AS CONSEQUÊNCIAS SEMPRE VÊM DEPOIS.
A Primeira Turma do STF deve selar nesta sexta-feira a sorte de Bolsonaro e outros sete réus do "núcleo crucial do golpe". Se forem condenados pelos cinco crimes imputados pela PGR, a soma das penas máximas pode ultrapassar 40 anos.
Além da condenação, o julgamento definirá os recursos que a acusação e defesa poderão interpor. Se houver unanimidade, caberão apenas embargos de declaração, que são julgados pela própria Turma. Já dois votos pela absolvição abrem espaço para os assim chamados embargos infringentes — que permitem a reavaliação da decisão pelo plenário da Corte. Tanto num caso como no outro, a prisão só será efetivada após a análise dos recursos.
Na última terça-feira, Alexandre de Moraes deixou claro que houve tentativa de golpe e apontou o ex-presidente como líder das ações. Flávio Dino acompanhou o voto do relator, mas ressalvou que as participações de Alexandre Ramagem, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira foram menores, e, portanto, suas penas também devem ser menores.
Na sessão de ontem, num voto cuja leitura durou quase 13 horas, Luiz Fux reiterou o que vinha dizendo desde antes do julgamento: a Primeira Turma é incompetente para julgar réus que não têm foro privilegiado, de modo que o processo deveria ir para o plenário da Corte ou descer para a primeira instância.
Com o placar em 2 a 1 pela condenação de Bolsonaro, o julgamento foi retomado nesta tarde. Cármen Lúcia e Cristiano Zanin acompanharam integralmente o relator. O placar foi de 4 a 1 e a pena aplicada a Bolsonaro, de 27 anos e 3 meses em regime inicialmente fechado, mais 124 dias-multa no valor de 2 salários-mínimos o dia.
Além dos recursos regulamentares, a defesa de Bolsonaro se equipa para manter o cliente em prisão domiciliar, mesmo depois da condenação. Alegar “razões humanitárias” deu certo com Paulo Maluf e Fernando Collor, e nunca é demais lembrar que Lula, condenado a mais de 20 anos nos processos do triplex e do sítio, deixou sua cela VIP em Curitiba depois de míseros 580 dias. Graças a Sergio Moro — que trocou a magistratura pela política e agora está agarrado ao saco de Bolsonaro — e ao próprio Bolsonaro — que é um sério candidato a entrar para a história como o pior mandatário desde Tomé de Souza —, Lula foi “descondenado”, reabilitado politicamente e reconduzido à cena do crime.
Bolsonaro ingressou na AMAN em 1973 e deixou a caserna pela porta lateral em 1988, depois que a revista Veja revelou seu plano de explodir bombas em unidades militares caso o reajuste do soldo ficasse abaixo de 60%. Como deputado federal por sete legislaturas, apresentou 172 projetos, o ex-capitão relatou 73, aprovou dois e foi alvo de mais de 30 processos. Em 2017, quando disputou a presidência da Câmara, obteve apenas 4 votos. No ano seguinte, enquanto Lula ainda recorria de sua condição de inelegível, o "mito" dos anencéfalos aparecia em segundo lugar nas pesquisas. Mas o placar se inverteu depois que o TSE cassou a fantasiosa candidatura do então presidiário, e Jacques Wagner recusou o papel de “plano B”.
A um mês do primeiro turno, já com Fernando Haddad como principal adversário, Bolsonaro foi esfaqueado por Adélio Bispo — um lunático que não come merda nem rasga dinheiro, mas que a Justiça considerou inimputável. Na campanha do segundo turno, mesmo debilitado por duas cirurgias e preso a uma bolsa de colostomia, continuou subindo nas pesquisas. Liberado pelos médicos, preferiu não participar dos debates televisivos — uma decisão inteligente, considerando que seus discursos encantam tanto quanto um burro peidando, e um debate com Ciro Gomes, mestre na arte da oratória, sepultaria sua candidatura.
Surfando na onda do antipetismo, Bolsonaro prometeu pegar em lanças contra a corrupção na política, acabar com o “toma-lá-dá-cá e propor ao Congresso o fim da reeleição. Eleito com 55,1% dos votos válidos, prometeu governar para todos os brasileiros. Num raríssimo mea culpa, reconheceu que não nasceu para ser presidente, e sim para ser militar. No Planalto, aparelhou órgãos do Estado; enfraqueceu as instituições democráticas; insuflou manifestações e motociatas subversivas; atacou as urnas eletrônicas, o TSE e o STF; converteu as festividades de 7 de Setembro em palanque; xingou Luís Roberto Barroso de filho da puta, ameaçou não cumprir decisões judiciais de Alexandre de Moraes — a quem chamou de canalha — e acabou com a Lava-Jato porque, segundo ele “não havia mais corrupção no governo”.
Bolsonaro sempre defendeu a ditadura, a censura e o fechamento do STF e do Congresso. Durante sua nefasta gestão, foi alvo de mais de 140 pedidos de impeachment — um recorde, considerando que Collor contabilizou 29; Itamar, 4, FHC, 24; Lula, 37; Dilma, 68; e Temer, 3. Por alguma razão incerta e não sabida, Rodrigo Maia viu erros, mas não crimes em seus atos espúrios. Já Arthur Lira só tinha olhos para "orçamento secreto".
Para se blindar de denúncias por crimes comuns, Bolsonaro entregou o comando da PGR ao antiprocurador Augusto Aras e o manteve na rédea curta com a promessa (jamais cumprida) de indicá-lo para uma vaga no STF. E por falar em crimes comuns, o total de vítimas fatais da Covid em 31 de dezembro de 2022 chegou a 693.853. Boa parte dessas mortes se deveu à postura negacionista de Bolsonaro, que, no auge da pandemia, com cadáveres sendo produzidos em escala industrial, comparava a pandemia a “uma gripezinha”, chegando mesmo a associar o uso da vacina à Aids e a virar jacaré.
Além de criticar o isolamento social e praticamente todas as medidas de contenção preconizadas por especialistas, o então presidente e seu grupo político apostaram no “tratamento precoce” — um kit de medicamentos sem eficácia comprovada, que incluía cloroquina, ivermectina e azitromicina. Quando o desenvolvimento de vacinas se consolidou, o mandatário não só atrasou a compra dos imunizantes como desincentivou sua a aplicação.
O relatório de 1.300 páginas da CPI imputou a Bolsonaro e outras 77 pessoas — incluindo os ex-ministros da Saúde Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga — pelo menos uma dezena de crimes, entre os quais epidemia com resultado morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação, crimes contra a humanidade; violação de direito social; e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo. Houve denúncia apenas em relação ao então presidente, mas o caso não avançou.
O material foi entregue no final de outubro de 2021 a Augusto Aras. Parte dos apontamentos foi encaminhada para o MPF nos estados e outra parte resultou em 10 petições apresentadas ao STF envolvendo 35 dos implicados pela CPI — a maioria deles com foro privilegiado. Aras alegou que a Comissão não havia entregado provas, e as petições foram ignoradas. A vice-procuradora Lindôra Araújo requereu o arquivamento de nove petições, sob o pretexto de “ausência de justa causa para a deflagração de ação penal”.
“Tínhamos, à época, um procurador que é um prevaricador e sabotou o relatório final da CPI de olho em uma vaga do STF que nunca veio. A promiscuidade de Aras com o governo anterior era tanta que o delator Mauro Cid informou que ele tinha agendas secretas com o ex-presidente e passava dados sigilosos aos investigados”, resumiu o senador Renan Calheiros.
Outras ações apresentadas perante o STF contra agentes com foro privilegiado também não resultaram em processo judicial. Segundo estudo baseado em dados de dezembro de 2023, das 58 petições do universo amostral, a PGR requereu o arquivamento de 46, e ninguém foi condenado nas demais. Também não ocorreram condenações nas ações movidas nos estados.
Em março do ano passado, senadores que aturam na CPI solicitaram ao sucessor de Aras, Paulo Gonet, o desarquivamento dos pedidos de indiciamento contra Bolsonaro e outros agentes públicos e privados implicados pelo relatório. Nenhum crime contra a humanidade prescreve e, a todo momento, surgem fatos novos que podem reabrir as investigações e eliminar este cenário de impunidade”, mas até o momento não houve movimentação da PGR para desarquivar as petições. A Agência Pública questionou o órgão sobre o assunto, mas não recebeu resposta. Aras também foi procurado, mas não respondeu ao contato.
Em outubro do ano passado, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Conselho Nacional de Saúde (CNS) apresentaram uma nova representação criminal sobre o tema, demandando a denúncia de Bolsonaro, do ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto (que também é réu por tentativa de golpe) e dos ex-ministros da Saúde Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello. O caso está em segredo de Justiça e não há informações sobre avanços.
Bolsonaro não foi o único que escapou de qualquer responsabilização pelas ilegalidades cometidas durante a pandemia. O general da reserva e ex-ministro da Saúde Ricardo Pazuello não só se safou como se tornou o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro em 2022. Sua presença na Câmara passaria quase despercebida se seu gabinete não abrigasse o também general da reserva Mário Fernandes, ex-assessor de Bolsonaro e integrante dos “kids pretos”, que admitiu ter arquitetado o plano para matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Até a investigação da tentativa de golpe vir à tona, Fernandes ocupava “cargo de natureza especial” no gabinete de Pazuello.
Marcelo Queiroga — outro ministro da Saúde de Bolsonaro que também escapou de responsabilização por sua conduta na pandemia — lançou-se candidato a prefeito de João Pessoa (PB) no ano passado, mas foi derrotado no segundo turno. Hoje ele é presidente estadual do PL na Paraíba e pré-candidato a senador. Já Wilson Lima — que era governador do Amazonas durante a crise em Manaus, quando pessoas morreram por falta de oxigênio — chegou a ser denunciado, mas uma das ações foi rejeitada e outra ainda aguarda julgamento de mérito. Como isto aqui é Brasil, Lima foi reeleito governador com 56,6% dos votos válidos.
Também buscaram carreira política as médicas Nise Yamaguchi — que fazia parte do “gabinete paralelo” que assessorava o governo do capetão durante a pandemia — e Mayra Pinheiro (a “capitã Cloroquina”) —, que teve cargo no Ministério da Saúde e era uma das mentes por trás do aplicativo oficial que estimulava o uso do “tratamento precoce”. Ambas foram implicadas pela CPI. Yamaguchi tentou, mas não conseguiu se eleger deputada federal por São Paulo em 2022 nem vereadora em 2024. Mayra, que havia tentado se eleger deputada federal em 2014 e senadora em 2018, buscou uma cadeira na Câmara dos Deputados em 2022, recebeu mais de 71 mil votos e ficou com uma suplência, chegando a assumir o cargo por quatro meses, durante a licença do bolsonarista André Fernandes.
O deputado federal gaúcho Osmar Terra — um dos mais destacados membros do “gabinete paralelo” e disseminadores de desinformação durante a pandemia — não só escapou de qualquer responsabilização como conseguiu a reeleição para seu sexto mandato na Câmara, com mais de 103 mil votos. Ricardo Barros, citado no caso da vacina indiana Covaxin e alvo da CPI por conta de denúncias sobre pressões para liberar a transação, saiu ileso e conseguiu a reeleição para a Câmara com 107 mil votos.
Os 11 empresários e médicos ligados ao plano de saúde Prevent Senior também não sofreram condenações. A lista inclui o virologista Paolo Zanotto, o anestesista Luciano Dias Azevedo e o oftalmologista Antônio Jordão, do “Médicos pela Vida”. Segundo um dossiê, o plano teria forçado profissionais de saúde a utilizar o “kit covid” e feito testes sem autorização. A Prevent também foi alvo de CPI na cidade de São Paulo e de denúncia do MPF-SP, mas os processos não avançaram. Já o movimento pró-kit covid, coordenado por Jordão, foi condenado em primeira instância a pagar indenização de R$ 55 milhões por danos coletivos.
Presidente do Conselho Federal de Medicina à época da pandemia, Mauro Ribeiro foi implicado pela CPI por conta da postura do órgão, mas não foi levado à Justiça e se elegeu novamente para a diretoria do CFM, desta vez como tesoureiro. O relatório da Comissão também cita outro médico, Anthony Wong, como um dos membros do “gabinete paralelo”. Mas ele não foi implicado oficialmente porque morreu em janeiro de 2021 — de Covid, como revelado posteriormente pela revista Piauí.
Voltando à sessão de ontem, o voto teratológico de Luiz Fux — verdadeiro tratado de incoerência convertido em penitência em quase 13 horas de leitura — não retira a corda do pescoço de Bolsonaro e seus comparsas, que serão condenados pela maioria, mas inocula na ação sobre os crimes contra a democracia o vírus que matou a Lava-Jato.
Observação: A teratologia é uma especialidade médica que cuida das chamadas monstruosidades e malformações orgânicas do corpo humano. Na metáfora jurídica, uma decisão é chamada de teratológica quando é tão monstruosa que não tem pé nem cabeça.
Conhecido pelo perfil punitivista consolidado nos casos do mensalão, do petrolão e no julgamento das sardinhas dos atos antidemocráticos do 8 de janeiro, Fux não só reconheceu a legitimidade do STF para receber 1.692 denúncias contra participantes do quebra-quebra nas sedes dos Três Poderes, mas também seguiu o voto do relator para condenar mais de 400 "peixes miúdos". De repente e inopinadamente, torna-se ferozmente garantista ao julgar os tubarões do golpe.
Se as reviravoltas judiciais ensinam alguma coisa, é que “sempre” e “nunca” são palavras que todos sempre devem lembrar e nunca usar. O advogado de um dos generais que acompanham Bolsonaro no banco dos réus disse: "quando Lula deixou o Sindicato dos Metalúrgicos de SBC para entregar à PF, quem dissesse que ele subiria a rampa do Planalto pela terceira vez seria chamado de maluco".
E viva o povo brasileiro...