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quarta-feira, 17 de agosto de 2022

O AMOR É LINDO MAS CUSTA CARO

  

Só diz que o dinheiro não compra tudo quem não tem dinheiro. Quem tem sabe que o "vil metal" compra até amor verdadeiro. Duvida? Então repare na camiseta azul com o nome e a carantonha carrancuda de Bolsonaro que o presidente da Câmara vestiu especialmente para participar do lançamento da candidatura do "mito" à reeleição. Agradecido, Bolsonaro se desmanchou em rapapés: 


"Temos hoje aqui a presença marcante do presidente da Câmara, o meu amigo de longa data e dono da pauta na Câmara dos Deputados! (...) Eu sei que hoje a figura mais importante aqui sou eu, mas se não é Arthur Lira, esse cabra da peste de Alagoas, não teríamos chegado a esse ponto. Obrigado Lira!"


Lira é tido por seus pares como um sujeito ríspido, com quem é bom não comprar briga, mas que costuma cumprir as promessas que faz. Ele e Bolsonaro já foram colegas de partido e têm raízes bem fincadas no Centrão. E as semelhanças não param por aí. Ao longo de seus três mandatos (de 2011 a 2021), Lira empregou sete parentes de seu assessor parlamentar e amigo Djair Marcelino da Silva, que é apontado como operador de um esquema de “rachadinhas” na Assembleia Legislativa de Alagoas (que teria sido liderada por Lira quando ele ainda era deputado estadual). O amigão do capetão acabou condenado, mas a sentença foi suspensa pelo TJ-AL, e outra ação foi arquivada pelo STF por "falta de provas". Ainda resta uma, em que Lira é acusado de ter recebido R$ 106 mil do então presidente da CBTU, mas o relator é o ministro "terrivelmente evangélico" André Mendonça, de modo que...

 

Ser o "dono da pauta" é prerrogativa do presidente da Câmara, mas nunca antes na história deste país o Legislativo teve tanto poder. Lira se tornou um ponto fora da curva porque se deparou com um governo em que nem o presidente nem seus principais auxiliares têm habilidade, disposição ou força para negociar apoio político para seus projetos. Além disso, o orçamento secreto e as emendas do relator permitem a Lira arrebanhar maiorias em votações importantes.

 

Bolsonaro esqueceu de incluir em seu discurso laudatório que cabe ao presidente da Câmara — e somente a ele — dar início a um processo de impeachment. Lira herdou de Rodrigo Maia cerca de 60 pedidos (ele dizia ver erros, mas não crimes no procedimento do capetão), e mais oitenta e tantos foram protocolados desde então. Com isso, Dilma deixou de ser a campeã absoluta em pedidos de impeachment: foram 68 ao longo de seus 5 anos, 4 meses e 12 dias de mandato (Collor foi alvo de 29Itamar, de 4; FHC, de 27; Lula, de 37, e Temer, de 33). 

 

O presidente acerta quando diz que "não teria chegado aonde chegou" sem a cumplicidade do “dono da pauta”, mas erra ao chamar o aliado de "amigo". Na política não existem amigos, apenas conspiradores que se unem, e Bolsonaro sabe bem disso, pois ele próprio já abandonou diversos parceiros que se tornaram incômodos (entre os quais Gustavo Bebianno foi o mais emblemático). 


Lira não livrou Bolsonaro do impeachment por amizade, mas porque o controle da iniciativa política em Brasília — e de uma polpuda fatia do orçamento — lhe foi entregue docilmente pelo capetão. O fato de ele ter sido o maior beneficiário do orçamento secreto na Câmara ilustra esse ponto: R$ 357 milhões foram direcionados para sua base eleitoral no ano passado, o que deve tornar tranquila sua reeleição. 

 

Para o "cabra da peste", o melhor dos mundos seria a vitória de Bolsonaro, que manteria tudo como está e facilitaria sua recondução à presidência da Câmara. Daí ele se exibir no palco bolsonarista com a patética camiseta mencionada no início deste post. Lula já disse que "o chefe do Executivo não deve interferir nas disputas pelo comando do Legislativo", mas também deixou claro que no seu governo o controle das votações não ficará exclusivamente nas mãos do Presidente da Câmara. 

 

Jogos de cena à parte, o Centrão se alinhará com o próximo chefe do Executivo, seja ele quem for. Mas Lira pretende vender caro a convivência pacífica com um eventual governo petista. “A preocupação número um de Lira não é se Bolsonaro vai ganhar as eleições ou não, mas como manter o próprio poder”, disse a Crusoé um aliado do deputado alagoano. Em outras palavras, o grande projeto político Lira é ele próprio. Marcelo Ramos, ex-aliado e ora desafeto de Lira, diz que ele se aliará a qualquer governo que se submeta aos seus caprichos e interesses. 

 

(...) Eu possa me dizer do amor (que tive) / Que não seja imortal posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”, celebrizou o poeta Vinicius de Moraes em seu "Soneto da Fidelidade". Antes do "caso" com o "mito" dos apatetados, Lira "ficou" com Temer e com Dilma; a diferença é que, agora, o amor só dura enquanto a chave do cofre do orçamento estiver no seu bolso. Como se vê, o amor é lindo, mas também pode custar caro.

 

Com Wilson Lima/Crusoé

domingo, 21 de abril de 2024

LIRA DOS OITO ANOS


A lira é um instrumento musical de cordas que simboliza a conexão com o divino e a expressão da alma por meio da música e da arte — dizem que Nero dedilhava a sua durante o Grande Incêndio de RomaLira dos Vinte Anos é uma antologia póstuma de poesias de Álvaro de Azevedo (1831-1852), e Arthur Lira, o imperador da Câmara que, na reta final do segundo mandato, começa a perceber que o Olimpo não tem escada. 

No início do próximo ano legislativo, Lira dará adeus ao cetro e à coroa e trocará a mansão oficial com geladeira cheia, mordomo de libré e um batalhão de serviçais pelos rigores maldição que marcou a trajetória de antecessores que não souberam se reinventar, como Marco Maia, que não conseguiu se reeleger deputado pelo RS, e João Paulo CunhaHenrique Eduardo AlvesEduardo Cunha, que fizeram escala na cadeia — o primeiro, carbonizado pelo mensalão, renunciou ao mandato; o segundo, após exercer 44 anos de mandatos ininterruptos como deputado, perdeu uma eleição para o governo do RN, tentou retornar à Câmara, mas foi novamente barrado pelo eleitor; e o terceiro, artífice do impeachment de Dilma, foi afastado do cargo pelo STF e cassado pelos colegas. 

Rodrigo Maia, um dos presidentes mais longevos da Casa do Povo, viu naufragar o plano de fazer seu sucessor graças a Bolsonaro e seu tratoraço (o emedebista Baleia Rossi foi feito picadinho por Arthur Lira). Representante do Rio de Janeiro, "Botafogo" virou secretário do governo paulista sob João Doria; vigiado pela Abin paralela do capetão, foi acossado pelo bolsonarismo nas redes sociais; antevendo um novo fiasco se tentasse a sorte das urnas, migrou para a iniciativa privada. 
 
Alheio à síndrome do que está por vir, Lira desafina, digo, desafia o ocaso exercitando o pecado capital da soberba. Apaixonado pela própria voz, chamou de "incompetente" o articulador político do Planalto Alexandre Padilha. O tiro ricocheteou no dono da articulação. Lula atirou de volta: "Só de teimosia, Padilha vai ficar muito tempo nesse cargo". Pressentindo o cheiro de queimado, o deputado Elmar Nascimento, candidato de Lira à própria sucessão, tentou apagar, nos bastidores, o incêndio que afugenta o governo para candidaturas alternativas. 
 
Os poderes de Lira decrescem na proporção direta do avanço do calendário eleitoral. Premidos pela necessidade de acomodar aliados nas prefeituras de seus redutos, os deputados estão mais interessados nas urnas do que na agenda econômica do ministro Fernando Haddad — o que transforma a irascibilidade de Lira numa aposta arriscada: com sua "teimosia", Lula sinaliza a disposição de demonstrar que a divindade da Câmara e o pedaço do Centrão que carrega o seu andor têm mais a perder do que o Planalto. 
 
Dono e senhor da pauta Câmara, Lira pode facilitar ou infernizar o segundo ano de um governo que mantém um olho na inflação dos alimentos e outro na curva descendente das pesquisas. Dono do Diário Oficial, Lula como que convida Lira e sua turma a lançarem um olhar para a caixa registradora da Codevasf, da CEF e dos ministérios terceirizados ao centrão. 

Nesse jogo, uma mão suja a outra. O xamã do PT não ignora que seu governo alimenta parlamentares que estarão na trincheira inimiga em 2026. Minoritário no Congresso, move-se como se desejasse esclarecer que todos que quiserem continuar comendo na mesa do governo terão ao menos que lavar os pratos. 
 
Lira abespinhou-se com o Planalto contra um pano de fundo manchado pelo caso Marielle. Um pedaço do Centrão uniu-se à milícia parlamentar bolsonarista na malograda articulação para abrir a cela do deputado Chiquinho Brazão. O soberano da Câmara enxergou as digitais do articulador político do Planalto na difusão da maledicência segundo a qual sua debilidade ficou gravada no painel eletrônico que manteve o preso na tranca. Daí os disparos contra Padilha, que, para desassossego de Lira, continua dando expediente na Presidência da República. 

A presença de Chiquinho Brazão e seus cúmplices em presídios federais evidencia uma mudanças dos ventos na PF, que desmonta velhas blindagens. O mesmo ânimo parece pautar as ações da PGR depois que a fábrica de escudos que operava sob Augusto Aras encerrou suas atividades. Nesse contexto, até os aliados já avaliam que Lira, cultor de mumunhas orçamentárias e sócio fundador da confraria do antigo orçamento secreto, brinca de corda sem atentar para o nó que asfixiou alguns dos seus antecessores.
 
Com Josias de Souza

terça-feira, 10 de agosto de 2021

LIRA E O BOTÃO AMARELO


Esvaiu-se no nascedouro a penúltima tentativa de sedar a oratória radioativa de Bolsonaro. A chegada do Centrão ao Planalto, marcada pela posse do senador Ciro Nogueira na chefia da Casa Civil, coincidiu com a explosão de uma crise sem precedentes entre o Executivo e o Legislativo. Coisa jamais vista nos 36 anos que se seguiram à redemocratização do Brasil.

Ao discursar na cerimônia de posse como se quisesse convencer o país de que exerceria na chefia da Casa Civil o papel de "amortecedor" do presidente da República, o senador estava, no fundo, pedindo ao brasileiro que fizesse como ele: se fingisse de bobo pelo bem da democracia.

Ciro sempre soube que o maior excesso que um aliado de Bolsonaro pode cometer é o de moderação. Na Câmara, ao informar que levará ao plenário a proposta sobre voto impresso, já rejeitada na comissão especial que cuidou do tema, o deputado-réu Arthur Lira potencializou a sensação de que o objetivo do Centrão é mesmo o de transformar o Brasil numa nação de bobos coniventes.

Sob refletores, Lira alegou que decidiu ouvir o plenário para colocar um ponto final numa polêmica que já "foi longe demais". Entre quatro paredes, o deputado reconhece que a emenda do voto impresso deve ser rejeitada em termos definitivos. E admite que as crises que o capitão fabrica, por intermináveis, conduzem apenas a dois tipos de ponto: o de exclamação e o de interrogação.

Lira teve a delicadeza de avisar previamente a Bolsonaro sobre os movimentos que realizaria na Câmara. A despeito disso, o presidente manteve a língua em riste no último sábado. De passagem por Florianópolis (SC), reiterou os ataques a ministros do Supremo e voltou a brandir a falsa tese segundo a qual a urna eletrônica sem impressora é inconfiável.

Bolsonaro declarou que seus desafetos querem definir o resultado da sucessão de 2022 "no tapetão", favorecendo o "ladrão de nove dedos", como se refere a Lula. Discursando para devotos que o acompanharam em mais um de seus passeios de motocicleta, vociferou: "Quem decide as eleições são vocês. Não são meia dúzia [de pessoas] dentro de uma sala secreta que vão contar e decidir quem ganhou as eleições. Não vão ser um ou dois ministros do Supremo Tribunal Federal que vão decidir o destino de uma nação."

Dá-se de barato que Bolsonaro não remodelará o discurso diante de um provável revés no plenário da Câmara. Ciro Nogueira e Arthur Lira são correligionários. Ambos pertencem ao PP, partido ao qual Bolsonaro já foi filiado em duas ocasiões.

No período em que conviveram com o capitão no Congresso, os coronéis do Centrão aprenderam que o personagem prefere virar a mesa a sentar-se em torno dela para negociar suas pretensões. Político jeitoso, dono de estilo acomodatício, Ciro disse no discurso de posse na Casa Civil que utilizaria sua vocação amortecedora para "estabilizar" o governo e "diminuir as tensões". Rebatizou-se: "Meu nome é temperança, meu sobrenome tem de ser equilíbrio."

Temperança e equilíbrio são vocábulos que rimam com conciliação. Portanto, são palavras inconciliáveis com Bolsonaro, cujo nome de batismo é conflito e o sobrenome, crise. Horas depois do discurso conciliatório do seu novo chefe da Casa Civil, o presidente ameaçou numa entrevista desobedecer a decisões do STF, agindo fora dos limites das "quatro linhas da Constituição". Algo que levou o presidente da Corte, Luiz Fux, a cancelar encontro pacificador que articulava entre os chefes dos três Poderes.

Nem as almas mais ingênuas supõem que Bolsonaro esteja disposto a deixar de lado sua obsessão pelo voto impresso, evitando conflitos com a Justiça Eleitoral. Qualquer criança de cinco anos é capaz de perceber que o presidente, a exemplo do seu ídolo Donald Trump, não tem restrições genuínas à metodologia de apuração dos votos. Não exibiu uma mísera prova de fraude nas votações eletrônicas. Sua implicância é com os resultados de uma eleição em que as pesquisas prenunciam sua derrota.

"Com a minha presença, me somando à equipe de seus ministros e ministras, nós vamos ajudar o Brasil a dar os sinais certos para onde nós estamos indo", discursou Ciro Nogueira na cerimônia de sua posse. "O primeiro deles, senhor presidente, e que não tenham dúvida: a democracia é líquida e certa. Difícil por natureza, mas é a coisa certa."

O diabo é que, nos pronunciamentos de Bolsonaro, a democracia que Ciro supõe ser "líquida e certa" é um regime vaporoso. No comício que se seguiu ao passeio de moto de Florianópolis, os devotos do capitão entoaram o bordão "eu autorizo", cunhado pelos bolsonaristas para avalizar a hipótese de uma intervenção militar. Bolsonaro deu asas ao devaneio: "Zelem por isso, tenham isso como um bem maior entre nós. Não podemos chegar a esperar daqui a cinco, dez, quinze anos e olhar para trás e se arrepender daquilo que tinha que ser feito e não foi feito. Nós faremos tudo pela nossa liberdade, faremos tudo por eleições limpas, democráticas e com contagem de votos. Eleição fora disso que eu falei: não é eleição."

Administrador de um gavetão que acumula mais de uma centena de pedidos de impeachment, Arthur Lira, o réu que foi guindado à presidência da Câmara com o apoio de Bolsonaro, correu ao Twitter para anotar: "Neste fim de semana, sejamos ainda mais inspirados pelos ensinamentos de Aristóteles, Locke e Montesquieu, quando pontificaram sobre o sistema de freios e contrapesos que formam a separação entre os Poderes." Numa evidência de que participa de uma coreografia 100% feita de cinismo, Lira acrescentou: "É como dançar junto, quem sabe até separado, mas sem pisar no pé de ninguém. Assim é um baile bom, assim é a vida, assim deve ser a nossa convivência civilizada e sempre democrática, sempre harmônica, sempre independente."

Lira já havia simulado independência na véspera. Ao anunciar que levaria ao plenário a proposta sobre o voto impresso —"Pela tranquilidade das próximas eleições e para que possamos trabalhar em paz até janeiro de 2023"— o mandachuva do centrão dissera: "O botão amarelo continua apertado. Segue com a pressão do meu dedo. Estou atento 24 horas. Atento todo tempo. Todo tempo é tempo." Foi uma alusão a outro pronunciamento, no qual Lira fizera referência à possibilidade de acionar o "botão amarelo". Algo que foi entendido como uma referência ao poder que a Constituição confere ao presidente da Câmara de encaminhar pedidos de impeachment contra o inquilino do Planalto.

Tomado pelas palavras, Arthur Lira parece pilotar a Câmara como um condutor que vive permanentemente naquela fração de segundo em que o sinal muda de verde para amarelo. O problema é que Bolsonaro comete crimes de responsabilidade em série. Atravessa o sinal vermelho cotidianamente. Num ambiente assim, quem escolhe o momento exato economiza muito tempo. Mas o dedo de Lira permanece imóvel. Para Lira, o tempo não existe. Só existe o passar do tempo.

Depois que Bolsonaro entregou a Ciro a chave de sua Casa Civil, um apetrecho que abre os cofres, os mandarins do Centrão perderam o medo do ridículo. Simulam apreço pela democracia, mas querem apenas ocupar o governo, não derrubar o presidente. Nesse ambiente, o Bolsonaro moderado continuará sendo uma ilusão de ótica.

Sua imoderação é útil para o Centrão. Eleva o preço do apoio.

Com Josias de Souza

sábado, 6 de fevereiro de 2021

UM DISCURSO PARA CADA OCASIÃO

 

Na véspera do segundo turno da eleição presidencial de 2018, Bolsonaro, com a Constituição nas mãos e tom de voz elevado, discursou contra a corrupção e o toma-lá-dá-cá no Congresso. Naquele 27 de outubro, com a vitória já assegurada pelos institutos de pesquisa, o então candidato do PSL participou de uma live transmitida de um cenário simples, compatível com a imagem de outsider que o ainda deputado tentava vender ao eleitorado. Diante de uma bandeira do Brasil desalinhada, presa à parede com fita adesiva, o capitão bradou contra as negociatas entre o governo e o Legislativo:

Qualquer presidente que, porventura, distribua ministérios, estatais, ou diretorias de banco para conseguir apoio dentro do Parlamento está infringindo a Constituição. Se eu der, por exemplo, um ministério para um partido, com o objetivo de comprar votos, qualquer um pode me questionar, porque isso é interferir no livre poder do Legislativo. Está nesse livrinho aqui”, disse Bolsonaro, brandindo a Constituição. É uma máquina podre que sobrevive e se retroalimenta da desgraça. O que está em jogo é a corrupção, são os grupos que não querem sair de lá porque vivem mamando nas tetas do estado”, acrescentou.

Passados dois anos três meses, Bolsonaro segue à risca tudo que recriminou. Para eleger Arthur Lira, um parlamentar ficha-suja condenado por improbidade em duas instâncias e réu na Lava-Jato por “supostamente” integrar uma organização criminosa que surrupiou R$ 29 bilhões dos cofres da Petrobras (e conhecido por “Zero Cinco” nos bastidores do poder), o pai de todos escancarou o balcão de negócios. 

A associação de Bolsonaro com o discurso de combate à corrupção e o ora presidente da Câmara ganhou ares de normalidade, mas as incongruências gritam e a conta da fraude eleitoral pode chegar em 2022.

Antes de chegar ao Executivo, o capitão reformado defendeu a Lava-Jato, condenou as indicações políticas e a interferência do governo no Legislativo, criticou “os crimes hediondos” praticados na Petrobras, defendeu a prisão de parlamentares do PP acusados de corrupção e comemorou delações premiadas como a do doleiro Alberto Youssef, que à época delatou o próprio Arthur Lira.

Aliados de Bolsonaro que hoje não escondem o constrangimento em defender a candidatura do líder do Centrão tiveram de dar um salto retórico no estilo duplo twist carpado para explicar a guinada de posicionamentos. Em todos os casos, a justificativa para fazer campanha em prol de um réu da Lava-Jato é que a eleição do colega acusado de saquear a Petrobras é indispensável para “extirpar” o grupo de Rodrigo Maia e a esquerda do poder.

A parceria entre Bolsonaro e o deputado pepista é um jogo de ganha-ganha. Com Lira no comando da Câmara, o presidente garante sua blindagem contra CPIs e pedidos de impeachment, e o prócer do Centrão, às voltas com os tribunais, espera ser beneficiado pela crescente influência do clã Bolsonaro no Judiciário, sobretudo nas cortes superiores.

Hoje, o que Bolsonaro espera uma liderança do Legislativo é bem diferente do perfil ideal que ele próprio traçou em 2017, quando disputou a presidência da Câmara com Rodrigo Maia e ficou em último lugar, com apenas 4 votos. Na ocasião, o então deputado disse o que considerava indispensável em um concorrente ao posto. “Temos que ter um presidente na Câmara que tenha autoridade, posição e altivez, e não que precise ficar de joelhos para esse ou aquele poder por causa de interesses pessoais”.

Em 2017, bem antes da live realizada na véspera do pleito em que se elegeu presidente — aquela em que sacudiu a Constituição para criticar o fisiologismo e o toma lá dá cá —, Bolsonaro discursou da tribuna da Câmara para atacar a prática corrente durante os governos do PT. “A corrupção chegou a tal ponto no Brasil que eu a comparo com aquele paciente acometido de câncer. O médico tem que amputar o corpo e deixar um dedo. Essa é a situação em que nos encontramos. E nós sabemos que a origem desse câncer são as indicações políticas”.

O antigo discurso do hoje presidente era reverberado por sua prole. Em abril de 2016, o então recém-eleito deputado federal Eduardo Rachadinha Bolsonaro usou a tribuna para criticar o fisiologismo nas relações entre o Congresso e o Planalto. À época, era Dilma quem estava acossada por denúncias e sofria a ameaça de ser afastada. “Enquanto esse barco chamado Brasil segue adiante, o governo vai trabalhando os ditos acordos, que, no meu entendimento, são a base da corrupção, e negocia cargos e ministérios com deputados em troca de votos contra o impeachment”, discursou Eduardo quase-embaixador Bolsonaro. Passados quase cinco anos, a declaração poderia ser usada por um petista para classificar com perfeição as tratativas de Bolsonaro para eleger Arthur Lira e assim se blindar um processo de impeachment.

Aliados do Planalto têm traçado um paralelo entre a disputa à presidência da Câmara deste ano com a eleição para o cargo realizada em 2005. À época, o inexpressivo parlamentar do baixo clero Severino Cavalcanti, do PP, derrotou o petista Luiz Eduardo Greenhalgh. Apontado como a pior derrota do governo Lula no Congresso, o vexame ocorreu após uma divisão interna no partido do governo de então, que lançou dois candidatos. O então deputado Jair Bolsonaro discursou em defesa da candidatura de Severino Cavalcanti, que tinha bandeiras escancaradamente corporativistas, como a salvaguarda de aumentos salariais e de benefícios para deputados, além da defesa do nepotismo. A justificativa era a de que, apesar das pautas impopulares, Severino era melhor do que a esquerda. E a história se repetiu na última segunda-feira: o candidato de Rodrigo Maia, rejeitado em todo o Brasil, declaradamente contrário às pautas conservadoras e apoiado pelo PT, PCdoB e PSOL, levou os parlamentares a migrar para o outro lado.

O mesmo discurso usado no passado para defender a Lava-Jato foi empregado pela deputada Carla Zambelli, do PSL, para apoiar um réu da operação. Nas manifestações pelo impeachment de Dilma, a então ativista do movimento Nas Ruas chegou ao extremo de se acorrentar a uma pilastra da Câmara em protesto contra a corrupção petista. Cinco anos depois, a parlamentar exibe a mesma obstinação, mas agora para alavancar um candidato que é alvo de inquéritos por pilhar a Petrobras. A justificativa é combinada: segundo Zambelli, ela jamais se aliaria a Maia e ao PT, que classifica como “a escória do Brasil”.

No último dia 4, o emedebista Baleia Rossi, adversário de Arthur Lira, recebeu o apoio oficial do PT. A deputada Alê Silva, do PSL mineiro, diz ter percebido “muitas convergências” com as posições de Lira. A parlamentar, que em 2018 prometeu “apoiar firmemente a manutenção da Operação Lava-Jato” não explica agora ao eleitorado por que faz campanha para um candidato contrário à PEC da Segunda Instância e ao fim do foro privilegiado, pautas consideradas prioritárias pelos movimentos de combate à corrupção.

Antes de chegar ao Planalto e se aliar ao Centrão, Bolsonaro subiu à tribuna da Câmara para atacar o próprio Progressistas. Em junho de 2014, o capitão ainda era filiado à sigla, e seus correligionários Arthur Lira e Ciro Nogueira sustentavam veementemente o apoio à reeleição de Dilma Rousseff. Bolsonaro chegou a defender a prisão de colegas de legenda por causa do apoio ao PT. “A maioria do meu partido quer apoiar a reeleição de Dilma Rousseff. Eu sei por que, mas infelizmente não posso falar. Espero que brevemente esses estádios que vão ficar ociosos sirvam de presídios para muitos políticos, dado o seu trabalho exercido aqui em Brasília em conivência com o PT. Eu quero perguntar aos deputados do PP: por que apoiar Dilma Rousseff? Ela tem combatido a corrupção ou ela faz parte do governo mais corrupto da história do Brasil?

Naquele ano, a sigla que mais tarde seria rebatizada de Progressistas apoiou a reeleição da petista, mas Bolsonaro só se desfiliou dez meses depois. Em um movimento reverso, ele agora cogita retornar à sigla de Arthur Lira e Ciro Nogueira, já que não conseguiu colocar de pé o prometido Aliança pelo Brasil.

Em vários discursos na Câmara, o então deputado Jair Bolsonaro elogiou o trabalho da Lava-Jato, apontou o dedo para a corrupção na Petrobras e, em duas ocasiões, comemorou as delações do empreiteiro Marcelo Odebrecht e do doleiro Alberto Youssef, este último um dos principais algozes de Arthur Lira. Em março de 2017, demonstrou entusiasmo com a possibilidade da colaboração premiada que estremeceria o mundo político em Brasília. “Eu ouso dizer que, na esteira (da delação) de Delcídio do Amaral, virá agora Marcelo Odebrecht. Fui entrevistado esta semana pela imprensa peruana, que mostrou documentos do Ministério Público do Peru sobre a participação da Odebrecht naquele país e suas ramificações em outros países integrantes do Foro de São Paulo. Não se trata do roubo pelo roubo. Estamos diante do roubo por um projeto de poder”, denunciou.

Em dezembro de 2014, poucos meses após a eclosão do petrolão, falou em plenário sobre as acusações de Alberto Youssef de que teria repassado dinheiro para a maioria dos integrantes do PP. “Vejam o constrangimento: é o meu partido. Dizer que lá tem santo? Longe disso. Se tem gente que negociou o seu voto com o PT ao longo desses doze anos? Sim, eles olham para o painel ali, veem o que o PT está indicando e votam. Em troca de quê? De ministérios, de diretoria de estatal e de departamentos como o Denatran”, acusou. “Eu só peço às autoridades competentes que, por favor, divulguem logo os nomes relatados por Youssef, para que uma minoria não pague pela maioria”, clamou. Um dos primeiros acusados pelo doleiro foi Arthur Lira: o inquérito da Polícia Federal contra o deputado tem até registros fotográficos de suas visitas ao escritório de Youssef.

Em 15 dezembro de 2015, com a Lava-Jato prestes a completar dois anos, Bolsonaro fez um de seus discursos mais inflamados contra a corrupção na Petrobras. Naquele dia, a PF havia cumprido mandados contra vários parlamentares, entre eles o senador Fernando Bezerra, do MDB, hoje líder do governo. “O artigo 85 da Constituição é bem claro quando diz que o presidente da República que interfere nos trabalhos do Legislativo incorre em crime de responsabilidade. Vemos agora a Operação Lava-Jato. O que o governo fez? Mostrou a Petrobras a um grupo de políticos seus e disse: ‘assaltem-na, roubem-na, façam o que bem entenderem, desde que vocês votem comigo, dentro da Câmara e do Senado’”, disse.

Segundo o MPF, em 2015, quando Bolsonaro subiu à tribuna para denunciar a compra de votos no Congresso, o chamado Quadrilhão do PP atuava a pleno vapor. De acordo com a denúncia relacionada ao caso, que foi recebida pelo STF, políticos do partido, entre eles Arthur Lira, integravam o núcleo político de uma “grande organização criminosa, estruturada para obter, em proveito próprio e alheio, vantagens indevidas no âmbito da administração pública federal”. Lira recorreu e o julgamento dos embargos ainda não foi concluído graças a um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. 

Observação: O presidente da Câmara dos Deputados é o terceiro da linha sucessória, atrás do presidente da República e do vice. Como o Supremo entende que parlamentares réus não podem assumir, ainda que temporariamente, o Palácio do Planalto, Lira não terá condições sequer de cumprir todas as previsões constitucionais do cargo.

Outra guinada de posicionamento recente de Bolsonaro está relacionada ao acordo firmado com o Centrão. Enquanto parlamentar, o presidente votou a favor da Lei da Ficha-Limpa, aprovada em 2010. Agora, atua para sabotar a legislação e antecipar o retorno à política de criminosos com ficha-suja. Em dezembro, saiu em defesa do ministro Kássio Marques (indicado por ele para o STF) após uma decisão esdrúxula que desfigurou a Lei da Ficha-Limpa. “Quem erra tem que pagar, mas não deve pagar ad aeternum. Nada demais, isso”, argumentou o presidente, depois que seu apadrinhado contrariou jurisprudência da Corte para encurtar o tempo de inelegibilidade de políticos.

O entendimento foi celebrado por parlamentares enrolados como Arthur Lira: condenado em segunda instância por improbidade administrativa, o deputado só tomou posse em 2019 graças a uma mãozinha do Judiciário. O Ministério Público Eleitoral impugnou o registro de sua candidatura com base na Lei da Ficha Limpa. Mas a defesa recorreu da condenação em segunda instância e obteve um efeito suspensivo.

O caso em análise aproxima, mais uma vez, os presidentes da República e da Câmara Federal. Assim como filhos do capitão, Lira é acusado de participar de um esquema de rachadinha, além de ter sido condenado na esfera cível por pagar parcelas de um empréstimo com dinheiro desviado da verba de gabinete da Assembleia Legislativa de Alagoas, entre 2003 e 2004. A Justiça reconheceu que ele se apropriou de R$ 182 mil, em valores da época, e apontou “inequívoco desvio de finalidade, com evidente prejuízo ao erário”.

Mas não há santos nessa seita. O presidente nacional do MDB, deputado Baleia Rossi, derrotado por Lira na última segunda-feira, livrou-se, graças ao ministro Gilmar Mendes, do processo em que era investigado por envolvimento na chamada Máfia da Merenda, em São Paulo. O pai de Baleia, Wagner Rossi, ainda enfrenta percalços na Justiça. Ex-ministro das gestões Lula e Dilma, ele pediu demissão em 2011, em meio a denúncias de corrupção e tráfico de influência na pasta da Agricultura. Ao deixar o cargo, alegou ser alvo de “uma saraivada de acusações falsas, sem qualquer prova“. Por causa dessas investigações, é réu em uma ação penal que tramita na 10ª Vara Federal de Brasília, recebida em abril do ano passado.

Diferentemente do que ocorre nas campanhas eleitorais tradicionais, nas disputas pela presidência da Câmara e do Senado as maracutaias corporativistas são traçadas nos bastidores, longe dos holofotes. A defesa que Bolsonaro e seus aliados fizeram em prol da eleição de Lira repercutiu na opinião pública, mas não afetar a popularidade do presidente entre seus seguidores mais fiéis. Nos dois últimos anos, Bolsonaro já deu todas as provas possíveis de incoerência com relação a seu discurso eleitoral. Quem tinha que se decepcionar com ele já se decepcionou. Os que ainda apoiam fecham os olhos e tapam o nariz para a aproximação do Centrão e para a prisão do Fabrício Queiroz, por exemplo, com desculpas de que “na política é assim mesmo”.

Os americanos dizem que o fisiologismo é um lubrificante para fazer as engrenagens funcionarem, mas não pode empapuçar a máquina e emperrar as ferragens. Se olharmos para questões como programa, persuasão, discurso, racionalidade, nada disso o governo tem. O Congresso barrou os maiores desatinos do Executivo e aperfeiçoou medidas. Se o governo não deu certo, não foi por culpa da oposição e do Legislativo, mas pela falta de projeto e de rumo do próprio governo.

Em 7 de abril de 2016, dez dias antes de a Câmara autorizar a instauração do processo de impeachment contra Dilma, Eduardo Bolsonaro fez, da tribuna, um discurso dirigido a colegas da PF (ele é escrivão da corporação). “Estou pensando até em processar o deputado Tiririca, que disse que ‘pior do que está não fica’. Olha aí! Quem sabe vocês terão o Lula como chefe, comandando todas as informações de inteligência da Abin e da PF”. Quase cinco anos depois, além interferir deliberadamente na área de inteligência do governo e na própria PF, o presidente move mundos e fundos (sobretudo fundos) par colocar no comando da Câmara um deputado condenado por improbidade, ficha-suja, réu na Lava-Jato e servil ao Planalto.

A máquina podre que sobrevive e se retroalimenta da desgraça e os grupos que vivem mamando nas tetas do estado”, como o então candidato Jair Bolsonaro definiu na campanha de 2018, continuam atuando livremente em Brasília. Só que, agora, com a anuência do presidente Jair Bolsonaro.

segunda-feira, 28 de março de 2022

PARA SURPRESA DE NINGUÉM...




Em discurso para apoiadores do MST, o ex-presidiário de Curitiba chamou Sergio Moro de “figura grotesca”. Pelo Twitter, o ex-juiz respondeu: “Lula sinaliza apoio à retomada das invasões de terra e aproveita a oportunidade para me ofender, omitindo o roubo à Petrobras. Defenderei não só a propriedade privada, mas também a pública contra os assaltos do PT e seus parceiros. Ao invés de estimular a invasão de terras e conflitos entre brasileiros, precisamos discutir como melhorar a vida de milhões de pessoas, vítimas da inflação, da fome e do desemprego em nosso país.”

O demiurgo de Garanhuns também atacou o presidente da Câmara, afirmou que a atual composição do Congresso representa o pior que tivemos na história e que há “um excesso de poder” nas mãos de Lira. Como se vê, até um relógio quebrado acerta a hora duas vezes por dia.

Lira, se for reeleito deputado federal por Alagoas, tentará se reeleger presidente da Câmara, independentemente de quem assumir o Planalto. Se conseguirá, aí é outra conversa. Via de regra, o tamanho das bancadas facilita (ou não) esse caminho, e atualmente o PP, partido de Lira, é a quarta maior bancada federal.

No ano passado, com o apoio de Bolsonaro, o deputado alagoano montou um blocão para derrotar o grupo de Rodrigo Maia. Depois colocou a mão no orçamento secreto e virou “o pai” das chamadas emendas de relator. No ano que vem, o PP, comandado pelo ex-lulista e ex-dilmista Ciro Nogueira — o senador licenciado do Piauí que assumiu a Casa Civil do governo Bolsonaro — não vai compor federação alguma.

Até porque um partido que abriga bolsonaristas e lulistas não conseguiria se aliar formalmente a nenhuma outra legenda por, no mínimo, quatro anos. E em voo solo o PP corre o risco de perder força como grupo político na Câmara.

A federação com partidos de esquerda, se realmente vingar, tem potencial para formar um grupo consistente com pelo menos 120 deputados. No centro, MDB, PSDB, Cidadania e União Brasil (partido resultante da fusão do PSL com o DEM) também cogitam federação. Cada um desses dois blocos, a depender do tamanho real deles após as eleições de outubro, certamente terá candidato próprio para disputar a presidência da Câmara.

Se voltar ao poder, o parteiro do Brasil Maravilha, Pai dos Pobres e Mãe dos Ricos, enviado pela Divina Providência para acabar com a fome, presentear a imensidão de desvalidos com três refeições por dia e multiplicar a fortuna dos milionários, que lidera todas as pesquisas de intenção de voto até aqui, certamente fará de tudo para ter uma aliado no cargo hoje ocupado pelo todo-poderoso Arthur Lira — ainda que isso não elimine completamente a chance de apoio ao próprio Lira, que hoje posa de bolsonarista por mera conveniência.

Sem o apoio garantido do Executivo, Lira não teria, em 2023, o mesmo senhorio para buscar a reeleição. Segundo um correligionário, “a vontade de deixar o Arthur [Lira] pequeno” também está na mesa de negociação dos outros partidos. “As federações, obviamente, estão sendo costuradas pensando na próxima legislatura, e não no quadro de hoje”.

Aliados fazem questão de ponderar que, mesmo em se confirmando o enfraquecimento do alagoano na comparação com a eleição do ano passado, que o alçou ao comando da Câmara pela primeira vez, Lira continuará sendo Lira: sedento por mais poder e em condições de jogar. “Se o Arthur ficar solto, é claro que isso torna mais complicado o plano da reeleição. Mas é o Arthur, né? Um presidente da Câmara que ganhou muito poder com os colegas operando o orçamento secreto”, afirmou um deputado do PP em seu terceiro mandato.

sábado, 30 de janeiro de 2021

DISPUTA DE LIRA COM BALEIA DÁ SAMBA-CANÇÃO



As eleições que definirão a nova composição das mesas diretoras da Câmara e do Senado estão marcadas para a próxima segunda-feira. Dá-se de barato que os apadrinhados de Bolsonaro vencerão nas duas Casas. O que seria uma boa notícia se Bolsonaro não fosse Bolsonaro.

Ter maioria no parlamento — ou contar com a boa vontade dos donos das respectivas pautas  — facilita significativamente a tramitação e aprovação de propostas importantes, como as da privatização de estatais e das reformas administrativa e fiscal. Mas a Bolsonaro interessa ter “gente sua” em posições-chave — como o “procurador que não procura” nomeado para chefiar o Ministério Público, o lambe-botas escolhido para substituir Moro na Justiça e Segurança Pública, o general-salamaleques como seu preposto e alter ego na Saúde, o contra-almirante “carne e unha” na presidência Anvisa, e por aí afora.

Bolsonaro quer Arthur Lira na presidência da Câmara (e responsável por decidir o destino dos mais de 60 pedidos de impeachment engavetados pelo antecessor) e Rodrigo Pacheco na do Senado. Pouco lhe importa a ficha-corrida, digo, o currículo do deputado piauienses, líder do PP e do Centrão. "E daí" se o apadrinhado responde a uma penca de processos que vão de associação criminosa à corrupção passiva e ativa.

Na 1ª Turma do STF, Lira é réu numa ação penal que o aponta como beneficiário de R$ 106 mil em propina de um esquema de corrupção na CBTU. Segundo o Ministério Público, o valor foi entregue em espécie a um de seus assessores no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Na 2ª Turma, responde a processo como um dos integrantes do chamado “quadrilhão do PP”, organização criminosa que teria desviado recursos da Petrobras e garantido ao parlamentar 2,6 milhões de reais em dinheiro sujo.

Para além da esfera criminal, o obelisco da probidade é acusado de usar a ex-mulher como laranja e coagi-la mediante violência física a voltar atrás num depoimento contra ele. A ação foi enviada para a Vara de Violência Doméstica do Distrito Federal pelo ministro Luís Roberto Barroso. Lira recorreu.

Recentemente, o apadrinhado do capetão foi denunciado pela PGR por crimes de peculato e lavagem de dinheiro por participação em um esquema de rachadinha quando era deputado estadual em Alagoas. De acordo com a PGR, a denúncia é referente ao período em ele era deputado estadual e exerceu cargo de direção na Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de Alagoas (2003 a 2006). 

O esquema segue os moldes implementados por Flávio Rachadinha na Alerj. Como o caso não tem relação com o mandato de deputado federal, foi remetido para a primeira instância da Justiça, que arquivou o processo sumariamente. Ao saber do arquivamento da denúncia, Lira publicou numa rede social: “A vida do homem público é um livro aberto e quem está nela precisa ter serenidade. Nada como um dia depois do outro”. 

Para quem acompanha os meandros do Congresso, essa denúncia não foi surpresa. Nem para a situação, nem para a oposição. O MP promete recorrer, mas nem Lira, nem seus apoiadores parecem preocupados. Segundo a denúncia, o esquema de desvios de recursos da Assembleia de Alagoas durou de 2001 a 2007 e teria movimentado R$ 12,4 milhões apenas entre janeiro de 2004 e dezembro de 2005. Lira, sozinho, teria recebido de interlocutores mais de R$ 1 milhão pelo esquema. A defesa, claro, nega as denúncias. 

Lira também rechaçou a acusação e seguiu suas articulações pela candidatura à Câmara sem demonstrar abalos. Esse é um dos motivos pelos quais aliados do governo apostam que o passar dos dias vai assentar a poeira levantada pelo MP. O PP garantiu Lira como o candidato único da legenda na disputa, enterrando até mesmo uma possível articulação de Aguinaldo Ribeiro, que é próximo a Maia e tentava construir sua candidatura na esteira do relatório da Reforma Tributária, que está sob sua elaboração.

Antes mesmo de o STF rejeitar a possibilidade de Maia e de Alcolumbre disputarem a reeleição, Lira já trabalhava forte nos bastidores em busca de apoio para disputar a presidência da Câmara. Típico político à moda antiga, ele construiu sua trajetória política desde o berço: é filho do ex-senador Benedito de Lira e foi um dos soldados mais próximos de Eduardo Cunha, que deu início ao processo que expeliu Dilma da Presidência. 

Lira manteve o Centrão vivo em meio ao enterro político de Cunha e deu o bote na hora em que Bolsonaro descobriu que suas loucuras, sozinhas, não o levariam muito longe. Desde então, tornou-se um dos políticos mais próximos do mandatário. Em seu terceiro mandato consecutivo na Câmara dos Deputados, é descrito pelos aliados como um fiel cumpridor de acordos. Não deixa seus apoiadores na mão, mas também não é do tipo que tolera traição. Por essas e outras, virou o líder do Centrão.

A Bolsonaro interessam os 160 votos na Câmara e o total comprometimento do apadrinhado com a pauta de costumes e a agenda liberal do governo na economia. A fim de viabilizar sua vitória, autorizou-o a prometer cargos e emendas aos colegas, inclusive da oposição. Na última quarta, ao lado da deputada Carla Zambelli (em muito boa companhia, portanto), o presidente declarou que quer “participar, influir na presidência da Câmara com esses parlamentares” de modo a ter um relacionamento pacífico e produtivo. Na quinta 28, durante a inauguração de uma obra que liga os estados de Sergipe e Alagoas, discursou: “Amigos de Sergipe, amigos de Alagoas, se Deus quiser, teremos o segundo homem na linha hierárquica do Brasil, eleito aqui no Nordeste, pela Câmara dos Deputados. O deputado Arthur Lira. Se Deus quiser, será o nosso presidente.

Como dito, a capivara do deputado é irrelevante para o presidente. Afinal, o que é um peido para quem já está cagado?  Para um cara de pau que tem o desplante de dizer que a acabou com a Lava-Jato porque não existe corrupção no seu governo, mesmo que seus quatro filhos estejam mais enrolados que fumo de corda em balcão de armazém? 

Só para relembrar, Flávio “Rachadinha” é investigado há mais de dois anos por um “suposto” esquema de desvio de recursos do gabinete que ocupava na Alerj antes de ser eleito senador. O MP-RJ apresentou denúncia contra ele, contra Fabrício Queiroz e digníssima esposa e mais uma dúzia de suspeitos de envolvimento na maracutaia. O fato se tornou público em 3 de novembro, mas acabou ofuscado pela eleição presidencial americana.

O julgamento que definiria se a investigação do caso da “rachadinha volta para a 1ª instância ou se continua sob responsabilidade do Órgão Especial do TJ-RJ havia sido marcado para o último dia 25, mas a defesa do senador dos panetones milionários recorreu ao STF e pediu o adiamento do processo no TJ. O semideus togado que dá as supremas cartas e caga as supremas regras não se fez de rogado: 

De pronto se constata, portanto, a usurpação desta Suprema Corte para deliberar sobre a matéria, dado que a questão está sob discussão tanto na ADI no 6.477, quanto na presente Reclamação. Isso, por si só, já justifica o acionamento do Excelso Supremo Tribunal Federal para sustar a ultrajante medida do célebre Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

Mendes determinou que o Órgão Especial do TJ-RJ se abstenha de adotar qualquer ato judicial que possa reformar o decidido pela 3ª Câmara Criminal Tribunal do TJ-RJ, especificamente quanto à definição da competência do órgão judicante para processar e julgar o terceiro interessado. A determinação vale até “o julgamento de mérito da presente reclamação”, e da feita que, no Supremo, uma decisão tanto pode demorar duas horas quanto vinte anos para ser proferida — a depender do ministro que a toma e a quem ela favorece —, talvez um dia, quem sabe...

Carlos Bolsonaro, vereador pelo Rio de Janeiro que dá expediente no Palácio do Planalto, é investigado pela “suposta” contratação de funcionários fantasmas. Seu nome é suscitado nada menos que 43 vezes no inquérito dos atos antidemocráticos. Depoimentos de testemunhas dão conta de que o filho do capitão vem “ajudando” e “cooperando” com os canais suspeitos de ataques às instituições e ao regime democrático.

No final de julho, Anderson Rossi, dono do Foco do Brasil, foi questionado sobre uma possível ajuda do vereador na estruturação de seu canal, que chega a faturar R$ 140 mil por mês. Já a Folha Política, segunda franquia mais rentável entre os canais bolsonaristas, tinha 1,65 milhão de inscritos no início de março; hoje está com 2,19 milhões — um salto de 32%. Ernani Fernandes Barbosa Neto, proprietário do canal, disse à PF ter faturado entre R$ 50 mil e R$ 100 mil por mês.

Em um inquérito que corre atualmente no STFZero Dois aparece como suspeito de ser líder do chamado “gabinete do ódio”, um grupo de assessores que se encarregam de espalhar mentiras sobre ministros da Corte e apoiar manifestações antidemocráticas nas redes sociais e em grupos de apoiadores do presidente, pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo.

Eduardo Bolsonaro está na mira da PGR, que determinou a abertura de “notícia de fato” para saber se o deputado violou a Lei de Segurança Nacional em declarações postadas nas redes sociais. Além disso, uma apuração preliminar o investiga por pagamentos em dinheiro vivo quando da compra de dois apartamentos no Rio, em 2011 e 2016. 

Nem o filho caçula do presidente, Jair Renan, foge à regra que baliza os “negócios da família”. Embora não tenha cargo público, o pimpolho é suspeito de tráfico de influência. Em 13 de novembro, ele articulou e participou de uma reunião entre o ministro do Desenvolvimento RegionalRogério Marinho, e um grupo de empresários da Gramazini Granitos e Mármores — empresa que patrocina a Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, cuja sede fica num camarote do estádio Mané Garrincha. O compromisso, que não constava na agenda oficial de Marinho, foi revelado pela revista Veja. O ministro informou que o filho do chefe “participou na qualidade de ouvinte e por acreditar que o sistema construtivo teria potencial de reduzir custos para a União”, e que a reunião foi um pedido do Planalto.

As relações da empresa de Renan com o Planalto vão além de promover reuniões entre os investidores de seu negócio e ministros. Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, a Astronautas Filmes, produtora de audiovisual que possui contrato milionário com o Governo, realizou gratuitamente a cobertura da festa de inauguração da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia. Somente neste ano, a produtora recebeu R$ 1,4 milhão do governo federal. Em nota, a empresa afirma que não existe nenhum “laço de favorecimento”. O deputado federal Ivan Valente solicitou à PGR que investigue suposto tráfico de influência no caso.

Bolsonaro sempre disse ser um “defensor da família”. Após quase dois anos à frente do governo, transparece sua preocupação em proteger pelo menos uma delas: a sua própria. O primeiro passo foi articular a troca no comando da PF, em abril, com a exoneração do diretor-geral da entidade, o delegado Maurício Valeixo. O então ministro Sérgio Moro denunciou a maracutaia. Posteriormente vieram à tona imagens de uma reunião ministerial na qual o capitão-honestidade diz que não esperaria alguém “foder” a família dele, ou amigo, para trocar alguém da “segurança”. A fala também fazia referências ao Rio de Janeiro, onde as investigações bafejam no cangote dos filhos Flávio e Carlos.

Voltando a eleição para a mesa diretora da Câmara, Rodrigo Maia, que apoia o deputado Baleia Rossi, acusa Bolsonaro de querer tirar a independência do parlamento. “É um alerta aos deputados e deputadas que a intenção do presidente é transformar o parlamento em um anexo do Palácio do Planalto. Isso enfraquece o mandato de cada deputado e deputada, principalmente o protagonismo da Câmara nos debates com a com a sociedade.” 

Maia acusa o governo de ter prometido R$ 20 bilhões em emendas para conquistar votos a favor de Lira. “Pelo o que eu já vi que o governo está prometendo junto ao seu candidato vai dar, pelo menos. uns R$ 20 bilhões de emendas extra orçamentárias. Quero saber em que orçamento para o ano de 2021. que eles poderão cumprir, se vitoriosos, essa promessa.”

Estamos tocando violino enquanto o Titanic segue em rota de colisão com o iceberg. Com um governo inepto que tem de lidar com o Congresso a partir de um pacto de mediocridade, acaba que o Executivo finge governar e o Legislativo finge legislar.

Para ser eleito, o postulante precisa da maioria absoluta dos votos – se todos os 513 parlamentares votarem, vence quem obtiver 257 votos. Caso esta quantidade não seja alcançada, os dois mais votados disputarão o segundo turno. Aliados de Lira acreditam em uma vitória no primeiro turno. No entanto, já dizia o velho Magalhães Pinto que “política é como nuvem; a gente olha e está de um jeito, olha de novo e já mudou”.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

A BALEIA ENCALHOU



Baleia Rossi foi derrotado, mas quem perdeu mesmo foi Rodrigo Maia. Arthur Lira foi eleito, mas quem venceu mesmo foi Jair Bolsonaro.

Maia assumiu a presidência da Câmara em meados de 2016 — depois que o STF cassou o mandato do todo-poderoso Eduardo Cunha — reelegeu-se no ano seguinte com respeitáveis 293 votos e novamente em 2019, com ainda mais expressivos 334 votos. Deixou o cargo na última segunda-feira, às lágrimas, depois que seus pares elegeram o candidato patrocinado pelo Palácio do Planalto (político alagoano do mais fino trato) por 302 a 145 votos. A título de curiosidade, Fábio Ramalho obteve 21 votos, Luiza Erundina, inacreditáveis 16; Marcel van Hattem, 13; André Janones, 3; Kim Kataguiri, 2; e General Peternelli, 1).

Pode parecer estranho Bolsonaro emplacar não um, mas dois apadrinhados (no Senado, Rodrigo Pacheco derrotou Simone Tebet por 57 votos a 21) depois do fiasco nas eleições municipais do ano passado, quando a maioria dos candidatos que ele apoiou não se elegeu. Mas para quase tudo existe uma explicação. Segundo O Globo, a vitória de Arthur Lira se deveu a uma série de ações assertivas do governo federal, tais como promessa de liberação de verbas a deputados e senadores, exoneração de aliados de parlamentares que votariam em candidatos adversários, acenos a uma reforma ministerial, incluindo a possibilidade de recriação de pastas para abrigar aliados, e por aí segue a sem-vergonhice.

Uma das iniciativas para alavancar a candidatura do deputado alagoano e dono do PP foi sinalizar aos parlamentares que eles poderiam escolher os municípios que receberiam um total de R$ 636 milhões em repasses dos ministérios do Turismo, Desenvolvimento Regional e Agricultura. Interlocutores relataram que as negociações ocorreram individualmente, sem um valor fixo para cada um que se comprometesse a votar no candidato apoiado pelo Planalto. Para os opositores, como não havia (e ainda não há) Orçamento aprovado para 2021, o governo vendeu "terrenos na Lua", ou seja, só teria como pagar depois da eleição, mas o importante é prometer, né? O capitão sabe bem disso, já que prometeu propor o fim da reeleição, ser implacável com a corrupção e os corruptos e jogar uma pá de cal sobre o túmulo da velha política do toma-lá-dá-cá. E deu no que deu.

Ainda no ano passado, o governo liberou verba "extra", através de indicações informais, para diversos apoiadores de Lira e Pacheco. No final do ano, aprovou um projeto de lei no Congresso liberando R$ 1,9 bilhão para investimentos. Segundo parlamentares, Lira negociou o apoio de deputados com base nesses pagamentos, e Maia chegou a dizer que o governo estava prometendo R$ 20 bilhões em emendas parlamentares em troca de votos em Lira.

Também como forma de pressão, deputados do grupo de Baleia Rossi viram seus apaniguados perderem cargos que ocupavam no governo federal. Na semana passada, Bolsonaro acenou (e depois negou) com a possibilidade de recriar os ministérios do Esporte, Pesca e Cultura, que hoje têm status de secretarias.

Existe uma pressão do Centrão para que mais políticos do bloco ocupem ministérios, com a perda de espaço dos militares. Especula-se que o titular da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, passe a ocupar outro posto, a exemplo de Onyx Lorenzoni, que deverá assumir a Secretaria-Geral para que um indicado do Republicanos assuma o ministério da Cidadania.

Maia foi abandonado até mesmo pelo DEM — partido que ele ajudou a fundar — depois que o presidente nacional da sigla, ACM Neto, liberou os parlamentares demistas a votar em quem bem entendessem. O anúncio irritou o ainda presidente da Câmara, que agora ameaça deixar a legenda. (Tchau, querido!). O neto de ACM diz que fez o que fez para evitar uma cisão no DEM, já que a maioria da bancada havia migrado para a campanha do candidato governista. 

A imprensa chegou a divulgar que Maia tencionava retaliar, dando seguimento a um dos mais de 60 pedidos de impeachment do presidente que engavetou ao longo dos últimos dois anos. Maia negou. Primeiro, porque fazer no apagar das luzes de sua gestão o que deveria ter feito meses atrás “pegaria mal”. Segundo, porque, considerando o expressivo número de deputados que votaram em Lira e o interesse do Centrão (pelo menos por enquanto) na permanência do chefe do Executivo no posto, o impeachment seria barrado já na CCJ da Câmara.

Contra fatos não há argumentos, mas o “vil metal” não é argumento, e a exceção que confirma a regra. Maia apostou mal, perdeu, e agora não tem condições sequer de permanecer no DEM. Já Davi Alcolumbre, que estreitou laços com Bolsonaro, não só fez seu sucessor como está cotado para a ocupar um ministério. Alias, depois que o senador Jorge Kajuru fez uma série de críticas ao ainda presidente do Congresso, chamando-o, inclusive, de "office boy de luxo" de Bolsonaro, Alcolumbre, em flagrante desrespeito ao regimento interno da Casa, abriu espaço para a colega Kátia Abreu louvá-lo num longo e tocante discurso.  

Tudo somado e subtraído, Bolsonaro é o pior líder mundial no enfrentamento da Covid. Sua popularidade está em queda em qualquer pesquisa de opinião que se olhe, em praticamente todos os estratos e regiões. Graças a seu notório negacionismo e à incompetência chapada do general-vassalo que ele nomeou ministro da Saúde não há vacina suficiente para imunizar a população tupiniquim. A economia, que já não ia bem das pernas antes da pandemia, voltou a patinar depois de uma tão breve quanto insustentável recuperação produzida pelo auxílio emergencial. E qual a resposta dos senhores parlamentares a esse estado de coisas? Dar ao morubixaba da banânia o comando das duas Casas do Congresso. A que custo? As cifras variam, mas sempre na casa dos bilhões de reais, vindos do Orçamento federal já estourado e de cortes de gastos que deveriam ser prioritários.

Salta aos olhos que nossos políticos não têm compromisso com os interesses da nação, e que viram na fragilidade de Bolsonaro a chance de lhe arrancar até as cuecas na forma de fisiologismo explícito para afastar o fantasma do impeachment — que, juntamente com a blindagem dos filhos e a reeleição, é a grande preocupação de sua alteza irreal. Pouco importa a essa caterva que seus partidos implodam suas próprias estruturas e comprometam a própria estratégia para 2022. Como em 2018, eles se mostram incapazes de projetar, no longo prazo, as consequências de suas ações. DEM, PSDB, PSD e MDB adiam ou comprometem em definitivo qualquer possibilidade de construção de uma frente alternativa ao bolsonarismo para 2022. Presa ao imediatismo de cargos e emendas, essa gentalha não leva em conta nem o básico: se a economia continuar derretendo e a pandemia, avançando, a popularidade de Bolsonaro vai cair a sub-zero.

Todas as muitas e caras promessas feitas para angariar votos para Arthur Lira na Câmara começarão a ser cobradas de pronto, com mais virulência quanto maior for o desgaste do capitão nas pesquisas. O Orçamento em frangalhos não comporta todos os ministérios e emendas prometidos, e a gritaria não vai tardar. Bolsonaro se encanta com a suposição de que passou a ter uma base congressual. Ledo engano. O Centrão é que tem um presidente — mais um, na verdade.

Na canetada inaugural de sua gestão, Lira anulou o registro do bloco de apoio do adversário, que fora referendado por Maia. Fez isso para favorecer o seu próprio bloco partidário no rateio dos seis cargos da Mesa diretora da Câmara. Ao esmurrar o inimigo que já se encontrava na lona, Lira mostrou que, entre outros predicados, é vingativo. Faz lembrar Eduardo Cunha, o ex-presidente da Câmara que a Lava-Jato converteu em presidiário (e do qual Lira foi um fiel aliado).

"Não há um trono no plenário", disse o novo presidente da Câmara no discurso da vitória. "Não há, portanto, um soberano." De fato, o deputado alagoano não é rei. É réu. Mas alguma coisa está fora do lugar quando uma autoridade precisa trombetear sua pretensa humildade.

Nelson Rodrigues conta o caso de uma senhora brasileira que visitou o papa. Na hora da despedida, Sua Santidade inclinou-se e balbuciou um apelo: "Reze por mim." Um papa, disse o escritor, pode ter essa modéstia. Arthur Lira, o papa do centrão, talvez cochichasse algo diferente para Bolsonaro: “Reze por si.”

Não será simples fazer andar a pauta regressiva que o morubixaba espera ver transformada em prioridade legislativa: a oposição, depois de um primeiro ano dominado pela discussão da reforma da Previdência e um segundo em que a pandemia ditou o apoio a projetos do governo, agora será ruidosa e atuante. A discussão sobre a volta do auxílio emergencial vai estressar Paulo Guedes e sua equipe. O governo reclamou muito de Maia, mas vai sentir falta do compromisso que ele sempre teve com o ajuste fiscal diante do comando do rei do Centrão, para quem o teto de gastos é apenas um obstáculo ao cumprimento de suas promessas de campanha.

E o impeachment? Os 62 pedidos que Maia deixou de herança servirão como um alerta de que, se não ajoelhar no milho e entregar tudo o que prometeu, Bolsonaro pode ser colocado na roda pelo hoje aliado. Em sendo o caso, não há que esperar fidelidade: nem o presidente hesitará em culpar o Centrão pelo fracasso de seu governo, nem o Centrão irá titubear se tiver de rifar o presidente. É como a fábula do sapo e o escorpião, com a diferença de que os dois companheiros de travessia têm ferrão.

Com Vera Magalhães e Josias de Souza.