Na véspera do segundo turno da eleição presidencial de 2018,
Bolsonaro, com a Constituição nas
mãos e tom de voz elevado, discursou contra a corrupção e o toma-lá-dá-cá no
Congresso. Naquele 27 de outubro, com a vitória já assegurada pelos institutos
de pesquisa, o então candidato do PSL
participou de uma live transmitida de um cenário simples, compatível com a
imagem de outsider que o ainda deputado tentava vender ao eleitorado. Diante de uma bandeira do Brasil desalinhada, presa à parede
com fita adesiva, o capitão bradou contra as negociatas entre o governo e o
Legislativo:
“Qualquer presidente que,
porventura, distribua ministérios, estatais, ou diretorias de banco para
conseguir apoio dentro do Parlamento está infringindo a Constituição. Se eu
der, por exemplo, um ministério para um partido, com o objetivo de comprar
votos, qualquer um pode me questionar, porque isso é interferir no livre poder
do Legislativo. Está nesse livrinho aqui”, disse Bolsonaro, brandindo a Constituição. “É
uma máquina podre que sobrevive e se retroalimenta da desgraça. O que está em
jogo é a corrupção, são os grupos que não querem sair de lá porque vivem
mamando nas tetas do estado”, acrescentou.
Passados dois anos três meses, Bolsonaro segue à risca tudo que recriminou. Para eleger Arthur Lira, um parlamentar ficha-suja condenado por improbidade em duas instâncias e réu na Lava-Jato por “supostamente” integrar uma organização criminosa que surrupiou R$ 29 bilhões dos cofres da Petrobras (e conhecido por “Zero Cinco” nos bastidores do poder), o pai de todos escancarou o balcão de negócios.
A associação de Bolsonaro com o discurso de combate à corrupção e o ora presidente da Câmara ganhou ares
de normalidade, mas as incongruências gritam e a conta da fraude eleitoral pode
chegar em 2022.
Antes de chegar ao Executivo, o capitão reformado defendeu a
Lava-Jato, condenou as indicações políticas e a interferência do governo no
Legislativo, criticou “os crimes
hediondos” praticados na Petrobras, defendeu a prisão de parlamentares do PP acusados de corrupção e comemorou
delações premiadas como a do doleiro Alberto
Youssef, que à época delatou o próprio Arthur
Lira.
Aliados de Bolsonaro
que hoje não escondem o constrangimento em defender a candidatura do líder do Centrão
tiveram de dar um salto retórico no estilo duplo
twist carpado para explicar a guinada de posicionamentos. Em todos os casos,
a justificativa para fazer campanha em prol de um réu da Lava-Jato é que a eleição do colega acusado de saquear a Petrobras
é indispensável para “extirpar” o grupo de Rodrigo
Maia e a esquerda do poder.
A parceria entre Bolsonaro
e o deputado pepista é um
jogo de ganha-ganha. Com Lira no comando da Câmara, o presidente garante sua blindagem contra CPIs e pedidos de
impeachment, e o prócer do Centrão, às voltas com os tribunais,
espera ser beneficiado pela crescente influência do clã Bolsonaro no Judiciário, sobretudo nas
cortes superiores.
Hoje, o que Bolsonaro espera uma liderança do Legislativo é bem diferente do perfil ideal que ele próprio traçou em 2017, quando disputou
a presidência da Câmara com Rodrigo Maia e ficou em último lugar, com apenas 4
votos. Na ocasião, o então deputado disse o que considerava indispensável em um concorrente
ao posto. “Temos que ter um presidente na
Câmara que tenha autoridade, posição e altivez, e não que precise
ficar de joelhos para esse ou aquele poder por causa de interesses pessoais”.
Em 2017, bem antes da live realizada na véspera do pleito em
que se elegeu presidente — aquela em que sacudiu a Constituição para criticar o
fisiologismo e o toma lá dá cá —, Bolsonaro
discursou da tribuna da Câmara para atacar a prática corrente durante os
governos do PT. “A corrupção chegou a tal ponto no Brasil
que eu a comparo com aquele paciente acometido de câncer. O médico tem que
amputar o corpo e deixar um dedo. Essa é a situação em que nos encontramos. E
nós sabemos que a origem desse câncer são as indicações políticas”.
O antigo discurso do hoje presidente era reverberado por sua
prole. Em abril de 2016, o então recém-eleito deputado federal Eduardo Rachadinha Bolsonaro usou a
tribuna para criticar o fisiologismo nas relações entre o Congresso e o
Planalto. À época, era Dilma quem
estava acossada por denúncias e sofria a ameaça de ser afastada. “Enquanto esse barco chamado Brasil segue adiante,
o governo vai trabalhando os ditos acordos, que, no meu entendimento, são a
base da corrupção, e negocia cargos e ministérios com deputados em troca de
votos contra o impeachment”, discursou Eduardo
quase-embaixador Bolsonaro. Passados quase cinco anos, a declaração poderia
ser usada por um petista para classificar com perfeição as tratativas de Bolsonaro para eleger Arthur Lira e assim se blindar um
processo de impeachment.
Aliados do Planalto têm traçado um paralelo entre a disputa
à presidência da Câmara deste ano com a eleição para o cargo realizada em 2005.
À época, o inexpressivo parlamentar do baixo clero Severino Cavalcanti, do PP,
derrotou o petista Luiz Eduardo
Greenhalgh. Apontado como a pior derrota do governo Lula no Congresso, o vexame ocorreu após uma divisão interna no
partido do governo de então, que lançou dois candidatos. O então deputado Jair Bolsonaro discursou em defesa da
candidatura de Severino Cavalcanti,
que tinha bandeiras escancaradamente corporativistas, como a salvaguarda de
aumentos salariais e de benefícios para deputados, além da defesa do nepotismo.
A justificativa era a de que, apesar das pautas impopulares, Severino era melhor do que a esquerda.
E a história se repetiu na última segunda-feira: o candidato de Rodrigo Maia, rejeitado em todo o
Brasil, declaradamente contrário às pautas conservadoras e apoiado pelo PT, PCdoB e PSOL, levou os
parlamentares a migrar para o outro lado.
O mesmo discurso usado no passado para defender a Lava-Jato foi empregado pela deputada Carla Zambelli, do PSL, para apoiar um réu da operação. Nas manifestações pelo
impeachment de Dilma, a então
ativista do movimento Nas Ruas
chegou ao extremo de se acorrentar a uma pilastra da Câmara em protesto contra
a corrupção petista. Cinco anos depois, a parlamentar exibe a mesma obstinação,
mas agora para alavancar um candidato que é alvo de inquéritos por pilhar a
Petrobras. A justificativa é combinada: segundo Zambelli, ela jamais se aliaria a Maia e ao PT, que
classifica como “a escória do Brasil”.
No último dia 4, o emedebista Baleia Rossi, adversário de Arthur
Lira, recebeu o apoio oficial do PT.
A deputada Alê Silva, do PSL mineiro, diz ter percebido “muitas convergências” com as posições
de Lira. A parlamentar, que em 2018
prometeu “apoiar firmemente a manutenção
da Operação Lava-Jato” não explica agora ao eleitorado por que faz campanha
para um candidato contrário à PEC da
Segunda Instância e ao fim do foro
privilegiado, pautas consideradas prioritárias pelos movimentos de combate
à corrupção.
Antes de chegar ao Planalto e se aliar ao Centrão, Bolsonaro subiu à tribuna da Câmara
para atacar o próprio Progressistas.
Em junho de 2014, o capitão ainda era filiado à sigla, e seus correligionários Arthur Lira e Ciro Nogueira sustentavam veementemente o apoio à reeleição de Dilma Rousseff. Bolsonaro chegou a defender a prisão de colegas de legenda por causa
do apoio ao PT. “A maioria do meu partido quer apoiar a reeleição
de Dilma Rousseff. Eu sei por que, mas infelizmente não posso falar. Espero que
brevemente esses estádios que vão ficar ociosos sirvam de presídios para muitos
políticos, dado o seu trabalho exercido aqui em Brasília em conivência com o PT.
Eu quero perguntar aos deputados do PP:
por que apoiar Dilma Rousseff? Ela tem combatido a corrupção ou ela faz parte
do governo mais corrupto da história do Brasil?”
Naquele ano, a sigla que mais tarde seria rebatizada de Progressistas
apoiou a reeleição da petista, mas Bolsonaro
só se desfiliou dez meses depois. Em um movimento reverso, ele agora cogita retornar à sigla de Arthur Lira e Ciro Nogueira,
já que não conseguiu colocar de pé o prometido Aliança pelo Brasil.
Em vários discursos na Câmara, o então deputado Jair Bolsonaro elogiou o trabalho da Lava-Jato, apontou o dedo para a corrupção na Petrobras e, em duas ocasiões, comemorou as
delações do empreiteiro Marcelo
Odebrecht e do doleiro Alberto
Youssef, este último um dos principais algozes de Arthur Lira. Em março de 2017, demonstrou entusiasmo com a
possibilidade da colaboração premiada que estremeceria o mundo político em
Brasília. “Eu ouso dizer que, na esteira
(da delação) de Delcídio do Amaral, virá agora Marcelo Odebrecht. Fui
entrevistado esta semana pela imprensa peruana, que mostrou documentos do
Ministério Público do Peru sobre a participação da Odebrecht naquele país e
suas ramificações em outros países integrantes do Foro de São Paulo. Não se
trata do roubo pelo roubo. Estamos diante do roubo por um projeto de poder”,
denunciou.
Em dezembro de 2014, poucos meses após a eclosão do
petrolão, falou em plenário sobre as acusações de Alberto Youssef de que teria repassado dinheiro para a maioria dos
integrantes do PP. “Vejam o constrangimento: é o meu partido.
Dizer que lá tem santo? Longe disso. Se tem gente que negociou o seu voto com o
PT ao longo desses doze anos? Sim, eles olham para o painel ali, veem o que o
PT está indicando e votam. Em troca de quê? De ministérios, de diretoria de
estatal e de departamentos como o Denatran”, acusou. “Eu só peço às autoridades competentes que, por favor, divulguem logo os
nomes relatados por Youssef, para que uma minoria não pague pela maioria”,
clamou. Um dos primeiros acusados pelo doleiro foi Arthur Lira: o inquérito da Polícia Federal contra o deputado tem
até registros fotográficos de suas visitas ao escritório de Youssef.
Em 15 dezembro de 2015, com a Lava-Jato prestes a completar dois anos, Bolsonaro fez um de seus discursos mais inflamados contra a
corrupção na Petrobras. Naquele dia, a PF
havia cumprido mandados contra vários parlamentares, entre eles o senador Fernando Bezerra, do MDB, hoje líder do governo. “O artigo 85 da Constituição é bem claro
quando diz que o presidente da República que interfere nos trabalhos do
Legislativo incorre em crime de responsabilidade. Vemos agora a Operação Lava-Jato.
O que o governo fez? Mostrou a Petrobras a um grupo de políticos seus e disse:
‘assaltem-na, roubem-na, façam o que bem entenderem, desde que vocês votem
comigo, dentro da Câmara e do Senado’”, disse.
Segundo o MPF, em 2015, quando Bolsonaro subiu à tribuna para denunciar a compra de votos no
Congresso, o chamado Quadrilhão do PP
atuava a pleno vapor. De acordo com a denúncia relacionada ao caso, que foi recebida pelo STF, políticos do partido, entre eles Arthur Lira, integravam o núcleo político de uma “grande organização criminosa, estruturada
para obter, em proveito próprio e alheio, vantagens indevidas no âmbito da
administração pública federal”. Lira recorreu e o julgamento dos embargos ainda não foi concluído graças a um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.
Observação: O presidente da Câmara dos Deputados é o terceiro da linha
sucessória, atrás do presidente da República e do vice. Como o Supremo entende que parlamentares réus
não podem assumir, ainda que temporariamente, o Palácio do Planalto, Lira não terá condições sequer de
cumprir todas as previsões constitucionais do cargo.
Outra guinada de posicionamento recente de Bolsonaro está relacionada ao acordo
firmado com o Centrão. Enquanto
parlamentar, o presidente votou a favor da Lei
da Ficha-Limpa, aprovada em 2010. Agora, atua para sabotar a legislação e
antecipar o retorno à política de criminosos com ficha-suja. Em dezembro, saiu
em defesa do ministro Kássio Marques
(indicado por ele para o STF) após
uma decisão esdrúxula que desfigurou a Lei
da Ficha-Limpa. “Quem erra tem que
pagar, mas não deve pagar ad aeternum. Nada demais, isso”, argumentou o
presidente, depois que seu apadrinhado contrariou jurisprudência da Corte para encurtar o tempo de inelegibilidade de políticos.
O entendimento foi celebrado por parlamentares enrolados
como Arthur Lira: condenado em
segunda instância por improbidade administrativa, o deputado só tomou posse em
2019 graças a uma mãozinha do Judiciário. O Ministério Público Eleitoral impugnou o registro de sua candidatura
com base na Lei da Ficha Limpa. Mas
a defesa recorreu da condenação em segunda instância e obteve um efeito
suspensivo.
O caso em análise aproxima, mais uma vez, os presidentes da República e da Câmara Federal. Assim como filhos do capitão, Lira é
acusado de participar de um esquema de rachadinha, além de ter sido condenado
na esfera cível por pagar parcelas de um empréstimo com dinheiro desviado da
verba de gabinete da Assembleia Legislativa de Alagoas, entre 2003 e 2004. A
Justiça reconheceu que ele se apropriou de R$ 182 mil, em valores da época, e apontou
“inequívoco desvio de finalidade, com
evidente prejuízo ao erário”.
Mas não há santos nessa seita. O presidente nacional do MDB, deputado Baleia Rossi, derrotado por Lira
na última segunda-feira, livrou-se, graças ao ministro Gilmar Mendes, do processo em que era investigado por envolvimento
na chamada Máfia da Merenda, em São
Paulo. O pai de Baleia, Wagner Rossi, ainda enfrenta percalços
na Justiça. Ex-ministro das gestões Lula
e Dilma, ele pediu demissão em 2011,
em meio a denúncias de corrupção e tráfico de influência na pasta da
Agricultura. Ao deixar o cargo, alegou ser alvo de “uma saraivada de acusações falsas, sem qualquer prova“. Por causa
dessas investigações, é réu em uma ação penal que tramita na 10ª Vara Federal
de Brasília, recebida em abril do ano passado.
Diferentemente do que ocorre nas campanhas eleitorais
tradicionais, nas disputas pela presidência da Câmara e do Senado as
maracutaias corporativistas são traçadas nos bastidores, longe dos holofotes. A
defesa que Bolsonaro e seus aliados fizeram
em prol da eleição de Lira repercutiu
na opinião pública, mas não afetar a popularidade do presidente entre seus
seguidores mais fiéis. Nos dois últimos anos, Bolsonaro já deu todas as provas possíveis de incoerência com
relação a seu discurso eleitoral. Quem tinha que se decepcionar com ele já se
decepcionou. Os que ainda apoiam fecham os olhos e tapam o nariz para a
aproximação do Centrão e para a
prisão do Fabrício Queiroz, por
exemplo, com desculpas de que “na
política é assim mesmo”.
Os americanos dizem que o fisiologismo é um lubrificante
para fazer as engrenagens funcionarem, mas não pode empapuçar a máquina e emperrar
as ferragens. Se olharmos para questões como programa, persuasão, discurso,
racionalidade, nada disso o governo tem. O Congresso barrou os maiores
desatinos do Executivo e aperfeiçoou medidas. Se o governo não deu certo, não
foi por culpa da oposição e do Legislativo, mas pela falta de projeto e de rumo
do próprio governo.
Em 7 de abril de 2016, dez dias antes de a Câmara autorizar
a instauração do processo de impeachment contra Dilma, Eduardo Bolsonaro
fez, da tribuna, um discurso dirigido a colegas da PF (ele é escrivão da
corporação). “Estou pensando até em processar
o deputado Tiririca, que disse que ‘pior do que está não fica’. Olha aí! Quem
sabe vocês terão o Lula como chefe, comandando todas as informações de
inteligência da Abin e da PF”. Quase cinco anos depois, além interferir deliberadamente na área de
inteligência do governo e na própria PF,
o presidente move mundos e fundos
(sobretudo fundos) par colocar no comando da Câmara um deputado condenado por improbidade, ficha-suja, réu na Lava-Jato e servil ao Planalto.
“A máquina podre que
sobrevive e se retroalimenta da desgraça e os grupos que vivem mamando nas
tetas do estado”, como o então candidato
Jair Bolsonaro definiu na campanha
de 2018, continuam atuando livremente
em Brasília. Só que, agora, com a anuência do presidente Jair Bolsonaro.