O fato de Sérgio Moro ter aceitado ser ministro de Estado não significa que tenha condenado Lula com o propósito de abandonar 22 anos de magistratura para ocupar uma pasta na Esplanada dos Ministérios sob o comando de Bolsonaro — que em 2017, quando o ex-juiz da Lava-Jato proferiu a sentença nos autos da ação sobre o triplex no Guarujá, era apenas candidato a candidato e tinha tantas chances de vencer o pleito presidencial quando um camelo de passar pelo buraco de uma agulha. Mas o imprevisto sempre pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos.
Cristiano Zanin e
companhia jamais tiveram argumentos sólidos para defender o indefensável, tanto é que todas as estratégias de que se valeram para absolver Lula e, mais adiante, libertá-lo da prisão fizeram água. Foram mais de 100 recursos e chicanas de todos os tipos, e mesmo assim
a culpabilidade chapada do petralha foi atestada por 21 juízes. O autodeclarado
preso político (que na verdade não passa de um político preso) está no xadrez
há quase 450 dias, e a despeito do que afirma a constelação de criminalistas a
seu serviço, jamais se viu na história do direito penal brasileiro outro caso
em que o direito de defesa foi tão explorado por um réu quanto no processo
sobre o tríplex no Guarujá.
“Quis o destino” que a narrativa asinina de perseguição política
fosse inflada pela divulgação tendenciosa de supostas conversas comprometedoras
mantidas entre Moro, Dallagnol e outros integrantes da Lava-Jato. Esse material vem sendo
divulgado a conta-gotas pelo The
Intercept Brasil e reverberado ad
nauseam por boa parte da mídia, o que é música para os ouvidos da banda
podre do Congresso, de membros “garantistas” da alta cúpula do Judiciário e
para a defesa do petralha. No fim das contas, o que se tem é uma articulação
espúria cujo propósito é inocentar o criminoso, desmoralizar a maior operação
anticorrupção da história deste país e criminalizar o juiz e os procuradores
federais que colocaram Lula na
cadeia.
O supremo togado Gilmar Mendes, que pediu vista do habeas corpus de Lula em dezembro, quando Edson Fachin e Cármen Lúcia já se haviam se
posicionado contra o pedido da defesa, devolveu os autos tão logo os primeiros
“diálogos tóxicos” foram vazados pelo Intercept.
Na última terça-feira, depois de alegar que não haveria tempo para concluir o
julgamento, ele abraçou
alegremente a proposta de Zanin e votou
pela concessão de uma liminar para soltar Lula
e mantê-lo em liberdade até o que o mérito do recurso seja julgado.
Em seu voto, em vez de cingir-se ao motivo formal do habeas corpus — que é o fato de Moro ter aceitado ser ministro de Bolsonaro — Mendes enfatizou a troca de mensagens, afirmando não haver como
negar que as matérias “possuem relação com fatos públicos e notórios cujos
desdobramentos ainda estão sendo analisados", e que tais revelações
"podem influenciar o deslinde das circunstâncias". Disse ainda que a
própria PGR estaria em dúvida sobre
os diálogos, quando o que Raquel Dodge
afirmou em seu parecer foi que o
material não teve sua veracidade reconhecida, além de ter sido conseguido de
forma ilegal.
O estratagema não funcionou: Edson Fachin, Cármen Lúcia
e Celso de Mello votaram contra o
pedido de liberdade provisória. O decano argumentou que o juiz pode usar seu
"poder geral de cautela toda vez que se cuidar de algo favorável ao
acusado", mas que, no caso de Lula,
há "três títulos condenatórios emanados contra o paciente”, referindo-se
às condenações em primeira, segunda e terceira instâncias do Judiciário
tupiniquim. Mesmo sendo partidário do início do cumprimento da pena após
confirmação da sentença condenatória por um juízo colegiado, Mello salientou que, no caso sub judice, já se cumpriu o requisito
que deve ser definido mais adiante pelo plenário da Corte — da prisão após
condenação em terceira instância, baseado na proposta de Dias Toffoli, que possivelmente prevalecerá, pois é pouco provável
que o Supremo retroceda ao
entendimento de que a prisão deve se dar somente após o trânsito em julgado da
condenação (que no Brasil, como se sabe, é no dia de São Nunca).
Enfim, Mendes
e Lewandowski compraram a tese de
suspeição de Moro, influenciados
claramente pelos diálogos vazados de maneira espúria, conquanto afirmem ter
votado apenas com base nos autos, mas foram vencidos e a decisão final, jogada
para as calendas de agosto.
Observação: Vale relembrar que a prisão após a
condenação em primeira
instância era regra no Brasil até 1973, quando a Lei Fleury ― criada
sob medida para beneficiar o delegado do DOPS e notório torturador homônimo ― passou a garantir a
réus primários e com bons antecedentes o direito de responder ao processo em
liberdade até o julgamento em
segunda instância. Em 2009, durante o julgamento do Mensalão, o Supremo entendeu que a ausência de eficácia suspensiva
dos recursos extraordinário e especial não seria obstáculo para que o condenado
recorresse em liberdade, e assim a prisão antes do trânsito em julgado
somente poderia ser decretada a título cautelar. Em 2016, porém, a Corte voltou
a entender que a execução provisória da pena após a confirmação da sentença em
segundo grau não ofende o princípio
constitucional da presunção de inocência, até porque a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a
análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o
início da execução da pena (para mais detalhes, clique aqui).
Ao ESTADÃO, Mendes disse: “Acho que se estimulou muito esse jogo de espertezas institucionais,
nessa busca de atalhos em nome supostamente de um combate à criminalidade, da
correção de rumos. A própria ideia de força-tarefa já é uma ideia distorcida —
por que não operar com as próprias pessoas que lá estão? Acho que vamos ter uma
grande evolução e um grande aprendizado a partir desses episódios. Todos nós
vamos ficar mais preparados e a própria legislação que virá em decorrência
desses fatos todos será muito mais realista e talvez mais precisa, evitando
essa discricionalidade abusiva (…). Temos um encontro marcado com as prisões
alongadas de Curitiba, com vários desses modelos. Até hoje temos muitas
discussões em torno dos acordos e tal, direito das pessoas de eventualmente se
defenderem, tudo isso agora precisará ser devidamente disciplinado e regulado.”
De acordo com José
Nêumanne, o cinismo de Gilmar Mendes
(em seu Blog, o sempre inspirado jornalista paraibano grafa Gilmal
Mendes) chegou aos píncaros, na
sessão de terça-feira, quando ele fez menção a um possível desvio ético
de Sérgio Moro com base nas
revelações do mais novo arauto das teses de defesa do petralha. Ao forçar a
chicana proposta Zanin, apelando
para a idade avançada e os mais de 400 dias na cela VIP em Curitiba, o
ex-advogado geral da União de FHC permitiu
ao decano, que também defende o fim da prisão em segunda instância, encontrar
um meio de não se responsabilizar pela possível convulsão social que
possivelmente resultaria da libertação do corrupto mais notório deste país.
São atitudes assim que engrossam a já caudalosa enxurrada de
razões pelas quais o Judiciário deixou de merecer o respeito e a confiança da
sociedade brasileira. E como se o que foi dito até aqui não bastasse, o Supremo comprovou mais uma vez sua
mediocridade ao decidir nada decidir, ou melhor, ao decidir pela metade: a 2ª Turma manteve Lula preso, mas abriu uma janela de oportunidade para que se venha
a soltá-lo após o recesso.
Com a lorota de que o paciente teria julgamento
justo e, para tanto, deveria esperar o veredito solto, Gilmar, o inigualável, tronou-se mero auxiliar da defesa, e agora
trabalha com a possibilidade de o decano — que repeliu a liminar e
manteve Lula preso —, ao deixar claro
que não estava antecipando seu voto quanto ao mérito, antecipou que pode votar
diferente no julgamento final, o que configuraria suspeição se fossem seguidos
à risca o estatuto do STF, a Lei Orgânica da Magistratura a própria Constituição.
Durante os quase 15 meses em que é hóspede da Superintendência
da PF em Curitiba, Lula recorreu um
sem-número de vezes contra a sentença que o tornou um presidiário. Com o
Judiciário aberto, relembra Josias de
Souza, o petista perdeu em julgamentos coletivos — ora por unanimidade, ora
por maioria de votos. Se recorrer nas férias, a decisão colegiada será
substituída pela de um plantonista, e Dias
Toffoli não é um plantonista qualquer: antes de vestir toga, ele foi
assessor da liderança do PT na
Câmara, advogado eleitoral de Lula,
auxiliar jurídico de José Dirceu na
Casa Civil e advogado-geral da União no governo do agora presidiário petista (clique aqui e aqui para mais detalhes).
A despeito desse histórico, Toffoli não hesitou há um ano em liderar, na 2ª Turma, a votação que abriu a cela de um José Dirceu já condenado em segunda instância a mais de 30 anos de
cadeia. Melhor seria que os advogados de Lula não recorressem nas férias. Se
recorrerem, Toffoli talvez devesse
indeferir rapidamente o pedido. Deferindo, seria aconselhável que trocasse o terno
por uma armadura. Se dissesse que concedeu uma liminar a Lula guiando-se apenas por sua consciência de juiz, cutucaria a
opinião pública com o pé e passaria o resto da vida fugindo das mordidas. Coisa que o bom
senso recomenda evitar.