Reza a sabedoria popular que o mal deve ser cortado pela raiz, que esqueletos podem sair dos armários, e que eguns mal despachados voltam a nos assombrar. Ao contrário do que se imaginou a princípio, o impeachment de Dilma não sepultou o PT e a prisão não pôs fim à trajetória política de Lula.
Graças a uma decisão teratológica do ministro Edson Fachin, o xamã petista foi exumado da carceragem da PF com o fito de derrotar o pior mandatário que o Brasil amargou desde Tomé de Souza. Mas nem os fins justificam os meios, nem a derrota do sociopata golpista despachou o bolsonarismo de volta para o armário de onde nunca deveria ter saído. E deu no que está dando.
O ato convocado para o último domingo reuniu bem menos pessoas que o de fevereiro, mas deixou claro que o "mito" ainda é capaz de encher o asfalto. Entre a Avenida Paulista e Copacabana, ele modulou sua estratégia do bom-mocismo da "pacificação" para o mau-caratismo da desinformação em estado bruto. Para manter seu devotos em pé de guerra, disse que o Brasil está "perto de uma ditadura". Surfando a onda fabricada por Elon Musk, afirmou que "o mundo inteiro toma conhecimento do quanto esta ameaça a nossa liberdade de expressão".
Recheados de cinismo e mesmice, os discursos de Bolsonaro, Michelle e Malafaia comprovam que a união faz a farsa. A bajulação ao dono do X, o "Pai Nosso" da ex-primeira-dama e os coices desferidos pelo "pastor" em "Xandão" não apagam culpas bem esquadrinhadas pela PF, mas levam água ao moinho bolsonarismo. Ficou claro que o chefe do clã da rachadinhas, mansões milionárias e joias sauditas aposta que, com o passar do tempo (periculum in mora), a tentativa de golpe caia no esquecimento, e ao atacar a credibilidade de Moraes, equipa-se para contestar futuras condenações esgrimindo questões processuais como as que levaram à anulação das sentença de Sergio Moro na finada Lava-Jato.
Quem padece de TDI (transtorno dissociativo de identidade) costuma ter dupla personalidade, mas Bolsonaro tem três: a que exibe, a que tem de fato e a que imagina ter. Na personalidade da pose, é um perseguido político; na real, um golpista à espera de sentença; na imaginária, um cultor do Estado democrático de Direito. Colocando-se na coqueteleira a máscara, a imagem nua no espelho e a desconexão com a realidade, obtém-se o protótipo de um batedor de carteira ideológico: ao dizer que o Brasil roça uma ditadura e apresentar-se como herói de uma guerra contra o cerceamento à liberdade de expressão, o psicopata se comporta mais ou menos como um punguista de praia que, pilhado numa tentativa de tomar de assalto a democracia, sai gritando "pega ladrão".
Bolsonaro abomina a realidade, mas sabe que ela é o único lugar onde um político investigado pode arrumar uma defesa decente. Percebendo-se indefeso, recorre à empulhação. Os quatro anos de sua Presidência caótica revelaram que há sempre duas razões para as estratégias (a declarada e a real), e a concentração de poderes nas mãos de Moraes fornece lenha para a fogueira da confusão. No mundo real, o personagem assemelha-se a um náufrago criminal que se agarra a um jacaré imaginando tratar-se de um tronco.
Na composição da fábula do afogado, Bolsonaro e seus operadores escoram-se numa regra importada da propaganda: com um rótulo bem definido, qualquer coisa pode ser vendida. Em três décadas como deputado do baixo-clero, ele aprendeu que o mal, como abstração, é difícil de ser enxergado, mas que basta dar ao mal um tridente e um par de chifres para se ter um inimigo a quem transferir suas culpas. E o demônio do bolsonarismo é "Xandão".
O bolsonarismo se esfalfa para colar em Moraes rótulos que o Supremo atribuiu a Moro: um juiz superpoderoso autoconvertido em Xerife-Geral da República que concentra em seu gabinete processos de grande repercussão e instrumentaliza o Direito em busca de resultados. Nessa versão, o togado mimetizaria os métodos de Moro — após obter a delação de Mauro Cid mantendo-o preso por quatro meses, busca produzir um novo delator conservando atrás das grades — desde agosto do ano passado, sem condenação — Silvinei Vasques, o ex-diretor bolsonarista da PF.
Na gênese da concentração de poderes nas mãos de Moraes está o inquérito das fake news, aberto em 2019 por Dias Toffoli, então presidente do STF, à revelia da PGR, para o qual "Xandão" foi escolhido relator sem sorteio. Outros inquéritos sobrevieram, como o que investiga os atos antidemocráticos e o que apura as perversões das milícias digitais. Em condições normais, seriam sorteados novos relatores, mas considerou-se que os crimes sob apuração tinham conexão com o inquérito inaugural, e isso abriu uma brecha para que a defesa do capetão esgrima a tese de que o STF subverte duplamente o princípio do juiz natural. Primeiro porque a Corte indeferiu o recurso que pleiteava o envio da encrenca envolvendo um ex-presidente sem foro privilegiado à primeira instância. Segundo porque teria torturado suas próprias regras para manter nas mãos de Moraes todos os inquéritos que aproximam o encrencado da cadeia, da falsificação dos cartões de vacina à comercialização de joias da União, passando pelo da tentativa de golpe que desaguou no 8 de janeiro.
Do ponto de vista jurídico, a tática do bolsonarismo é de uma ineficácia hedionda. Não há argumento capaz de eliminar as culpas do ex-presidente. Afora a delação de Mauro Cid, a responsabilidade criminal do dito-cujo está escorada em sólidas provas materiais e testemunhais. Sob o prisma político, eventos como o da Avenida Paulista e o de Copacabana fornecem a um investigado metaforicamente "jurado de morte" a possibilidade de se comportar como se estivesse cheio de vida.
Faltando-lhe uma defesa crível, Bolsonaro apela à mistificação messiânica para hipnotizar seus devotos. A presença da evangélica Michelle e do pastor Malafaia nos palanques não foi à toa: servindo-se da oratória da dupla, o indefensável converte seus seguidores em sectários de uma seita religiosa e os estimula a aceitar todas as presunções da divindade presumida a seu próprio respeito. Em matéria criminal, isso inclui concordar com o dogma segundo o qual ele tem uma missão de inspiração divina e, portanto, indiscutível.
Basta ler as entrelinhas para extrair do discursos em Copacabana a narrativa de que Bolsonaro e seus acólitos empunham lanças em defesa da liberdade e da democracia, e que a "rede de solidariedade" da extrema-direita global está incumbida de projetar ao mundo um roteiro de perseguição e silenciamento. Mais difícil é saber até que ponto essa caterva acredita nas próprias mentiras e a partir de que ponto passa a jogar para os verdadeiros defensores da democracia o peso de provar a verdade.
Observação: Não é mais apenas sobre "como as democracias morrem", mas sobre como a democracia deixa de ser o que é. E não se trata do universo evangélico ou da Bíblia, mas, sim, do uso religião como política e do potencial desse "nacionalismo cristão extremista e fanático" desgraçar a democracia brasileira como o trumpismo vem fazendo nos EUA.
Se prevalecer a lógica, é muito provável que Bolsonaro vá para a cadeia. O momento atual não é adequado para decretar sequer sua prisão preventiva, mas Alexandre de Moraes, tão incisivo em suas decisões, já poderia ter tomado outras providências. Ao não fazê-lo, o magistrado converte a Suprema Corte numa espécie de centro terapêutico para tratar as loucuras do investigado, enquanto este segue em campanha para reforçar o número de prefeitos do PL, reforçar a bancada bolsonarista no Congresso em 2026 e, mais à frente, conspirar por uma anistia.
Com Josias de Souza