Anthony Garotinho
foi libertado da cadeia na noite da última quinta-feira, graças ao bom coração
do ministro Gilmar Mendes (mais
detalhes nas minhas postagens do dia 21 e 22). O ex-governador estava preso
havia um mês, acusado de crimes eleitorais, de liderar uma organização
criminosa que extorquia empresários e de receber dinheiro sujo da JBS.
Na semana passada, o ministro Fachin mandou prender o ex-prefeito de São Paulo e eterno deputado
federal Paulo Maluf, condenado pelo STF a 7 anos, 9 meses e 10 dias de prisão
em regime fechado. A presidente da
Corte, ministra Cármen Lúcia, negou
pedido para suspender a execução da condenação, e Maluf se entregou à PF, na última quinta-feira, e foi transferido
para o Distrito Federal na sexta, onde deverá cumprir a pena no presídio da Papuda.
O fato de ter 86 anos de idade já favoreceu Maluf em outras acusações, que foram
atingidas pela prescrição (extinção do prazo legal para eventual punição) ― já
que os prazos são reduzidos pela metade quando o réu tem mais de 70 anos ―, mas
não assegura ao turco lalau o direito à prisão domiciliar, já que a Lei de
Execução Penal prevê que os condenados com mais de 70 anos poderão ficar em suas casas apenas
se estiverem sob regime aberto. No entanto, há tribunais que autorizam
sentenciados com saúde precária a cumprir a pena em casa, como aconteceu com o
médico Roger Abdelmassih, 74, condenado
a 181 anos de prisão pela prática de 48 estupros contra 37 mulheres, que foi
mandado para casa, em setembro passado, pelo ministro Ricardo Lewandowski.
Quanto ao foro privilegiado ― assunto que eu já abordei em
diversas oportunidades ―, volto a lembrar que, no Brasil, essa prerrogativa se
transformou em passaporte para a impunidade, já que dá aos políticos que
cometem crimes o direito de ser julgados por seus pares ou por instâncias
superiores da Justiça, onde a tramitação dos processos leva uma eternidade.
Como salienta o jornalista J.R. Guzzo, qualquer pesquisa do Ibope ou do Instituto Santa Izildinha
de Opinião Pública vai dar que 100% são contra, podendo, com a margem de erro,
chegar a 102%. Mas será que há mesmo neste país tanta gente contra a
impunidade? A resposta é: não, não há. Ao contrário, há uma quantidade
surpreendente de cidadãos que são a favor ― e é justamente por isso que o foro
privilegiado e as imunidades continuam a existir.
É verdade que há alguns ruídos sobre o assunto no STF, com
educadas sugestões de se “restringir” um tanto esses privilégios ― na tentativa
de que pelo menos algum crime de peixe graúdo, um só que seja,
possa enfim acabar punido. Digamos: se o senador matou a mãe a machadadas e não
conseguiu provar que ela estava infernizando o exercício do seu cargo, talvez
possa ter problemas com a justiça. Não seria, nesse caso, julgado “por seus
pares”, e sim numa vara da justiça criminal. Mas nem isso está indo adiante. O
julgamento começou, parou, recomeçou, parou de novo, e não tem data para
recomeçar.
Os 513 deputados federais e 81 senadores ficam com a imagem
de ser os únicos que tiram vantagem dessa excrescência, mas na verdade esses
549 beneficiários são uma gota d’água no total de brasileiros protegidos pelo
amplo leque de impunidades em vigor para quem é “autoridade”. Por conta disso,
os contribuintes pagam os salários, benefícios e futuras aposentadorias de nada
menos que 55.000 indivíduos que têm o direito de não responder à justiça pelo
que fazem, de uma batida de carro ao estupro qualificado ― não da mesma forma
que respondem os demais 200 milhões de habitantes deste país.
Desfrutam dos privilégios, numa conta geral, todos os
juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores ― incluindo-se aí
os “tribunais de contas”. Só de juiz, neste bolo, são mais de 17.000. Somam-se
a eles os procuradores, subprocuradores, promotores e tudo mais que faz parte
da armada de ministérios públicos que há por aí. São um monte, acrescidos de
“núcleos” ― para o Trabalho, o Meio Ambiente, a Cidadania, a Mulher, o Índio, o
Gênero e por aí vai, até onde alcança a capacidade do serviço público em
multiplicar a própria espécie. Entram também os 27 governadores de Estado, os
prefeitos e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Têm foro
especial, ainda, todos os ministros de Estado, e aí a proteção vale realmente
para qualquer um ― por exemplo, para certa ministra que se acha escrava por
ganhar só 33.000 reais por mês. Soma-se mais umas turminhas de burocratas aqui
e ali, e pronto ― eis aí os tais 55.000.
Em que país sério deste mundo existe algo parecido? Por que
o resto da humanidade estaria errada e brasileiros, certos? (Juízes e
procuradores, aliás, ficam horrorizados com o foro privilegiado e as imunidades
dos políticos, mas acham a coisa mais normal do mundo que o mesmo privilégio
seja aplicado a eles próprios).
É claro que toda essa multidão, suas famílias, amigos e
amigos dos amigos são furiosamente a favor da manutenção das “imunidades”. Não
abrem mão nesta vida, de jeito nenhum, de três coisas: os salários acima do
teto legal, os “benefícios” que obrigam o cidadão brasileiro a lhes pagar, fora
isso, a comida, a casa, o carro e sabe Deus o que mais, e o “foro especial”.
Utilizam, em seu favor, um argumento antigo e que hoje se tornou apenas velho ―
o de que os privilégios legais servem para defender a sociedade inteira, e não
apenas os seus beneficiários diretos. Os políticos, por exemplo: não poderiam
exercer com liberdade os mandatos para os quais foram eleitos se estivessem
sujeitos o tempo todo a processos judiciais que certamente seriam abertos
contra eles por seus adversários. Os magistrados e procuradores, da mesma
maneira, não poderiam julgar ou denunciar os inimigos da sociedade de forma
imparcial e independente, se vivessem sob o risco de ficar atolados em
processos judiciais movidos por governos, réus influentes e outras forças
poderosas. Seria, em suma, a defesa da democracia, das liberdades e das
instituições. Mas não é nada disso.
Nenhum político ou magistrado precisa de imunidades para
exercer com liberdade, consciência e autonomia os seus mandatos e funções.
Basta que sejam honestos; basta que não pratiquem crimes previstos no Código
Penal Brasileiro. As prerrogativas legais que protegem hoje o seu trabalho continuariam
a existir, perfeitamente, se fosse suprimido o foro especial como ele funciona;
ninguém sugeriu, nem de longe, que tais garantias fossem diminuídas. Se um
cidadão honesto não precisa de nenhuma “imunidade” para viver e trabalhar em
paz, por que raios um deputado, juiz ou promotor público haveria de precisar?
Isso aqui, afinal, não é nenhuma ditadura onde os donos do governo podem cassar
deputados ou demitir juízes de direito que os desagradam. O foro especial, na
verdade, é inútil para proteger os honestos; serve unicamente para salvar o
couro de quem quer roubar, vender sentenças e praticar outros crimes.
Naturalmente, juntam-se aos interessados diretos na defesa
das imunidades todos os partidos, lideranças e militantes partidários do
Brasil. Estão nessa turma, é claro, todos os escroques das nossas gangues
políticas. Mas o escândalo real, neste assunto, é o apoio que a impunidade
recebe do PSDB e do PT e seus satélites ― os “partidos
éticos”, vejam só, que se dizem diferentes do lixo geral e se apresentam ao
público, num caso e no outro, como modelos de integridade ou campeões das
causas populares. Alguma vez as imunidades prejudicaram um rico? Alguma vez
beneficiaram um pobre? Mas aí é que está. O senador Aécio Neves, vice-rei do PSDB,
foi flagrado numa tentativa de extorsão e hoje vive sob a proteção do foro
privilegiado; no dia da votação sobre o seu destino, a presidente do PT, em vez de comparecer ao Senado,
conseguiu estar na Rússia. Pior: do maior líder popular que este país já teve
não se ouviu até agora um pio contra essa safadeza disfarçada de “garantia
constitucional”.
O problema é que quando há uma injustiça deste tamanho na
frente de todo o mundo, dessas que clamam aos céus, e você fica em silêncio,
não tem saída: você é cúmplice. Lula
e o PT, tanto quanto seus grandes
adversários, estão a favor do foro privilegiado na vida real. Sem o seu apoio,
jamais se mudará coisa alguma. Mas porque iriam combater o que mais lhes ajuda?