDA SOBRE O STF E A ESTAPAFÚRDIA LIMINAR DE MARCO AURÉLIO


Marco Aurélio Mello foi indicado para o STF pelo primo e então presidente Fernando Collor de Mello. Há 28 anos na Corte e a 3 da aposentadoria compulsória, sua excelência — que José Nêumanne definiu como uma mistura de Hidra de Lerna (corpo de dragão, hálito venenoso e nove cabeças de serpente capazes de se regenerar) com o deus romano Jano (retratado com duas faces, uma olhando para a frente e a outra, para trás) — parece ter uma estranha predileção por ser voto vencido. E sendo o antepenúltimo a se pronunciar nas sessões plenárias, não tem como errar, pois profere seu voto quando o entendimento majoritário já é conhecido. Na última quarta-feira, porém, o ministro se superou ao conceder monocraticamente uma liminar suspendendo as execuções provisórias de pena de 169 mil presos, dentre os quais a autodeclarada “alma viva mais honesta do Brasil”.

No melhor estilo “aprendiz de Maquiavel”, o magistrado soltarrão programou cada movimento com a precisão suíça do vistoso Rolex que ostenta no pulso: depois de deixar seu despacho pronto para a publicação, compareceu à última sessão plenária antes do recesso de final de ano e almoçou com Dias Toffoli e outros seis colegas de toga no salão nobre do STF. Tudo sem dar um pio sobre o rebosteio que ocorreria dali a poucos minutos, quando já não houvesse tempo de o colegiado reverter sua decisão. Perguntado por que não informou aos colegas do que tencionava fazer, o animador de velório respostou: "E eu lá tenho de avisar alguém? O que é isso? Vamos respeitar as instituições pátrias, as decisões são autoexplicativas". Vale salientar que, dias antes desse lamentável episódio, Toffoli anunciou que a ADC do PCdoB será analisada em abril do próximo ano.

O Supremo tem sido palco (ou picadeiro?) de decisões semelhantes de vários outros ministros, o que só apequena o Judiciário e contribui para que a população aplauda quem arreganha os dentes contra a Suprema Corte. Agindo como agiu, talvez por pirraça, já que nem Cármen Lúcia nem Dias Toffoli pautou as Ações Diretas de Constitucionalidade sob sua relatoria, a despeito de ele as ter liberado para julgamento em abril passado, Hidra-Jano achincalha os cidadão de bem, que pagam escorchantes impostos para sustentar as formidáveis mordomias do funcionalismo categorizado tupiniquim.

 Assim, ao embasar sua decisão na presunção de que o plenário altere o placar quando revir a questão da prisão em segunda instância, Marco Aurélio fez como quem aposta na Mega Sena e sai gastando por conta antes do sorteio. A liminar vigeu por pouco mais de 5 horas, tempo bastante para estarrecer os cidadãos de bem e alegrar os adeptos do Lula-Livre. A presidente nacional do PT, que dias atrás assegurou que faria o possível para Lula passar o Natal em casa, determinou que o pedido de soltura fosse protocolado imediatamente — o que foi feito 48 minutos depois de a liminar ser publicada. Aliás, a defesa do petralha ingressou com mais um recurso tão logo a decisão foi cassada, sustentando que Toffoli não a poderia ter derrubado, e que Lula deve ser solto ainda assim (as chances desse apelo produzir algum efeito prático são mínimas, pois a decisão caberá ao próprio Toffoli).

Observação: Não se deve considerar a decisão de Toffoli como um gesto favorável à Lava-Jato, até porque ele integra o grupo liderado por Gilmar Mendes, que vem tentando impor limites à operação a partir da revisão de alguns dos instrumentos que a sustentam.

A impressão que se tem é que, de uns tempos a esta parte, a função precípua do STF passou a ser apreciar chicanas pró-soltura do ex-presidente corrupto. Talvez por isso, no Paraná, a Lava-Jato tenha firmado 176 acordos de delação premiada, prendido 264 suspeitos, condenado 140 criminosos e recuperado 12 bilhões de reais, ao passo que no Supremo, apesar de as investigações envolverem quase duas centenas de deputados, senadores, ministros e até o atual presidente da Banânia, há apenas um condenado — o deputado Nelson Meurer —, e que nem preso está. 

A ignomínia de Marco Aurélio evidencia como a dicotomia fomentada pelo “nos contra eles” — criada por Lula e seguida cegamente por petistas de todo calibre — contaminou os ministros supremos, que desrespeitam decisões colegiadas e agem como se cada qual fosse um tribunal distinto. Se houvesse mais entrosamento entre eles (e um mínimo de decência), a Corte seria poupada das cada vez mais recorrentes execrações públicas. Mas não. Atuam como ilhas incomunicáveis que, por vaidade e para fazer valer suas opiniões pessoais, não raro desconsideram os precedentes da corte, fomentam um ambiente de insegurança jurídica e desgastam a imagem do Judiciário perante a população.

Alguns supremos não se dão ao respeito, conquanto o exijam: Lewandowski, que atuou mais como advogado dos réus do que como magistrado no julgamento do Mensalão e fatiou a votação do impeachment de Dilma para evitar a cassação de seus direitos políticos, mandou a PF deter um cidadão que ousou lhe dizer o STF era uma vergonha. Gilmar Mendes, que se dedica a atividades particulares incompatíveis com o cargo de ministro e é alvo de uma dezena de pedidos de impeachment, foi brilhantemente definido pelo colega Luís Roberto Barroso como “uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”. Sem citar Mendes nominalmente, mas fazendo uma clara referência a ele, Barroso disse ainda que “há gabinetes na Corte distribuindo senha para soltar corruptos”. Toffoli, atual presidente da Corte, foi citado na delação Léo Pinheiro por ter sido agraciado com reformas milionárias em sua mansão, além de ser suspeito de receber mesada de R$ 100 mil de sua mulher, a advogada Roberta Maria Rangel. E por aí vai.  

A presepada de Marco Aurélio não só fechou com chave de ouro o ano judiciário, como demonstrou de forma cabal — como se ainda fosse preciso — que o Supremo, a despeito de ser um colegiado, é um órgão cada vez mais suscetível aos humores individuais de seus integrantes. São onze ministros, onze ilhas, onze vaidades. Para além disso, o episódio mostrou que, apesar de o país ter saído há pouco de uma eleição que varreu do mapa dezenas de políticos envolvidos com corrupção, a Lava-Jato continua sob permanente ataque. Principalmente vindo de  quem deveria defendê-la.

Em abril, o julgamento da famigerada ADC forçará o plenário a reavaliar a jurisprudência capenga que autoriza o cumprimento provisório da pena. Aos votos de Toffoli, Lewandowski e do vira-casa Gilmar somam-se os de Marco Aurélio e Celso de Mello — o decano tem posição histórica contrária à prisão antecipada. Fachin, Fux, Cármen, Barroso e Alexandre são mais alinhados às demandas da Lava-Jato, de modo que o fiel da balança, mais uma vez, será Rosa Weber.

A alternativa — que vem sendo defendida pelo próprio Toffoli — é que o STJ seja a última instância antes do cumprimento da pena. Gilmar simpatiza com a ideia, mas nada se sabe quanto aos demais. Em prevalecendo tal entendimento, as chances de Lula deixar a prisão diminuem: o ministro Felix Fischer, relator da Lava-Jato no STJ, já rejeitou um recurso do petralha, que agora aguarda a análise definitiva da 5ª Turma. Se, como se espera, o apelo for rejeitado, a defesa certamente ingressará com mais um recurso ao STF. Até lá, porém, o abejto criminoso de Garanhuns seguirá preso.