A CEGUEIRA É UMA QUESTÃO PRIVADA ENTRE A PESSOA E OS
OLHOS COM QUE NASCEU
Com seu estilo característico de escrever e capacidade única
para o uso de metáforas e simbolismos, José Saramago, Nobel de Literatura
em 1988, descreveu em ENSAIO
SOBRE A CEGUEIRA, publicado em 1995, a situação ocorrida em uma
comunidade após o aparecimento de uma infecção com transmissão rápida, que
provoca cegueira nas pessoas.
Na obra, além de retratar de forma genérica vários tipos de
pessoas que compõem uma sociedade que progressivamente vai ficando cega a tudo
que ocorre ao seu redor, o escritor português elencou diversas frases que
poderiam descrever nosso surreal cotidiano. Para não me estender demais neste
preâmbulo, cito apenas três: "Se queres ser cego, sê-lo-ás"; "A
pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela
frente"; "A cegueira é uma questão
privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu." não
há nada que se possa fazer a respeito."
A cegueira pode ser congênita ou adquirida, reversível
ou irreversível. Segundo o Censo de 2010, um quarto da população
brasileira tem algum tipo de deficiência, sendo a visual a modalidade mais
comum (cerca de 20%). Se considerados aqueles que não conseguem ver de forma
alguma ou que têm grande dificuldade, o índice cai para 3,4%. De acordo com a OMS,
2,2 bilhões de pessoas têm algum tipo de deficiência visual, sendo 1 bilhão com
uma condição que poderia ser prevenida ou tratada, como catarata, opacidade da
córnea; tracoma e deslocamento da retina (os dados são de 2019).
Quanto ao cego que não quer enxergar — que o senso
comum aponta como "o pior cego" —, trata-se de um problema
fácil de solucionar. Considerando que os efeitos tendem a desaparecer quando se lhes suprime a causa, basta anular a motivação — ou substitui-la por outra mais
atraente.
Segundo os historiadores, a expressão "pior a
emenda que o soneto" surgiu quando Bocage recebeu de um jovem
aspirante a poeta um soneto para correção e o devolveu sem nenhuma marcação.
Perguntado pelo pupilo se não havia nada a ser corrigido, o mestre respondeu
que, dada a quantidade de erros, "a emenda ficaria pior que o soneto".
Dito isso, dou o preâmbulo por encerrado e passo ao mote
desta postagem, começando por dizer que a eleição de Bolsonaro é o
exemplo pronto e acabado da emenda que ficou pior que o soneto, já que,
para evitar a volta do lulopetismo corrupto, abrimos a Caixa de Pandora —
na qual, segundo a mitologia grega, Zeus teria trancafiado
todos os males do mundo —, e assim demos azo ao bolsonarismo boçal. Mas de nada
adiante chorar o leite derramado, ou por outra, mais vale acender a vela do que
amaldiçoar a escuridão.
Falando em escuridão, quais seriam os motivos da cegueira do
presidente da Câmara e do Procurador-Geral da República? Seria estupidez
atribuir à estupidez o fato de um político experiente como o deputado-réu Arthur
Lira manter sob o respeitável buzanfã 133 pedidos de impeachment do
chefe do Executivo enquanto este último continua cometendo crimes
de responsabilidade em escala industrial. Da mesma forma, seria
ingenuidade atribuir à ingenuidade o fato de uma raposa velha como o jurista soteropolitano
que comanda o Ministério Público Federal não se dar conta dos crimes
comuns cometidos por Bolsonaro ao longo dos últimos 32 meses.
O problema, a meu ver, é que a Constituição Cidadã concentrou
nas mãos de uma única pessoa — no caso o PGR — o poder de definir o
destino de um presidente da República que viesse a cometer crimes comuns. E fez
o mesmo no caso de crimes de responsabilidade, já cabe exclusivamente ao
presidente da Câmara dos Deputados decidir se dá andamento ou manda para o
arquivo eventuais pedidos de impeachment do chefe do Executivo (mais detalhes nesta
postagem).
Por alguma razão, os constituintes não estabeleceram um prazo
para os ocupantes dos cargos em questão se desincumbirem da missão que lhes seria
conferida — o que, mais adiante, se revelaria um erro crasso. Aliás, ao
discursar durante a promulgação da nova Carta, o próprio Ulysses Guimarães,
então presidente da Câmara, assim se pronunciou: "A
Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a
reforma."
Reza o artigo
5º da Constituição Federal que "Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes(...)".
Mas nenhum de seus parágrafos,
incisos ou alíneas dispõe o que se vê na prática, ou seja, alguns
serem "mais iguais" que os outros.
Num passado não muito remoto, quando éramos felizes e não
sabíamos, o
parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna estabelecia que "Todo
o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido". Ao rascunharem
a versão promulgada em 1988, os constituintes promoveram uma alteração sutil na
redação do texto, que passou a ser "Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição."
Assim, passamos de suseranos a vassalos de nossos "representantes",
que, em tese, exercem o poder em nosso nome, mas, na prática, fazem o que
querem, como querem e quando querem, sem prestar contas a ninguém e, não raro,
em benefício próprio, seja para aumentar a burocracia que os mantém, para
angariar votos para a próxima eleição, para proteger os seus "companheiros
representantes", e por aí segue a procissão.
Também em tese, cabe ao povo decidir, nas urnas, o destino
dos políticos que mijam fora do penico. Na prática, no entanto, a teoria é
outra. A pretexto de tornar as eleições "democráticas", o "direito
de voto" é estendido a todos os brasileiros, o que seria louvável se a
maioria do eleitorado tupiniquim não fosse composta por analfabetos,
ignorantes, apedeutas e desinformados. E um título de eleitor, nas mãos de um
descerebrado, é tão perigoso quanto uma caixa de fósforos nas mãos de um
chimpanzé num paiol de pólvora.
Num país do futuro que nunca chega, onde até o passado é
incerto, é o poste que mija no cachorro. Nesse "samba do crioulo
doido", as leis são criadas por políticos que se elegem para
roubar e roubam para se reeleger. Quando um "representante do povo" quebra
o decoro parlamentar ou comete algum ato reprovável aos olhos de seus "representados",
seus pares se apressam em mudar a lei para "transformar o errado em
certo". Em suma: demos à chave do galinheiro a raposas que encarregam suas
"irmãs" de investigar o sumiço das galinhas. Reclamar com
quem?
A única maneira de despertar o "gigante adormecido"
e evitar que ele tenha uma síncope ao tomar pé da situação seria devolver o
Brasil aos silvícolas, pedir desculpas pelo estrago e começar tudo outra vez.
Para limar do Executivo, do Legislativo e do Judiciário os usurpadores
travestidos de representantes do povo, só mesmo uma nova Carta Magna, "menos
cidadã e mais pé no chão". A que temos há 32 anos foi remendada mais
de uma centena de vezes (em comparação, a Constituição dos EUA, promulgada dois
séculos antes da nossa, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas ao longo das
últimas 23 décadas).
Os constituintes de 1988 distribuíram diretos a
rodo, mas jamais apontaram de onde viriam os recursos para bancá-los. No
texto promulgado, a palavra "direito" é mencionada 76 vezes;
"dever", em quatro oportunidades; "produtividade"
e "eficiência" aparecem duas e uma vez, respectivamente. O que
esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e
uma eficiência? Na melhor das hipóteses, uma política pública de produção de
leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real.
A atual pandemia sanitária e suas consequências deletérias
em nossa já combalida economia, somadas à constante disputa entre os Poderes, à
desmoralização do mundo político, à crise de representação e à
disfuncionalidade crônica do Estado nascido dos sonhos dos constituintes de
1988, apontam para uma única solução: repensar os alicerces de nosso Estado
Democrático de Direito, em especial no que concerne ao sistema político
vigente, e adotar as medidas necessárias ao restabelecimento da normalidade e
da pacificação institucional pelas quais anseia a sociedade (ou a parcela
pensante da sociedade).
Pode-se argumentar que momento atual não seja o mais
propício, e não há como discordar desse argumento. Mas é inevitável reconhecer
que já passou da hora de considerarmos seriamente a possibilidade de reescrever
a Constituição, visto que a atual, por sua ânsia de a tudo regular e prover,
trava o desenvolvimento pleno da vida nacional.
Não há país que cresça quando a quase totalidade do
Orçamento é consumida pela folha de pagamento do funcionalismo e benefícios e
vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são contornadas via aumento da
carga tributária — o que atualmente é impensável e impraticável — ou por
remédios institucionais cada vez menos eficazes. Para além disso, o atual
sistema representativo está falido, com partidos políticos representam-se a si
mesmos e mecanismos que favorecem o fisiologismo, o paternalismo e o
patrimonialismo, mas nada dizem aos eleitores. O poder econômico quase sempre
prevalece sobre o interesse dos cidadãos em geral, atrelando perigosamente a
corrupção ao sistema político.
É certo que contexto atual não guarda a menor semelhança com
o futuro imaginado pelos constituintes de 1988, que pretenderam assegurar o
bem-estar e o desenvolvimento da nação por força de "cláusulas pétreas"
que exaurem o Estado a pretexto de garantir direitos sociais. Direitos de quem,
cara pálida? Só se for daqueles que "são mais iguais perante a lei que os
outros".
Voltando mundo real, temos um presidente da Câmara mancomunado
com o chefe do Executivo, que usa os pedidos de impeachment engavetados como a
mitológica Espada
de Dâmocles. E um procurador-geral que, de olho numa vaga no STF
ou, no pior dos cenários, na recondução ao cargo para um segundo mandato,
disputa com o antecessor que ocupou sua cadeira de 1995 a 2003 o título maior
"engavetador-geral da República".
Diferentemente do têm dito alguns jornalistas e analistas
políticos, não há limite para o número de reconduções do PGR ao cargo. Segundo
o art.
128 § 1º, "O Ministério Público da União tem por chefe o
Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre
integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de
seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de
dois anos, permitida a recondução." (O grifo é meu).
Não existe pressuposto legal que obrigue o presidente da
República a indicar o PGR a partir da "lista tríplice"
do MPF, mas essa "praxe" vinha sendo observada desde 2002 — Bolsonaro
ignorou-a
em 2019, quando indicou Aras para o cargo, e tornou a ignorá-la este ano,
ao indica-lo para um segundo mandato.
Outro absurdo: Pelas regras atuais, as vagas abertas no STF
(por morte ou aposentadoria dos ministros) são preenchidas pelo inquilino de
turno do Palácio do Planalto. Os requisitos constitucionais são: 1) ser
brasileiro nato; 2) ter idade entre 35 e 65 anos; 3) possuir notável saber jurídico
e reputação ilibada. O cargo não é exatamente vitalício, já que a aposentadoria
dos membros da corte torna-se compulsória aos 75 anos de idade. Uma vez
indicado pelo presidente, o felizardo é sabatinado pela CCJ do Senado e,
caso seja aprovado (nunca houve reprovação desde a redemocratização), terá de
obter pelo menos 41 votos favoráveis (dos 81 possíveis) no plenário do Senado. Após
a aprovação, o Presidente da República assina um decreto de nomeação (que é publicado
no Diário Oficial da União), habilitando seu protegido a tomar posse no cargo.
Tramitam na Câmara propostas de emenda à Constituição que
mudam esses critérios (PEC
259/16 e apensados). Uma delas (PEC 225/19) prevê que os poderes
Legislativo e Judiciário também indiquem ministros, em sistema de rodízio; e
que o indicado seja juiz de segunda instância ou advogado com pelo menos 10
anos de prática, com mestrado na área jurídica. Além disso, o mandato, que hoje
vai até a aposentadoria compulsória aos 75 anos de vida, passaria a durar 12
anos. Resta saber se e quando isso vai ser votado.
Para encerrar, resta dizer que Bolsonaro cumpriu
parcialmente, na última sexta-feira (20). a promessa feita no sábado anterior.
Parcialmente porque poupou o ministro Luís Roberto Barroso e limitou o
escopo de seu pedido de impeachment ao também ministro Alexandre
de Moraes, que o incluiu no rol de investigados do inquérito das fake
news, mandou prender Roberto Jefferson e foi, digamos assim, o
"mentor intelectual" da operação em que a PF
cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços do cantor Sérgio
Reis e do deputado Otoni de Paula, ambos aliados do capitão. Isso
sem mencionar que Moraes será o presidente do TSE por ocasião das
eleições de 2022.
Ao longo de toda a semana passada, nosso glorioso mandatário
ruminou seu ramerrão de que "o povo brasileiro não aceitará
passivamente que direitos e garantias fundamentais [art.
5° da CF], como o da liberdade de expressão, continuem a ser
violados e punidos com prisões arbitrárias, justamente por quem deveria
defendê-los", deixou no ar a possibilidade de um "bastante
provável e necessário contragolpe", falou diversas vezem em "ruptura
institucional" e aludiu ao que chama de "poder
moderador" das Forças Armadas — respaldando-se numa leitura arrevesada
do artigo
142 da Constituição.
Num presidencialismo como o nosso, em que chefe de Estado e
chefe de Governo coincidem, não existe poder moderador (já numa
República parlamentarista, o chefe de Estado é moderador, e o primeiro-ministro
governa). Ocorre que a redação do retrocitado artigo dá margem a mal-entendidos
quando diz que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à
garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da
lei e da ordem". Numa ação impetrada pelo PDT, o ministro Luiz
Fux decidiu que "a missão institucional das Forças Armadas (...)
não acomoda o exercício do poder moderador entre os Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário". Nessa mesma decisão, Fux disse que o
poder das Forças Armadas é "limitado", excluindo "qualquer
interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no
independente funcionamento dos outros Poderes".
Em entrevista
concedida à Folha em janeiro, o jurista Ayres Britto, ex-ministro
e ex-presidente do STF, disse que "basta ser uma força armada
para não ter direito de falar por último; o Judiciário fala por último por seu
poder ser proveniente da fundamentação técnica de suas decisões, da sua
imparcialidade", mas defendeu a discussão da questão do tal
"poder moderador": "Se não houver essa discussão, as próprias
Forças Armadas vão pensar que estão autorizadas a fazer o que Bolsonaro tem
dito".
Até a última sexta-feira, Bolsonaro não havia
confirmado presença na "manifestação gigante em defesa da democracia,
liberdade e contra a interferência de alguns ministros na seara de outro Poder"
marcada para o próximo dia 7. Todavia, em conversa com apoiadores, disse que discursará
em Brasília, pela manhã, e em São Paulo, à tarde. Mas afirmou que "não
serão palavras de ameaça a ninguém" e que a manifestação será "fotografia
para o mundo".
Não é o que pensa Merval Pereira. Para o escritor,
jornalista e analista político da Globo News — que desde setembro
de 2011 ocupa a cadeira nº 31 da Academia Brasileira de Letras —, Bolsonaro,
diante de uma multidão pedindo a saída de ministros do STF, voto
impresso e outras coisas, dificilmente conseguirá se controlar. Sobretudo
depois da ação da PF contra Sergio Reis e Ottoni de Paula. Seria o
cúmulo alguém incentivar revolução, invasão ao STF e quebra-quebra no
Congresso sem arcar com as consequências, mas mais inconcebível ainda é o presidente
tomar essa atitude, demonstrando total inconsequência, sem avaliar o que
pode vir daí (ou avalie e ache que a arruaça irá favorecê-lo).
Quando a democracia está em perigo, é preciso agir. A
polarização que tomou conta de uma parte da população brasileira tem sido
alimentada por um presidente irresponsável, que se vale do cargo para testar os
limitas da nossa democracia. Oxalá a coisa não saia de controle no dia 7 de
setembro.