terça-feira, 27 de agosto de 2019

SOBRE LULA E BOBÔ


No meio de tanta notícia ruim, salvou-se ao menos uma alma do purgatório: a 2ª Turma do STF rejeitou por unanimidade o pedido da defesa de Lula para anular atos de Sérgio Moro na ação envolvendo o Instituto Lula — o único dos três processos originários da Lava-Jato em Curitiba que ainda não foi julgado em primeira instância. Cristiano Zanin e companhia desistiram de outros dois recursos cujo conteúdo era o mesmo do pedido de suspeição de Moro tratado no habeas corpus cujo julgamento deve ser concluído hoje. Edson Fachin e Cármen Lucia votaram na primeira etapa; resta saber como se posicionará o decano Celso de Mello, já que os votos de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski são fáceis de prever.

Agora uma notícia não tão boa, sobretudo pelo impacto no mercado financeiro: Em relatório conclusivo, a PF atribuiu ao presidente da Câmara os crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e caixa dois em investigações que envolvem a delação da Odebrecht no âmbito da Lava-Jato. Com isso o IBOVESPA, que estava se recuperando timidamente durante a manhã de ontem, voltou a despencar no final da tarde.

Observação: Na planilha de propinas da empreiteira, Rodrigo Maia que é identificado como Botafogo, teria recebido R$ 350 mil nas eleições de 2010 e 2014. No dia 23, o ministro Fachin concedeu prazo de 15 dias para a PGR decidir se oferece denúncia. O presidente da Câmara, um dos mais ferrenhos defensores da recondução de Raquel Dodge ao cargo de procuradora-geral da República, não conseguiu seduzir Jair Bolsonaro, e ainda virou matéria-prima para a chefe do MPF.

Mudando de um ponto a outro, Bolsonaro negou desavenças com Moro, mas reagiu quando questionado se o ministro teria carta branca: “Eu tenho poder de veto em qualquer coisa, senão eu não era presidente. Todos os ministros têm ingerência minha. Eu fui eleito para mudar”. Sobre essa postura do capitão, submeto ao leitor as seguintes considerações:

Com quase oito meses de governo, o capitão se divide entre o político que ostenta índices positivos de avaliação e aspira à reeleição e o que é criticado até por seus apoiadores. O comportamento combativo — sobretudo contra o PT e a corrupção — que lhe garantiu a vitória sobre o bonifrate manipulado por Lula parece não funcionar fora do palanque — e talvez por isso ele continue agindo como se estivesse em plena campanha.

Sem preparo para exercer o cargo nem consciência do tamanho da cadeira presidencial, o "mito" dispara os impropérios que lhe vêm à cabeça — da defesa extremada do filho 03 para assumir a embaixada no EUA à afirmação leviana de ONGs e governadores promovem queimadas na Amazônia para prejudicá-lo. Mas há uma estratégia por trás disso: manter sua usina de crises à todo vapor desvia o foco dos índices cambaleantes na economia e mantém inabalável a fé dos bolsomínions, o que pode lhe ser útil caso não seja abatido em seu voo de galinha e venha a disputar a reeleição em 2022.

Mas será seu governo tão ruim quanto dizem? Para responder essa pergunta é preciso ter em mente que a maioria das coisas só é ruim ou boa em comparação com outras da mesma natureza. Partindo dessa premissa, a questão passa a ser: será o atual governo pior do que foi o de Dilma Rousseff ou de Lula? E se comparando ao de Fernando Collor, então, ou ao de José Sarney?

Apesar dos pesares — e olha que não são poucos — e dos esforços da turminha do quanto pior melhor, é improvável que o governo Bolsonaro seja um desastre total, ou que o centroavante seja expulso de campo antes do final da partida. Improvável não significa impossível, mas como fará a oposição para reunir no Congresso três quintos dos parlamentares se na última vez que a Câmara votou uma questão essencial, a reforma da Previdência, deu 74% dos votos para o governo?

 Em outros governos, foram necessárias graves crises econômicas para que a população ficasse em pé de guerra contra o presidente. FHC, entre a reeleição e o início do segundo mandato, teve de lidar com a desvalorização cambial e se desgastou por completo com o apagão de 2001. Dilma perdeu capital político nos protestos de 2013 e desabou de vez com o ajuste fiscal fracassado do segundo mandato. Lula é um caso à parte, pois deixou o Palácio com a popularidade nos píncaros — o que lhe permitiu eleger e reeleger a gerentona de araque e, à sombra dela, continuar enchendo as burras a mais não poder — e acabou na cadeia.

Recente levantamento feito pelo Instituto FSB Pesquisa dá conta de que 45% dos entrevistados acreditam que o presidente deixará um legado positivo. Somente 8% disseram que sua gestão será ruim e 21% apostam que ela será péssima. Mas é bom lembrar que 15 milhões de brasileiros acreditam que a Terra é plana e que a Apollo 11 jamais pousou na Lua.

Independentemente de você ter votado ou não em Bolsonaro e dos motivos que o levaram a tal, seria esperar demais que ele se revelasse um estadista, considerando a maneira como encerrou sua carreira militar. Para quem não sabe ou não se lembra, em 1986, quando tinha 31 anos, o capitão publicou na revista VEJA um artigo em reclamava do soldo — que lhe rendeu 15 dias de prisão e um processo por indisciplina. No ano seguinte, também em protesto contra os baixos salários, planejou explodir bombas de baixa potência em quartéis e academias. O assunto foi resolvido discretamente e o insurreto foi absolvido de todas as acusações, mas sua carreira militar terminou ali.

Depois que deixou o Exército, aquele que viria a ser o 38º Presidente desta republiqueta de bananas resolveu tentar a sorte como vereador — na hipótese de não se eleger, seu plano B era aproveitar o curso de mergulho que fizera anos antes para trabalhar como limpador de casco de navio. Após dois anos na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ele venceu a primeira das 7 eleições para deputado federal que disputou. No Congresso, respondeu a sete processos por quebra de decoro parlamentar, apresentou 172 projetos e foi relator em 73 deles, mas conseguiu aprovar somente dois. Passou os 27 anos seguintes como um membro do baixo-clero, sem destaque, sem poder e sem uma turma para chamar de sua. 

Em meados de 2014, então filiado ao fisiológico PP — cuja bancada de 40 deputados era adestrada para apoiar qualquer um com chance de vencer —, apresentou-se como opção para concorrer ao Planalto e lançou seu ultimato: “Ou o PP sai da latrina ou afunda de vez”. Graças à Lava-Jato, o PP afundou de vez; graças a sua pregação antipetista, foi reeleito como o deputado mais votado do Rio de Janeiro (saltando de 120,6 mil votos em 2010 para 464,5 mil em 2014). Em 2016, trocou o PP pelo PSC, depois namorou com o PEN (que virou Patriota para acolhê-lo), rompeu com a sigla ao descobrir que ela havia patrocinado uma ação no STF questionando a prisão em segunda instância (tema que interessava sobretudo a Lula e ao PT e feria de morte seu discurso antipetista) e acabou se filiando ao PSL. Em outubro passado, derrotou o esbirro de Lula por uma diferença significativa de votos, além de contribuir para que o PSL, até então nanico, elegesse 52 deputados federais, 4 senadores e 3 governadores.

Dora Kramer pondera que os presidentes que terminaram seus mandatos, falando da redemocratização para cá, tinham como traço comum uma espécie de freio interno que os impedia de ultrapassar (em público, ao menos) a linha que determina até onde pode ir um mandatário. O limite de Sarney era a transição democrática, o de FHC, a consciência de que o poder em si limita, e o de Lula, o apoio popular e/ou político. Mas fato é que os dois presidentes mandados de volta à planície antes de completado o tempo regulamentar não tinham ou não utilizavam essa ferramenta tão essencial ao exercício da governança. Ambos de personalidade impositiva, faziam o gênero “vão ter de me aguentar”. 

Má notícia para Bolsonaro, a quem tanto apraz ser do jeito que é, sem intenção de mudar. Disso sabemos, ninguém muda depois dos 60. Patente está também tratar-se de um caso de exibicionismo crônico, cujas causas aos meandros de sua mente pertencem. A dúvida, portanto, recai sobre aonde pensa chegar o presidente com essa pose de valentão old fashioned.

É certo que desperta identificação em setores ainda amplos. Verdade também que serve de distração à ausência de qualificação para o exercício do cargo e faz a festa dos ressentidos, tanto os que o aplaudem quanto aqueles que acreditam exercer oposição atuando na mesma sintonia de insultos e fantasias persecutórias. O dom de distrair, contudo, tende a desviar o autor de seus propósitos, levá-lo ao caminho da incoerência que resulta na quebra de princípios anteriormente defendidos. Daí para a perda de apoios importantes é questão de tempo. Acontece isso com Bolsonaro em seu afã de medir a República pela régua de seus interesses e convicções pessoais.

Quem o elegeu o fez na crença da prometida mudança de paradigmas vigentes nos governos do PT e até antes deles. Pois o que o presidente tem feito é justamente adotar e acirrar velhas práticas como o filhotismo, o mandonismo, o intervencionismo, o histrionismo e demais “ismos” incompatíveis com um ambiente de razoável modernidade e civilidade. Esbravejou contra o aparelhamento petista, mas tenta aparelhar o Estado quando interfere no funcionamento de órgãos de fiscalização. Condenou roubalheira e desmandos, mas atua para proteger os suspeitos que lhe são caros. Confronta até o eleitorado robusto representado pelo agronegócio quando suas diatribes contra ações de preservação do meio ambiente põem o sustentáculo da pauta de exportações sob o risco de retaliações.

A continuar com a agenda e a conduta regressivas, não irá a lugar nenhum, tantas são e serão as barreiras de contenção que encontrará num país que já percebeu as vantagens e se acostumou a viver nos parâmetros da institucionalidade. Se pensa formatar adiante novo arranjo de alianças, é tarde, pois esses parceiros potenciais já guardam distância e se organizam para tomar rumos próprios.