Segundo a revista
Veja, o aposentado da Marinha Mercante Waldir Ferraz, vulgo Jacaré
e autointitulado o amigo “Zero Zero” do presidente da República, já era
bolsonarista antes de o bolsonarismo ter virado uma ideologia para 20% dos
brasileiros e dos filhos e ex-mulheres do capetão terem se tornado um motivo
frequente de dor de cabeça para o presidente.
A amizade entre Cavalão
e Jacaré começou há mais de três décadas, a partir da insatisfação que
ambos compartilhavam com os baixos soldos pagos aos militares, e desde então só
se fortaleceu. Pelas mãos de Bolsonaro, o réptil de boca grande e cheia
de dentes foi contratado para trabalhar nos gabinetes do então deputado, na
Câmara Federal, de Zero Um, na Alerj, e de Zero Dois, na Câmara Municipal
do Rio, e recebeu duas condecorações do governo federal, uma delas das mãos do
próprio presidente, por “serviços meritórios e virtudes cívicas”.
Sem cargo público, Jacaré integra o grupo de
inteligência particular de Bolsonaro. Diariamente, encaminha, quase
sempre antes das 6 horas da manhã, toda sorte de denúncias e suspeitas ao
número pessoal do presidente, salvo em sua lista de contatos como JB BR 4.
Os dois têm até um código específico para tratar de conspirações e
movimentações políticas. “Como tá o clima aí?” é a senha disparada por Bolsonaro,
que em seguida recebe informes sobre possíveis apoios para a campanha.
Desde a época da transição de governo, Jacaré é
frequentador assíduo dos palácios. No último dia 18 ele se reuniu com o
presidente no Planalto para “colocar os assuntos em dia”. Em encontros no Rio
de Janeiro e em Brasília, nos quais as conversas foram gravadas, declarou que
houve rachadinha nos gabinetes de Jair, Flávio e Carlos Bolsonaro
e afirmou que a advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do capetão, foi
quem organizou e comandou a arrecadação irregular de parte dos salários dos
servidores.
Jacaré disse ainda que o presidente foi traído e não
sabia dos rolos da ex-esposa, que ainda hoje pede dinheiro em troca de seu
silêncio. “Ela fez nos três gabinetes. Em Brasília, aqui no Flávio e no
Carlos. O Bolsonaro deixou tudo na mão dela para ela resolver. Ela fez a festa.
Infelizmente é isso. Ela que fazia, mas quem é que assinava? Quem
assinava era ele. Ele vai dizer que não sabe? É batom na cueca. Como é que você
vai explicar? Ele está administrando. Não tem muito o que fazer”, afirma o
amigo de fé, irmão e camarada do presidente (clique aqui
para ouvir as gravações).
Segundo Jacaré, a rachadinha entrou nos gabinetes do
clã ainda na década de 90, quando Bolsonaro era deputado federal.
Naquela época, Ana Cristina, então casada com um sargento, aproximou-se
do capitão durante um movimento de mulheres de militares que reivindicava
aumento no soldo dos maridos. Ela foi se “infiltrando” e rapidamente ganhou a
confiança de Bolsonaro, com quem iniciou um relacionamento amoroso e de
quem logo recebeu carta branca para administrar seu gabinete na Câmara dos
Deputados.
Ainda segundo Jacaré, o esquema funcionava da
seguinte maneira: responsável por uma cota de contratações, Ana Cristina
recolhia documentos de algumas pessoas, abria contas bancárias em nome delas e
embolsava grande parte de seus salários. Em muitos casos o funcionário era
fantasma e sequer tinha conhecimento de que estava oficialmente empregado no
gabinete do deputado.
Jacaré alega que ele em que mais trabalhava com o
ex-capitão antes da chegada de Ana Cristina não participava do esquema.
“Ela é muito perigosa. É uma mulher que quer dinheiro a todo custo. Às
vezes, ela vai ao cercadinho, frequenta o cercadinho. É uma forma de chantagem.
A gente nem toca nesse assunto pra não deixar o cara de cabeça quente.” Waldir
Ferraz “A jogada dela era a seguinte: ‘Quer ganhar um dinheiro? Te dou 1 000 reais por mês. Me empresta seu
documento aí’. Pegava a carteira do cara que estava entrando na Câmara, recebia
8 000, 10 000, e dava 1 000 (reais) pro cara.”
Leal a Bolsonaro, Jacaré faz questão de ressaltar que nem
o presidente nem seus filhos sabiam das traficâncias da ex-mulher. Em sua tese de defesa,
argumenta que os parlamentares se preocupam apenas com a atividade política,
deixando a rotina do gabinete para pessoas de confiança. “Ele, quando soube,
ficou desesperado, era uma fria. O cara foi traído. Ela que começou tudo.
Bolsonaro nunca esteve ligado em nada dessas coisas. O cara não tinha visão do
que estava acontecendo por trás no gabinete. Às vezes o chefe de
gabinete faz merda, e o próprio deputado não sabe. Mesmo o deputado vagabundo
não sabe, só vem a saber depois.”
Pelo relato do ex-assessor, Bolsonaro só veio a saber
muito tempo depois. Na verdade, décadas depois — mais precisamente em novembro
de 2018, após conquistar a Presidência da República. Confrontado com a
gravidade da história, o amigo diz que o ex-capitão teria entrado em contato
com o esquema de rachadinhas nos gabinetes da família só depois da revelação
pelo jornal O Estado de S. Paulo do relatório do Coaf que
registrava movimentações milionárias de Fabrício Queiroz. Apenas ali ele
teria puxado o fio de toda a meada. Como todo marido enganado, Bolsonaro
teria sido o último a saber.
Queiroz — que também é amigo do presidente há mais de
trinta anos — substituiu Ana Cristina como responsável pela arrecadação
dos salários dos servidores e o esquema continuou sem o chefão saber. Detalhe:
a ex-mulher de Bolsonaro nunca trabalhou oficialmente para o Zero Um,
mas teve parentes empregados no gabinete dele na Alerj até 2018 e que hoje
estão sob investigação do MP do Rio.
Depois da passagem pela Câmara dos Deputados com Jair,
Ana Cristina foi chefe de gabinete do vereador Carlos Bolsonaro
por sete anos. Ela e Zero Dois também são investigados pelo MP
pela prática de rachadinha. Antes de o STF praticamente reverter à
estaca zero a apuração sobre o esquema no gabinete de Flávio, este foi
denunciado por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e organização
criminosa. Queiroz chegou a ser preso preventivamente enquanto se
refugiava num imóvel de Frederick Wassef, advogado de Jair e Flávio
Bolsonaro.
Jacaré conta que, ainda no governo de transição, Bolsonaro
ouviu de um auxiliar que Zero Um poderia ser condenado a vinte anos de
cadeia e ficou entre preocupado e emocionalmente fragilizado diante da
previsão. Desde então o caso paira como uma sombra ameaçadora sobre o
presidente, seu governo e sua família. Nas palavras do amigo, “Bolsonaro
vive na corda bamba” e tem convicção de que ninguém acreditará
que ele e os filhos não sabiam de nada do que ocorria dentro de seus
respectivos gabinetes. “Não tem como reagir. Vai fazer o que para desmanchar
isso aí? É como um beco sem saída. Ela fez uma merda, eles assinaram sem
saber, e agora vão pagar caro por isso. Acho que ele vai ter problema se não
for reeleito. Vai tudo cair, vai perder o foro privilegiado e tal.”
Jacaré diz ainda que Ana Cristina chantageia o presidente.
Exige dinheiro e outras vantagens para não contar o que sabe. Ela teria,
inclusive, ido algumas vezes ao cercadinho do Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro
interage com apoiadores, para ser vista e percebida pelo mandatário. Só para
lembrá-lo, de acordo com Jacaré, dos segredos que unem os dois até hoje
e podem complicar a vida do ex-marido. “Ela é muito perigosa. É uma mulher
que quer dinheiro a todo custo. Às vezes, ela vai ao cercadinho, frequenta o
cercadinho. É uma forma de chantagem, lógico que é chantagem. A gente nem toca
nesse assunto pra não deixar o cara de cabeça quente”.
A relação de Bolsonaro com a ex-mulher não é das mais
tranquilas. Os dois se envolveram num divórcio litigioso em que, conforme
revelado por VEJA em 2018, Ana Cristina acusou o marido de, entre
joias e outras coisas, ter um patrimônio incompatível com a própria renda. No
processo, ela anexou uma relação de bens e a declaração do imposto de renda de Bolsonaro,
demostrando que o patrimônio do casal incluía três casas, um apartamento, uma
sala comercial e cinco lotes de terra que o deputado havia “esquecido” de
relatar à Justiça Eleitoral. Sua remuneração mensal, por exemplo, seria de R$ 100 mil — quase três vezes mais do que ele
recebia, na época,
como parlamentar e aposentado do Exército.
Acusada agora por Jacaré de chefiar a rachadinha em três gabinetes da
família, Ana Cristina não disse à Justiça de onde vinha a diferença de
valores e recuou dessa história, dizendo que estava brava com o ex-marido. Nos
últimos tempos, embora distantes, Bolsonaro e Ana Cristina não se
atacam. Após a separação, ela viveu um tempo no exterior, casou-se outra vez e,
em 2018, utilizando o sobrenome Bolsonaro, tentou uma vaga na Câmara dos
Deputados (obteve apenas 4.555 votos).
Em agosto do ano passado, VEJA revelou que Ana
Cristina vive em uma confortável mansão no Lago Sul, bairro nobre de
Brasília, com o filho Jair Renan, o Zero Quatro, também
investigado por receber vantagens de empresários com interesses no governo
federal. “Ela também usa o menino para fazer dinheiro”, dispara Jacaré.
Na terça-feira 18, durante uma conversa por telefone com VEJA,
Ana Cristina negou que tenha comandado esquemas de rachadinha, que
chantageie Bolsonaro e disse que as acusações partem de inimigos que
querem atingir os “meninos” Flávio e Carlos. “Se eu tiver que
falar com o presidente, acha que eu vou para o cercadinho para todo mundo ficar
vendo, para jornalista ficar vendo? Sou discreta”, declarou. Apesar de
alegar inocência e entoar um discurso em defesa do ex-marido e dos enteados,
ela fez questão de arrematar sua defesa com a seguinte ponderação: “Não sou
mentora da rachadinha. Ele (Bolsonaro) me chamava de sargentona, mas quem
mandava no gabinete era ele. Quem assina as nomeações e exonerações é o
parlamentar. Não faz sentido assinar sem ler porque todos eles são bem
instruídos”.
Jacaré, que nada tem de inimigo do presidente, mantém-se
vigilante. Municiar Bolsonaro com informações de coxia sempre foi uma de
suas missões. Não raro, o ex-capitão recebe os dados e as ideias de Jacaré
e sai repetindo por aí. Numa tentativa de demonstrar quão zeloso ele é, o amigo
do presidente diz ter sido decisivo para convencê-lo de que o ex-ministro Gustavo
Bebianno, morto em março de 2020, estava por trás de um plano para
assassinar Bolsonaro, que seria executado por Adélio Bispo, o esfaqueador
que não rasga dinheiro nem come merda, mas foi declarado inimputável.
Segundo a tese de Jacaré, Bebianno queria, com
a morte do então candidato, ser ungido seu substituto na corrida presidencial.
Ao descobrir o plano, ele teria contado detalhes da trama para o presidente e
seu filho Carlos. Bolsonaro realmente ouviu essa história, tanto
que mencionou a existência de uma conspirata para matá-lo em entrevista
concedida a VEJA em 2019 — e falava explicitamente na participação de
“quem estava do meu lado”.
Bolsonaro espera explorar politicamente na próxima
campanha o atentado a faca que sofreu. Ele quer usar o episódio para requentar
a tese de que Adélio agiu a mando de alguém e vender a versão de que
ele, Bolsonaro, enfrenta uma oposição sem limites de forças ocultas a
serviço do sistema. O problema dessa tese é que a própria PF concluiu
que o napoleão de hospício agiu sozinho e deu a questão da autoria por
encerrada. Já o caso das rachadinhas continua em aberto e caiu no gosto
popular, especialmente a informação de que Queiroz, o operador do
esquema, depositou R$ 89 mil para a primeira-dama. Bolsonaro disse que
esse dinheiro era parte do pagamento de uma dívida que o amigo tinha com ele.
Até aqui, a Famiglia Bolsonaro alega que as denúncias
são infundadas, visam desestabilizar o governo e partem de adversários. As
declarações de Jacaré põem em xeque essa versão. Não é um
inimigo falando. Ele pode ser acusado de um monte de coisas, menos
de não compartilhar da intimidade, da amizade e da história de vida de Bolsonaro.
Procurado, o presidente não se manifestou até o fechamento da edição 2773 da
revista Veja.