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segunda-feira, 18 de março de 2019

O JUDICIÁRIO A SERVIÇO DA JUSTIÇA — CONTINUAÇÃO


Como bem sintetizou José Nêumanne no comentário que reproduzi no capítulo anterior, por 6 votos a 5 nossa mais alta Corte, atendendo a pleitos de impunidade de quem os nomeou para o ápice da carreira (e não da população, pois os ministros são indicados pelo presidente da República, e não eleitos pelo voto popular), contrariou 57 milhões de eleitores que votaram contra corrupção. Como se já não bastasse, seu presidente aboliu a República de 1889 para criar o "Império Absolutista da Suprema Corte", com seus 11 membros e suas nobres famílias protegidas da língua do povo por inquérito sigiloso sob total controle dos togados, acima de devassas de corrupção da Receita e das críticas de policiais, procuradores e juízes federais da primeira instância.

Com Sérgio Moro no Ministério da Justiça e Segurança Pública e os delegados Igor de Paula e Maurício Valeixo no comando da PF em Brasília, esperava-se que o combate à corrupção no Brasil evoluísse em 2019, mas a corrente pró-corruptos vem colecionado vitórias contra os integrantes da Lava-Jato. O próprio superministro reconhece que é preciso consolidar as conquistas e enfrentar o que ele chama de risco de retrocesso, referindo-se ao funesto resultado do julgamento da ação impetrada pelo ex-prefeito carioca Eduardo Paes, no qual o STF decidiu, ainda que por apertada maioria, que quando há crimes comuns conectados a eleitorais sob investigação a competência deve ser da Justiça Eleitoral.

Considerando que os políticos são useiros e vezeiros em atribuir o recebimento de dinheiro ilegal a interesses de campanha, a decisão supremo foi comemorada por corruptores, corrompidos e seus advogados. Já se fala até na anulação de condenações obtidas pela força-tarefa na Justiça Federal — hipótese confirmada pelo ministro Marco Aurélio, a quem coube a relatoria da ação julgada na quinta-feira.

A celeridade nunca foi o forte na nossa suprema corte, talvez porque o plenário se reúne míseras duas vezes por semana — afinal, a tarefa dos ministros é sem dúvida estafante, ainda que cada um deles disponha de um batalhão de auxiliares — dentre os quais os folclóricos “capinhas”, que ajeitam as poltronas para suas excelências se sentarem e se levantarem. Considerando os estagiários, terceirizados, etc., o número de funcionários do Supremo varia conforme o mês, mas nunca fica abaixo de 2.450, o que dá uma média de 222 funcionários por ministro ministro. Em 2016, esse séquito faraônico consumiu mais de meio bilhão de reais — as informações são do site políticos.org.br; se alguém achar que são fake news, que processe o site, não a mim.

Com milhares de processos dormitando nas gavetas de suas supremas excelências, a prescrição não raro fulmina inexoravelmente a expectativa de punição num sem-número de criminosos. Sem mencionar que é igualmente comum (e tão lamentável quanto) gatunos notórios, como José Dirceu e Paulo Maluf, serem brindados (e blindados) com habeas corpus estapafúrdios. Sentenciado a 7 anos, 9 meses e 10 dias de cadeia numa ação que levou inacreditáveis 17 anos para ser concluída, Maluf foi despachado para casa por um habeas corpus humanitário concedido de ofício pelo ministro Dias Toffoli.

Observação: A cena em que o turco lalau — que supostamente estava à beira do desencarne — se arrasta para o camburão, apoiado numa bengala, deveria entrar para os arquivos de dramaturgia da Rede Globo. Tanto é que bastou o dito-cujo deixar a Papuda para que se operasse o “milagre da ressurreição”: o ex-moribundo passa muito bem, obrigado, em sua mansão nos Jardins (região nobre da capital paulista).  

O nome de Maluf é associado à roubalheira desde que eu me entendo por gente. As primeiras suspeitas surgiram há quase meio século, quando o então prefeito biônico de Sampa presenteou com um fusca 0 KM (comprado com dinheiro público, naturalmente) cada jogador da Seleção Canarinho que disputou a Copa de 1970. Em 2005, depois que ele e o filho Flávio foram presos na Superintendência da PF em São Paulo (de onde saíram 41 dias depois), o Le Monde chegou a publicar que, até o advento do mensalão, Maluf personificava a corrupção no Brasil, e malufar era sinônimo de roubar os cofres públicos.

O flibusteiro libanês também foi condenado à prisão pela justiça francesa e figura na lista de procurados da Interpol desde 2010. Também defendeu Lula em várias oportunidades, foi contra o impeachment de Dilma (mas mudou de lado durante o jogo) e votou a favor do sepultamento das denúncias de Janot contra Temer. Durante quase meio século de vida pública, foi alvo de não sei quantas ações criminais, mas sempre foi mestre em lançar mão de chicanas para empurrar a decisão final para as calendas. A idade avançada (o sacripanta tem 87 anos) já lhe concedeu o benefício da prescrição de alguns processos como o que tratava da obra do túnel Ayrton Senna, arquivado em 2009 porque o aldrabão já tinha mais de 70 anos. Mas sua maior proeza foi escapar da Lei da Ficha-Limpa: em 2010, mesmo condenado por improbidade administrativa, o turco ladrão convenceu a Justiça Eleitoral de que o delito cometido tinha caráter culposo, não doloso. Registre-se que ele jamais admitiu seus crimes; o bordão “não tenho nem nunca tive conta no exterior” continua sendo a sua principal retórica (qualquer semelhança com outro larápio sem vergonha, que se diz a alma viva mais honesta da galáxia, talvez não seja mera coincidência).

O fato é que a estrutura da Justiça Eleitoral é ainda mais precária do que a do STF. Além de tocar os processos e investigações, as cortes eleitorais também organizam eleições, conferem a regularidade das candidaturas, a prestação de contas das campanhas etc. A própria ministra Rosa Weber, atual presidente do TSE, foi contrária ao envio de todos os processos envolvendo crimes conexos ao de caixa 2 à Justiça Eleitoral. O vice, ministro Luís Roberto Barroso, ponderou que mexer em uma estrutura que está dando certo e passar para outra que absolutamente não está preparada para isso não dará bons resultados. Luiz Fux, que antecedeu Rosa na presidência, disse que a Justiça Eleitoral está habituada a lidar somente com crimes de menor complexidade, como coagir o eleitor, transportar eleitores no dia da votação e outros de pequena monta. Pena que, a exemplo de Edson Fachin e Cármen Lúcia, os três foram votos vencidos.

Observação: O pedido de cassação da chapa Dilma-Temer, apresentado pelo PSDB, logo após a eleição de 2014, “para encher o saco do PT” (nas palavras do candidato derrotado Aécio Neves) é um ótimo exemplo de como as coisas caminham nessa Justiça especializada. A ação só foi julgada pelo TSE em meados 2017, e a “absolvição por excesso de provas” (com direito à confissão do marqueteiro João Santana e extratos de pagamentos na Suíça) virou motivo de chacota. O procurador-geral do Ministério Público de Pernambuco, Francisco Dirceu Barros, sintetizou a farsa orquestrada pelo então presidente do TSE da seguinte maneira: "É um dia que deve ser esquecido na literatura do Direito Eleitoral. Ninguém vai conseguir explicar esse julgamento na sala de aula. Ninguém!". Ah, faltou dizer que quem presidia o TSE em 2017 era o ministro Gilmar Mendes, a quem o jornalista J.R. Guzzo já definiu brilhantemente como uma “fotografia ambulante do subdesenvolvimento brasileiro, mais um na multidão de altas autoridades que constroem todos os dias o fracasso do país”.

Para o jornalista Carlos Brickmann, se a Justiça Eleitoral não está equipada para julgar todos os envolvidos, bastaria equipá-la. O próprio STF não estava equipado para julgar casos criminais, mas recorreu a juízes auxiliares e deu certo — bom, mais ou menos (este aparte é meu). É claro que quem for apanhado alegará Caixa 2, mas, se a Justiça Eleitoral se readaptar, essa vantagem logo desaparecerá. 

Brickmann diz ainda que seria melhor a Justiça Eleitoral ser extinta e as eleições serem organizadas sem tanto juiz no meio. Ele também relembra que Lula não é beneficiado pela decisão do STF (o molusco ascoso foi condenado por fatos ocorridos no exercício do mandato, quando já tinha sido eleito e tomado posse, o que nada tem a ver com eventual Caixa 2, e os empresários condenados por pagar propina também não se beneficiam).

Talvez uma Justiça Eleitoral como a brasileira não seja única no mundo, mas certamente é um exemplar raro. Em outros países, as eleições são organizadas pelo Executivo, ou (em menos casos) por uma repartição pública específica, mas sem poderes de julgamento. Se não houvesse Justiça Eleitoral, irregularidades em eleições cairiam todas na Justiça comum, e o problema estaria resolvido (ou nem haveria problema a resolver).

Para não estender ainda mais esta postagem, a conclusão fica para a próxima. Enquanto isso, assista a este vídeo:

domingo, 2 de dezembro de 2018

AINDA SOBRE O “INSULTO PRESIDENCIAL”



Durante o julgamento do indulto assinado por Temer em 2017 — providencialmente interrompido pelo pedido de vista do ministro Luiz Fux —, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, expôs face diabólica do autor do decreto que perdoou 80% das penas dos larápios, livrando-os até do pagamento de multas:

O presidente da República foi denunciado duas vezes, por corrupção passiva e obstrução de justiça, e é investigado em dois outros inquéritos por corrupção e lavagem de dinheiro”, recordou o magistrado, ele próprio responsável por um dos inquéritos correm contra Michel Temer no Supremo. E prosseguiu: “Um ex-presidente da República foi condenado por corrupção passiva; dois ex-chefes da Casa Civil foram condenados criminalmente, um por corrupção ativa e outro por corrupção passiva; o ex-ministro da Secretaria de Governo da Presidência da República está preso, tendo sido encontrados em apartamento supostamente seu R$ 51 milhões.”

Do Executivo federal, Barroso saltou para o Legislativo e para os governos estaduais:

Dois ex-presidentes da Câmara dos Deputados foram presos, um deles já condenado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas; um presidente anterior da Câmara dos Deputados foi condenado por peculato e cumpriu pena; mais de um ex-governador de Estado se encontra preso sob acusações de corrupção passiva e outros crimes; um senador, ex-candidato a presidente da República, foi denunciado por corrupção passiva (...) Depois de tudo isso, para provar que o crime compensa, o Executivo concede indulto a essa gente e o Supremo chancela? Que mensagem vamos passar? Que país estamos criando? De que lado da história queremos estar?

O cheiro de enxofre foi sentido em Curitiba:

A Lava-Jato está em vias de sofrer a maior derrota de sua história”, postou o procurador Deltan Dallagnol no Twitter.

E com efeito: confirmando-se o placar pró-corruptos, Temer estará liberado para editar no Natal de 2018 um novo decreto de indulto tão ou mais benevolente que o do ano passado. A força-tarefa de Curitiba estima que a decisão premiaria com o perdão das penas e das multas pelo menos 21 condenados da Lava-Jato.

O mandato-tampão de Michel Temer é a vivência do abismo, e o que distingue o momento atual é a união ativa de forças que não estão dispostas a viver no abismo:

Nos últimos tempos, houve uma expressiva reação da sociedade brasileira, que deixou de aceitar o inaceitável”, constatou o ministro Barroso em seu voto. ”Onde se vai no Brasil hoje se vê uma imensa demanda por integridade, por idealismo e por patriotismo. E essa é a energia que muda paradigmas e empurra a história. A reação da sociedade impulsionou mudanças importantes de atitude que alcançaram as instituições, a legislação e a jurisprudência.”

A tentativa de Michel Temer de premiar corruptos é parte de uma ofensiva daquilo que Barroso chama de “pacto oligárquico”. Nas palavras do ministro, o Brasil não é atrasado por acaso. “Somos atrasados porque o atraso é bem defendido”, declarou.

Aqui não se discute o combate ou não à corrupção. Eu entendo que independentemente do voto de casa um dos ministros, todos queiram combater a corrupção”, retrucou Alexandre de Moraes, tentando afastar de sua calva a carapuça que o colega lançara pouco antes sobre o plenário:

O indulto dá incentivos errados para as pessoas erradas e cria o cenário para sermos o paraíso de corruptores, corruptos, peculatários, prevaricadores, fraudadores de licitações’, dissera Barroso. (…) Claro que ninguém diz que é a favor da corrupção. Todo mundo é contra. Mas, em seguida, encontra um fundamento formal para liberar a farra.”

Noutro trecho do seu voto, Barroso soara ainda mais cáustico:

Também aqui há risco do mesmo discurso. Claro, eu sou contra a corrupção. Mas não posso impedir o presidente da República de exercer suas competências. O mal geralmente vem travestido de bem. Mas quem tem olhos de ver e coração de sentir, sabe quem é quem. E cada um escolhe o lado da história em que deseja estar. Só não dá para querer estar dos dois lados ao mesmo tempo: dizer que é contra a corrupção e ficar do lado dos corruptos.”

A esse ponto chegou o Supremo Tribunal Federal. Num momento em que o brasileiro se esforça para sair do abismo, a banda podre da corte máxima do Judiciário brasileiro revela-se disposta a jogar terra em cima. Alguns magistrados ainda não se deram conta, mas estão enterrando a própria noção de supremacia. Muito mais do que a constitucionalidade do decreto de Temer, o julgamento do indulto decide que tipo de tribunal o Supremo deseja ser.

Com Josias de Souza.