quarta-feira, 17 de abril de 2019

CRUSOÉ RETIRA “FAKE NEWS” DO AR E É MULTADA MESMO ASSIM



Devido a uma sequência de críticas e sátiras dirigida à deputada petista Maria do Rosário, o comediante Danilo Gentili foi condenado, pelo crime de injúria, à pena de 6 meses e 28 dias de detenção. A parlamentar, para quem não se lembra, já processou o então deputado Jair Bolsonaro por dizer que “ela não merecia ser estuprada porque era muito feia”, e, em vídeo no YouTube, considerou “extremamente abusivo tudo que há em torno desse processo contra Lula”.

O caso de Gentili começou com uma declaração da petista em defesa do então deputado psolista Jean Wyllys — que cuspiu em Jair Bolsonaro na Câmara — e do ator petista José de Abreu — que cuspiu em um casal num restaurante em São Paulo. “Julgam Jean e Zé de Abreu por uma reação imediata. Quem reage a agressão não planeja como agir, quem agride sim. Respeite e serás respeitado”, sentenciou Maria do Rosário. Só que Bolsonaro não havia agredido Jean Wyllys, salientou o diretor de jornalismo da Jovem Pan, Felipe Moura Brasil, e que o casal hostilizou Zé de Abreu pelo uso da Lei Rouanet, que o ator negou, mas depois reconheceu publicamente — no insuportável Domingão do Faustão, que se valeu do benefício por pelo menos duas vezes.  

Rosário chamou de “agressão” o insulto verbal para amenizar ou legitimar a agressão física das cusparadas de Wyllys — uma ação planejada, como mostraram as câmeras, e não uma “reação imediata”. Gentili aplicou o mesmo raciocínio contra a própria deputada, aludindo ao caso em que ela disse “sim” quando Bolsonaro lhe perguntou se o estava chamando de estuprador: “Aí ela chama o cara de estuprador, toma um empurrão, dá chilique, falsa e cínica pra caralho [...] quando alguém cuspir em você, devolva com um soco que a Maria do Rosário aprova cuspir nela quando ela chama de estuprador”.

Ao receber uma notificação extrajudicial pedindo a retirada dos conteúdos publicados por ele no Twitter, o humorista publicou um vídeo em que esconde com os dedos o início e o fim da palavra deputada — deixando visível apenas “puta” —, rasga a notificação, coloca os papéis dentro das suas calças e o remete de volta à Câmara. Ninguém precisa conhecer ou apreciar seu trabalho, nem considerar engraçado ou de bom gosto este comportamento específico, mas, pelo contexto, nota-se que, ao chamar Rosário de “puta”, Gentili não a acusou de ser uma prostituta que aluga seu corpo e seus serviços sexuais, mas simplesmente a xingou, reagindo a um documento do Estado com teor de censura a postagens de conteúdo crítico, ainda que ácido, a uma parlamentar e sua defesa de cuspidores.

A juíza da 5ª Vara Federal Criminal de São Paulo, porém, considerou que o caso concreto “revela a expressão de uma personalidade merecedora de reprovação em grau elevado”, daí a condenação de Gentili a detenção em regime semiaberto, mesmo que o “ato delituoso” não tenha sido praticado com violência e que o réu não seja reincidente. Como o cinismo petista já era conhecido, o caso concreto, na verdade, revela apenas a banalização da prisão como forma de patrulha. Estimulada por Rosário, a Justiça cuspiu na liberdade de expressão.

O presidente Bolsonaro — que recebeu a cusparada de Wylys, mas não processou o cuspidor — publicou um tuíte dizendo que Gentili deveria poder exercer seu direito de expressão. “Compreendo que são piadas e faz parte do jogo, algo que infelizmente vale para uns e não para outros”. Logo depois, Gentili respondeu, também via Twitter: “Fico aliviado por entender que esse post significa um registro do compromisso do governo com a liberdade de expressão”. 

Ao que parece, o Judiciário não leva em conta o que o chefe do Executivo pensa ou deixa de pensar. O presidente do STF, que durante a cerimônia de posse de Bolsonaro exaltou a “liberdade de imprensa e a atuação independente e autônoma do Ministério Público”, não só determinou a instauração de um inquérito sigiloso para apurar fake news e ameaças contra os ministros da corte e seus familiares (isso seria atribuição do Ministério Público), como escolheu ele próprio o relator dessa bizarrice (a relatoria deveria ser designada por sorteio eletrônico) e lhe pediu retirasse imediatamente do ar uma reportagem publicada pela revista Crusoé com o título “O amigo do amigo de meu pai”, que levanta suspeitas sobre sua “reputação ilibada”.

Além de censurar a revista digital e o site O Antagonista, responsável pela publicação, o ministro Alexandre de Moraes estipulou multa de R$ 100 mil por dia em caso de desobediência e determinou que a PF intimasse os responsáveis a prestar depoimento no prazo de 72 horas. Mesmo obedecendo à determinação, Crusoé foi multada. Mas não é só: Moraes determinou o bloqueio de contas em redes sociais e do WhatsApp de sete pessoas investigadas por publicarem "ofensas" contra a Corte. Entre os alvos está o general da reserva Paulo Chagas, que teria publicado “postagens de propaganda de processos violentos ou ilegais para a alteração da ordem política e social, com repercussão entre seguidores”, e que o investigado “defendeu a criação de um Tribunal de Exceção para julgamentos de membros do STF ou mesmo substituí-los”.

O ex-comandante do Exército e atual assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional, general Eduardo Villas Bôas, demonstrou preocupação com restrições que o general da reserva Paulo Chagas está sofrendo. Após sessão de homenagem ao Dia do Exército na Câmara, segundo o Metrópoles, o militar disse desconhecer as motivações de Alexandre de Moraes, mas espera da Justiça que as coisas sejam colocadas “no devido lugar”. “Conheço muito o general Paulo Chagas. Amigo pessoal meu e confesso que estou preocupado. Vamos acompanhar os desdobramentos disso. Já o atual comandante do Exército, general Edson Pujol, não quis comentar a decisão do magistrado, mas defendeu Chagas: “Não tenho os detalhes, a motivação que levou, as circunstâncias. O que eu posso dizer é que conheço o Paulo Chagas, é um militar e um cidadão íntegro, temos maior respeito e admiração por ele.”

A determinação de Moraes é alarmante e coloca o Brasil em contato com a censura depois de algumas décadas livres desta mazela. “Estamos diante da situação mais grave dos últimos tempos”, frisou a jurista Janaína Paschoal, na última terça-feira, em publicação no Twitter. Na avaliação de José Nêumanne, o ministro cometeu vários erros, começando por grafar Cruzoé, com "z", e ao abusar do latim para preservar a “honra” do presidente da Corte, terminou por expô-lo ainda mais, pois a truculência despertou a atenção geral para o material censurado. A informação de que o ofendido atendia pelo codinome de “amigo do amigo do meu pai” no propinoduto da Odebrecht bombou geral. Para ouvir a opinião sempre abalizada de Merval Pereira, clique aqui.

Observação: O ministro Marco Aurélio, em conversa com o Estadão, reconheceu que houve censura na decisão do colega: “Isso, pra mim, é inconcebível. É um retrocesso em termos democráticos. Prevalece a liberdade de expressão, para mim é censura. [...] Eu não vi nada de mais no que foi publicado com base em uma delação. O homem público é, acima de tudo, um livro aberto.” Indagado se o plenário da corte poderia derrubar a decisão, o ministro respondeu: “Não sei, cada qual tem a sua concepção sobre o Estado democrático de direito. A minha é sólida e sempre procedi assim.”

O senador Randolfe Rodrigues comparou o inquérito do STF a um novo AI-5: “Toffoli e Moraes fabricaram para si um AI-5: falou mal deles, dançou! Não é possível que, em plena democracia, dois juízes se comportem assim, aterrorizando a cidadania, transformados suas togas negras em capuzes de carrascos da sociedade!” Pelo Twitter, o senador acrescentou: Ninguém escapa do AI-5 do Supremo: jornalistas, ativistas e até generais! Logo chegarão aqui no Senado, porque o coro de insatisfeitos só aumenta. Precisamos dar um basta nos desmandos desta fração que sequer representa a maioria do STF, mas que se acha a própria encarnação do poder.” 

Segundo a Folha, o senador Alessandro Vieira, autor dos dois requerimentos para criação da CPI Lava-Toga , declarou: “Se alguém tinha dúvidas sobre a urgência da CPI das cortes superiores, os ministros confirmam a sua necessidade. E quem via risco à democracia na atuação do Executivo agora precisa se preocupar também com outro lado da Praça dos Três Poderes, de onde se avolumam as ações autoritárias.”

Além de pedir o arquivamento do inquérito do STF sobre “fake news”, a PGR quer que todos os atos praticados sejam anulados, incluindo buscas e apreensões e censura a sites.Considerando os fundamentos constitucionais desta promoção de arquivamento, registro, como consequência, que nenhum elemento de convicção ou prova de natureza cautelar produzida será considerada pelo titular da ação penal ao formar sua opinio delicti. Também como consequência do arquivamento, todas as decisões proferidas estão automaticamente prejudicadas.” 

Observação: Como o Ministério Público não participou da abertura do inquérito (tanto a instauração como escolha do relator partiram de Toffoli), a PGR não pode arquivá-lo (a prerrogativa é do STF). Segundo o G1, Raquel Dodge afirma que a corte não pode manter o inquérito: “O sistema penal acusatório estabelece a intransponível separação de funções na persecução criminal: um órgão acusa, outro defende e outro julga; não se admite que o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse”. Teimosamente, Moraes rejeitou a recomendação de Dodge e manteve o andamento do inquérito. Virou queda de braço (mais uma entre muitas neste começo de gestão). Enfim, como dizia minha finada avó, quem brinca com fogo mija na cama ou acaba se queimado.

Resumo da ópera: Há um textinho famoso sobre o nazismo — que, como ensina Reinaldo Azevedo, é da autoria do teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984), embora nove entre dez citadores o atribuam a Maiakovski, Brecht, ou mesmo ao brasileiro Eduardo Alves da Costa (que realmente escreveu algo parecido):

“Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. E aí já não havia mais ninguém para reclamar.”