Na manhã da terça-feira 31, Bolsonaro participou da cerimônia de inauguração do Complexo de Captação e Tratamento de Água Deputado Luiz Humberto Carneiro, em Uberlândia (MG). No aeroporto do município mineiro, uma penca de apoiadores o aguardava e, a exemplo dele, quase ninguém usava máscara de proteção — afinal, é preciso enfrentar essa "gripezinha" como homem!
Nosso indômito capitão, que chegou ao local da cerimônia cavalgando um garboso corcel, discursou de improviso para a claque de apoiadores. Ao fundo, uma música na voz de César Menotti e Fabiano falava sobre a superação de obstáculos. Um espetáculo emocionante!
À tarde, para, para não perder o hábito, o mandatário promoveu mais uma de suas motociatas. Na
semana passada, ele já havia participado de um evento desse tipo em
Goiânia, também durante o horário de expediente. Foi a nona motociata desde maio, mas a primeira em um dia de semana. Governar que é bom, néris de pitibiriba.
No discurso, nosso morubixaba asseverou que as manifestações do
próximo dia 7 "ficarão dentro das quatro linhas da Constituição".
Nossa Carta Magna tem 245 artigos e mais de 1,6 mil dispositivos, mas ele
não deve saber disso: segundo o historiador e professor Marco Antonio Villa,
Bolsonaro nunca leu um livro,
quanto mais a Constituição.
Comenta-se que a expectativa de Bolsonaro, nas
manifestações do dia da Independência, é reunir o maior número possível de
apoiadores para ganhar fôlego em meio à maior queda de popularidade registrada
desde o início de sua indigesta gestão. Talvez fosse melhor envidar esforços para mitigar
a crise institucional criada por ele próprio para desviar a atenção das
crises sanitária, econômica e social que não é capaz de resolver (talvez porque,
como bem pontuou o poeta, escritor e jornalista paraibano José Nêumanne, antes de ser eleito presidente o presidente jamais administrou sequer um prosaico carrinho de pipoca em porta de cinema).
Bolsonaro vem colecionando revezes com a mesma rapidez que comete crimes
de responsabilidade. E quanto mais acuado se sente, mais beligerante se torna. Não fosse a complacência cúmplice de Arthur
Lira e a cumplicidade complacente de Augusto
Aras, já estaria procurando outro emprego — Collor e Dilma caíram por muito menos.
Por falar em Aras, sua recondução foi útil
ao capitão mas não se deu por obra e graça deste. Na irretocável definição de Josias
de Souza, o que houve foi uma "momentânea e inusitada
despolarização da política brasileira, que reuniu na mesma trincheira
bolsonaristas e petistas, gente do centrão e da oposição, tucanos e troianos".
Tanto na sabatina na CCJ do Senado, que aprovou Aras
por 21 votos a 6, quanto na sessão plenária do Senado (que chancelou sua
indicação por 55 votos a 10), rivalidades político-partidárias e divergências
ideológicas deram lugar a um conluio suprapartidário.
O nome de Aras foi sugerido a Bolsonaro, em 2019, pelo deputado e coronel da reserva Alberto Fraga, da bancada da bala, envolvido até os tampos em denúncias de corrupção. A demora na nomeação foi entremeada por discursos e comentários do clã Bolsonaro (e de seu chefe) de que o ideal seria um Ministério Público que “não atrapalhasse” o governo. E os fatos falam por si.
Com mais dois anos pela frente da PGR, é possível que Aras roube de Geraldo Brindeiro — que ocupou o cargo durante os dois mandatos
de FHC — o honorável título de "engavetador-geral da República" (que foi merecidamente conferido a Brindeiro graças a sua atuação escancaradamente parcial e
protecionista, pela obviedade de não dar encaminhamento a nenhuma denúncia
envolvendo os membros do governo e aliados, nem mesmo a da “pasta-rosa”
e da compra
de votos da PEC da reeleição — escândalos com todos os elementos
passíveis de investigação e provas abundantes de crimes).
Em comum com Brindeiro, além da nomeação sem participação
da categoria, Aras é de uma fidelidade a quem o nomeou para o cargo que
beira a submissão de um vassalo a seu suserano. É a exata antítese do que
afirmou o então decano Celso de Mello, do STF, sobre o "o
Ministério Público não servir a governos, não servir a pessoas, não servir a
grupos ideológicos, não se subordinar a partidos políticos, não se curvar à
onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a
elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da
República".
Senadores que frequentam o patíbulo do Judiciário ouviram as
palavras do candidato à recondução como quem ouvia música. O sabatinado disse
ter trabalhado "sem espetáculo midiático". Atacou a falecida Lava-Jato,
os "vazamentos seletivos" e a "criminalização da
política." Foi como se ele transformasse a forca num inofensivo
instrumento de corda. Ficou entendido que o Senado continua sendo uma Casa
majoritariamente feita de investigados, denunciados e cúmplices.
Ao compactuar com a insanidade sanitária de Bolsonaro,
o uso de documento falso do TCU para reduzir a pilha de 580 mil
cadáveres da pandemia, a demora na compra de vacinas, as suspeitas de
corrupção, o menosprezo à devastação ambiental e o diabo a quatro, Aras
como que cometeu uma pazuellada.
Ao depor na CPI, o ex-ministro da Saúde — que distribuía
kits-covid enquanto a população de Manaus morria por falta de oxigênio hospitalar e chegou
a enviar para o Amapá as doses de vacina que se destinavam ao Amazonas — classificou de "coisa
de internet" a ordem que recebeu de Bolsonaro para revogar
o compromisso de compra de 46 milhões de doses da Coronavac.
Aras adotou a mesma fórmula ao tentar explicar sua
inércia diante das mentiras de Bolsonaro sobre o processo eleitoral, das
ameaças às instituições e dos arroubos antidemocráticos. "Às vezes as
bravatas da internet, as bravatas ditas numa live não têm nenhuma propensão ou
aptidão para se transformar em realidade. E as vezes também tem. O desafio do Ministério Público é separar este joio do
trigo." O sabatinado não foi contraditado.
Coube ao senador Eduardo Braga, líder do MDB e membro da CPI do Genocídio — ele integra o G7, grupo majoritário que imprime à investigação parlamentar um viés antigovernista — exercer o papel de relator da recondução do procurador de estimação de Bolsonaro na CCJ do Senado.
A exemplo de outros senadores da CPI que pegaram em
lanças por Aras — entre os quais Renan Calheiros, cujo relatório
final atribuirá ao presidente vários crimes, tanto comuns quanto de
responsabilidade —, Braga soou francamente favorável à permanência do
esbirro do capitão na PGR, embora seja grande a chance de o pedaço
criminal do relatório de Renan ir parar no gavetão do procurador-geral.
Voltando ao clã dos Bolsonaro, o TJ-RJ
determinou a
quebra dos sigilos bancário e fiscal do pitbull da famiglia no
escopo da investigação que trata da contratação
de funcionários "fantasmas". Pela primeira vez desde o
início da investigação, há dois anos, o Ministério Público do Rio levanta a
possibilidade de um esquema
de "rachadinha" no gabinete de Zero Dois na Câmara Municipal carioca.
Outras 26 pessoas e sete empresas também tiveram os sigilos quebrados.
Costuma-se dizer que "o futuro a Deus pertence", mas o clã Bolsonaro vive desde logo a síndrome do que está por vir. Tanto o pai dos filhos quanto os filhos do pai se tornaram clientes de caderneta do Judiciário.
No mesmo dia em que a 2ª Turma do STF
adiou o julgamento sobre o foro privilegiado do Zero Um no caso da
rachadinha estadual, veio à luz a notícia de que a Justiça quebrou os sigilos bancário
e fiscal de Zero Dois no inquérito que apura a rachadinha municipal.
A dupla segue um vício introduzido no seio familiar pelo próprio Bolsonaro. Numa evidência de que quem sai aos seus não endireita, os filhos imitam o pai na prática de embolsar parte do salário dos assessores.
Os Bolsonaro consolidam-se como uma organização familiar
cujo futuro está sub judice. Tomado pelas pendências que acumula no STF
e no TSE, o pai de todos tem a aparência de um delinquente em série.
Acumula pelo menos sete processos — quatro no Supremo, onde correm as
investigações sobre aparelhamento da PF, prevaricação no caso da Covaxin,
ataques às urnas eletrônicas e vazamento de inquérito sigiloso; três no TSE,
onde tramitam o inquérito das mentiras sobre urnas eletrônicas, e um par de
pedidos de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.
A rachadinha no gabinete de Zero Um resultou numa
denúncia em que o primogênito é acusado de peculato, organização criminosa e
lavagem de dinheiro. Zero Dois arrasta pela conjuntura um inquérito que
prenuncia a repetição da trajetória do irmão. Zero Três é alvo de uma
investigação preliminar sobre a utilização de R$ 150 mil em dinheiro vivo
na compra de dois apartamentos no Rio. Zero Quatro é investigado pelo MPF
em Brasília sob a suspeita de cometer o crime de tráfico de influência ao abrir
a maçaneta de ministros para empresários.
Os Bolsonaro revelam-se uma família dura de roer. Dias atrás, Zero Zero previu três alternativas para seu futuro: "Estar preso, ser morto ou a vitória." Apressou-se em esclarecer que "a primeira alternativa, preso, não existe."
Se o Judiciário fosse um Poder
confiável no Brasil, pai e filhos talvez não abusassem tanto da sorte,
confiando menos na Providência Divina.