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domingo, 29 de agosto de 2021

A HORA DE DAR NOMES AOS BOIS

 

As manifestações convocadas por apoiadores do presidente Bolsonaro para o próximo dia 7 podem resultar em tentativas de agressão e ataques às instituições democráticas. Atos de oposição ao governo também foram marcados para o mesmo dia, o que torna o cenário ainda mais preocupante. Sobretudo porque a retórica bolsonarista se deslocou das Forças Armadas para as corporações militares estaduais

O deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP) disse na última quinta-feira que de 5.000 a 10.000 policiais militares, da ativa e da reserva, devem participar de atos a favor do governo na avenida Paulista, em São Paulo, e militares do interior e de outros Estados organizam caravanas rumo à cidade, algumas com apoio de empresários e setores do agronegócio.

Bolsonaro pretende fazer uma demonstração de força nas ruas, assim como tentou — e fracassou — com o desfile de blindados por Brasília, no começo do mês de agosto. Seus paus-mandados vêm mobilizando apoiadores num momento de fragilidade do "mito", que tem feito investidas contra ministros do STF — como o estapafúrdio pedido de impeachment em desfavor do ministro Alexandre de Moraes, rejeitado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, dada sua "manifesta ausência de tipicidade e de justa causa".

Cada vez mais dependente do Centrão, que ocupa cada vez mais espaços no governo, o presidente que não governa tenta engajar setores mais fiéis a seu projeto, num dia de grande valor simbólico para esses grupos. O que se pretende é apontar o Judiciário e o Legislativo como principais inimigos do governo e culpá-los pela inação do Messias que não miracula, quando o verdadeiro responsável pelo problema é o próprio presidente, dada sua incapacidade de exercer o cargo para o qual foi eleito por se ter tornado a única alternativa à volta do lulopetismo corrupto.

O ministro do STF e atual presidente do TSE, Luís Roberto Barroso — que o mandatário de fancaria alçou à condição de desafeto por divergir de suas opiniões acerca das urnas eletrônicas e da ressureição do voto impresso — diz não ver condições para golpe no País, mas que o tema já o preocupa. E não é para menos.

Na segunda-feira, 23, o governador João Dória determinou afastamento do coronel Aleksander Lacerda, chefe do Comando de Policiamento do Interior-7 da Polícia Militar de São Paulo, depois que o Estadão revelou postagens do oficial chamando Rodrigo Pacheco de "covarde" e Doria de "cepa indiana", e acusando Rodrigo Maia (recém-nomeado secretário de Projetos e Ações Estratégicas de São Paulo) de ser "beneficiário de esquema mafioso".

"No Estado de São Paulo nós não teremos manifestações de policiais militares na ativa de ordem política", afirmou o governador tucano, que determinou à Secretaria de Segurança Pública que vetasse a realização de protestos contra Bolsonaro no dia 7, tanto na capital quanto em outras cidades paulistas. 

Já o Ministério Público Militar do Ceará recomendou aos comandantes-gerais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros do Estado a adoção de medidas para "prevenir, perquirir e, se for o caso, fazer cessar, inclusive por meio da força" atos promovidos ou integrados por militares estaduais no feriado da Independência.

Bolsonaro continua afirmando que os atos pró-governo serão "extremamente pacíficos", e que são os protestos da esquerda que depredam patrimônio. "Estão dizendo que quero dar golpe. São idiotas, já sou presidente", declarou, na última sexta-feira, a apoiadores que se aglomeravam (sem máscara) defronte ao Alvorada. Mas não só reafirmou que marcará presença nas manifestações na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e na Avenida Paulista, em São Paulo, como chamou de "idiota"quem afirma que é preciso comprar feijão em vez de fuzil.

Os atos vão mostrar para o mundo "que o Brasil está sofrendo", disse o presidente. "O que está em risco é o futuro de vocês e a minha vida física. Tem uma van ali para evitar o sniper [atirador]. É o tempo todo essa preocupação do que pode acontecer", perorou o mandatário. Mesmo assim, o deputado-réu que que preside a Câmara graças ao apoio do capitão assevera que "não haverá nada no 7 de setembro", e que "é o presidente quem pauta o País, inclusive em relação a movimentos e manifestações previstos para o dia da comemoração da independência do Brasil.

Chega uma hora em que é preciso chamar as coisas pelo seu nome: os atos convocados pelo presidente são um ensaio para um golpe de Estado. A ideia do capitão é reunir 2 ou 3 ou até 5 milhões de pessoas visando provar que o povo está do seu lado para fazer valer a sua vontade sobre a Justiça, o Congresso e quem mais se puser no caminho. Guardadas as devidas proporções, o que ele pretende é recriar uma versão tropical da marcha sobre Roma de Benito Mussolini reciclada com o autogolpe de 1992 de Alberto Fujimori, sob o pretexto de que o Legislativo e Judiciário não o deixam governar.

De acordo com o jornalista e consultor Thomas Traumann — autor de "O Pior Emprego do Mundo", sobre o trabalho dos ministros da Fazenda —, monitoramentos nas redes sociais na última semana dão conta de que é alta a possibilidade de as manifestações reunirem milhões, notadamente pelo intenso trabalho dos pastores das igrejas pentecostais. Nas Marchas por Jesus realizadas todos os anos, essas igrejas facilmente batem nos 4 milhões de fiéis nas capitais, mas com Bolsonaro o discurso é apocalíptico.

Nas correntes de WhatsApp evangélicas, prossegue Traumann, são os valores da família que estão em jogo, não Bolsonaro. O 7 de Setembro está sendo apresentado como dia decisivo para a defesa do cristianismo sobre a corrupção, o comunismo e leis que desvirtuariam a família. “Supremo é o País cujo Deus é o Senhor”, terminam as mensagens. Desde as eleições de 2018 não se via uma mobilização digital tão forte dentro das igrejas evangélicas.

A linha do discurso nas redes sociais classifica como “ataque à liberdade de expressão e à democracia” as ordens do ministro Alexandre de Moraes de prender bolsonaristas por defenderem o golpe militar. Por esse raciocínio, o magistrado estaria abusando dos seus poderes por ser, ao mesmo tempo, vítima, investigador e juiz do processo sobre ataques ao STF

Por uma leitura enviesada da Constituição pelos bolsonaristas, caberia às Forças Armadas o papel de Poder Moderador, intervindo a favor do presidente. O irônico é que, sempre que Bolsonaro força a linha da democracia e o Supremo reage, melhor para o discurso bolsonarista. Cada ação do STF ou do Senado para conter o capitão apenas confirma o que ele está dizendo — e serve para incitar a massa.

Os atos de 7 de Setembro não implicam que o autogolpe vá ocorrer nas próximas semanas, mas, sim, que o presidente está reunindo a tropa e preparando a opção. Por mais que digam que não acreditam em pesquisas, as hostes bolsonaristas já têm consciência de a reeleição do mito subiu no telhado. E reunir milhões poderia reanimar a turba para uma campanha eleitoral com base na intimidação e na ameaça de golpe antes de partir, de fato, para a quartelada.

O problema do monstro é que chega um momento em que não se consegue mais controlá-lo. No ato "Salve a América", dois dias após a cidade de Cullman decretar estado de emergência devido ao aumento no número de mortes por Covid, o ex-presidente Donald Trump foi vaiado em um comício no estado do Alabama ao defender a vacinação contra a Covid. Ele chegou a fazer um sinal de “não” com a mão, em direção a quem o estava vaiando, mas na sequência disse: “Não, ok, ok. Vocês têm suas liberdades, eu acredito. O que você tem de fazer você tem que fazer. Mas eu recomendo: tomem a vacina! Eu tomei e é boa. Tomem a vacina”, disse. Na sequência Trump provocou risadas em parte da plateia ao dizer: “Se não funcionar, vocês vão ser os primeiros a saber, ok?”.

Bolsonaro está alimentando um ódio que pode facilmente descambar para a violência no dia 7 de Setembro. Isso se ele próprio não insuflar as tropas militares a atacar o STF ou o Congresso.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

COMO DIRIA PAZUELLO, É SIMPLES ASSIM (PARTE III)

 

Na "Carta ao Leitor" desta semana, VEJA relembrou que Steve Jobs, fundador da Apple e um dos maiores ícones do capitalismo mundial, era dono de uma capacidade inata de convencer as pessoas a realizar tarefas mirabolantes.

Chamada de reality distortion field (campo de distorção da realidade), essa peculiaridade do gênio da tecnologia era baseada no carisma e na habilidade de agregar apoio na direção daquilo que ele queria. Quando acionava esse “escudo”, Jobs passava a acreditar que o impossível era alcançável, e assim minimizava obstáculos e propagava sua crença entre os colaboradores. Apesar de alguns reveses, a estratégia deu certo, transformando a Apple em uma das maiores empresas do mundo e seu dono em uma lenda.

No Brasil, testemunhamos hoje um exemplo claro de reality distortion field. Mas, ao contrário do empreendedor americano, a nossa experiência é absolutamente negativa e pode ser tremendamente prejudicial ao país — na verdade, já está sendo. No nosso caso, a distorção da realidade é provocada por Jair Bolsonaro.

No 7 de Setembro, convocadas pelo presidente, dezenas de milhares de pessoas ocuparam algumas ruas das principais capitais brasileiras empunhando cartazes que, entre outras loucuras, alertavam contra “a ameaça do comunismo” ou defendiam a ideia de que “o STF é o pior inimigo do Brasil”. É chocante para quem acompanha minimamente a cena política e econômica brasileira ouvir tais disparates. Ninguém fora de hospícios deveria falar hoje em comunismo por aqui, e o ministro Alexandre de Moraes, goste-se ou não de suas decisões, não tem nada a ver com os quase 600.000 mortos pela pandemia, o PIB baixo, a alta da inflação, a gasolina a R$ 7 reais o litro e o dólar muito acima do que deveria — problemas reais do país.

O Brasil poderia estar surfando na retomada da economia global e na alta do preço das commodities, mas, bombardeados com insanidades nas redes sociais — terreno em que Bolsonaro promove seu mundo de fantasia, brasileiros saíram de casa para protestar, proporcionando as fotos e a narrativa que o "mito" tanto almeja. Felizmente, o alcance dessa realidade paralela vem diminuindo com o tempo. Sem capacidade de governar e entretido em devaneios autoritários, o capitão vê as dificuldades se acumulando, nada faz para resolvê-las e, como as pesquisas apontam, está perdendo eleitores (além de aliados importantes).

Seu próximo grande desafio — o da vida real — é o risco de racionamento de energia elétrica, devastador para o crescimento da economia e para a vida das pessoas, inclusive para a turma que se vestiu de verde-amarelo no feriado. A maior parte dos reservatórios nacionais está num nível abaixo do que estava há vinte anos, quando vivemos um apagão e o governo Fernando Henrique, infinitamente superior ao atual, acabou derrotado nas urnas.

Ciente desde outubro do ano passado dessa questão, Bolsonaro continua a se dedicar apenas ao que sabe: promover uma guerra permanente contra instituições (com breves recuos) e sonhar com um autogolpe. A depender da reação, ele pode ganhar combustível e assuntos para criar mais ilusões; porém, se racionalidade imperar, o mandatário de fancaria não tem chance.

Bolsonaro fala em corda esticada enquanto se empenha em tensionar cada vez mais o hipotético artefato que, tudo indica, acabará arrebentando do lado dele. Se acredita que a grande quantidade de gente presente às manifestações do último dia 7 lhe confere e assegura força política, engana-se por completo. No máximo, inibe a abertura de um processo de impeachment.

Preocupada com as crescentes adversidades do cotidiano, a maioria da população não está armada para guerra de nenhum outro tipo que não seja contra a inflação, o desemprego, a pandemia e o risco de apagão elétrico. Nos poderes Legislativo, Judiciário e até mesmo nas internas do Executivo a reação às palavras do mandatário foi péssima. Não apenas, mas também por causa das agressões reiteradas, ele tem se tornado uma companhia tóxica. Gente que normalmente pisa com cuidado quando o assunto envolve a figura do presidente tende a aumentar a firmeza dos passos.

Unido como nunca esteve por obra das agressões do chefe do Executivo, o Supremo cogita de tomar a iniciativa de enviar à Câmara, com todo o seu peso institucional e sem passar pela PGR, um pedido de impeachment se Bolsonaro concretizar as ameaças de não cumprir decisões judiciais — ele fez essa ameaça de duas formas: ao indicar em declarações públicas que pode atuar fora das "quatro linhas da Constituição" e por meio de recados que há algum tempo vem fazendo aos ministros. Daí a convicção da maioria do STF sobre a impossibilidade de ocorrer um recuo rumo à moderação (nem vou mencionar a patética "carta à nação" redigida pelo igualmente patético vampiro do Jaburu). Ao contrário, a expectativa é de exacerbação crescente.

Com apoio do colegiado, Fux já decidiu que não dará mais um passo na direção do diálogo. Se qualquer outra autoridade insistir na proposta de reabrir um canal de conversa, o ministro não rejeitará liminarmente, mas vai impor duas condições: 1) que cessem as agressões e, 2) que os termos do armistício sejam respeitados por Bolsonaro. Em caso de quebra do eventual acordo, a beligerância de um lado teria como resposta a mão firme do estado de direito.

No entendimento estabelecido nas internas do STF, o presidente da República precisará produzir prova material de que compreende o sentido da expressão “estado de direito”. Ela significa que o Judiciário é o único autorizado pela Constituição a reformar (para não dizer, cassar) decisões dos outros dois poderes, porque a última palavra é a da lei. Isso num Estado comandado pelo Direito, onde o império é o da legalidade. Até agora, no entanto, Bolsonaro não deu sinais de que compreende nem muito menos indica que pretende se submeter a esse preceito, tal a desfaçatez e a ligeireza com que fala em descumprir decisões oriundas do STF — que tem estratégia de reação montada para o caso de riscos institucionais leves, graves e gravíssimos.

Há quem considere que essa disposição presidencial possa levar a uma situação de ruptura decorrente de um impasse para o qual não haveria solução. Não é esse, contudo, o pensamento preponderante das togas. Caso o Poder Executivo se recuse a atender a um pedido dos governadores de ajuda federal para execução de operação por Garantia da Lei e da Ordem (GLO) diante da ocorrência de tumultos prejudiciais à realização das eleições, o Judiciário e o Legislativo podem solicitar tais ações independentemente da vontade do Planalto.

A hipótese ainda mais gravosa seria a de o presidente da República materializar as ameaças de reagir ao cumprimento de decisões da Corte. Bolsonaro já disse que faria isso. Seria coisa inédita na República. Desde que a República se entendeu por democrática, nenhum presidente envolvido em situações periclitantes levou adiante algo parecido, justamente porque a Constituição dá ao Direito a prerrogativa da palavra final. Seria uma situação delicada que levaria o presidente da Câmara a um beco sem saída.

Mesmo o Supremo propondo, a decisão final ainda cabe aos deputados, e a prerrogativa de levar ou não a questão ao plenário continua sendo do presidente da Casa do Povo, onde hoje se acumulam mais de 130 pedidos. Só que uma coisa é ignorar solicitações de populares, juristas ou mesmo de entidades de classe e outra, bem diferente, é ignorar um ofício do STF, naturalmente lastreado em robusta justificativa jurídica, solicitando a abertura de um processo de impeachment do presidente da República. Além do ineditismo do gesto, haveria o peso do signatário sobre a cabeça de Lira.

Enquanto Bolsonaro esbraveja no palanque, nos bastidores o Supremo se articula em seus canais de comunicação com o Legislativo, com a Polícia Federal e com os comandos das Forças Armadas na montagem das estratégias de precaução contra as arruaças de um presidente que tanto pode ser impedido no exercício do cargo quanto ser interditado como candidato. Cumpre, ademais, sublinhar: os inquéritos em curso no STF e no TSE produzirão resultados — seja no todo ou em parte — no ano eleitoral de 2022.

Como diria Pazuello, é simples assim.

Com Dora Kramer

quarta-feira, 31 de março de 2021

BOLSONARO — REFORMA MINISTERIAL OU PRENÚNCIO DE AUTOGOLPE?

A polarização político-ideológica transformou a eleição presidencial de 2018 num plebiscito em que o esclarecidíssimo eleitorado tupiniquim baniu o lulopetismo corrupto mediante a unção do bolsonarismo boçal. Como não há nada tão ruim que não possa piorar, escorraçar o morubixaba de turno no pleito do ano que vem pode restabelecer o status quo ante, visto que no último dia 8 o ministro Fachin lavou a ficha do ex-presidiário de Curitiba

Caso a decisão monocrática do magistrado seja chancelada pelo plenário (o julgamento está pautado para o próximo dia 14), Lula poderá concorrer novamente à presidência. Embora o bolsonarismo e o lulopetismo se retroalimentem, Bolsonaro esperava disputar com Haddad ou outro “poste” igualmente patético que o molusco abjeto convertesse em bonifrate. Seja como for, tudo indica que teremos (mais uma vez) de apoiar quem não queremos para evitar barrar quem queremos menos ainda.

Em 2018, unimos forças com os bolsomínions para eleger um dublê de mau militar e parlamentar medíocre que, em 15 anos de quartel e 28 de deputância, foi uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, e uma vez eleito e empossado, fez como os nazistas, que usaram da Constituição de Weimar para chegar ao poder e, mais adiante, destruir seus postulados. 

Se os arroubos institucionais desse inimigo visceral das liberdades democráticas tivessem sido levados a sério por seus pares, talvez o então deputado tivesse sido deposto e/ou perdido seus direitos políticos. Mas o diabo mora nos detalhes, e seu maior trunfo, como ensinou Charles Baudelaire, é convencer-nos de que ele não existe.

Bolsonaro sempre defendeu a ditadura, a censura, o fechamento do STF, do Congresso. Como o escorpião da fábula, é incapaz de agir contra a própria natureza. Todas as pretensas “mudanças de comportamento” que ensaiou nos últimos 27 meses foram tão legítimas quanto verazes as narrativas que ele e sua prole criam para manter acirrados os ânimos da camarilha de trogloditas alienados que batem palma para maluco dançar.

Parte da culpa por descalabro cabe à Constituição Cidadã, promulgada em meio à ressaca da ditadura militar, pois os constituintes pavimentaram o caminho para o parlamentarismo. No art. 2º Título X, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, nossa Carta Magna explicita que: “no dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.” Mais adiante, a emenda nº 2, de 25 de agosto de 1992, antecipou o plebiscito para 21 de abril de 1993 e determinou que seus efeitos vigessem a partir de 1º de janeiro de 1995. 

Mas faltou combinar com os burros, e aí deu zebra. E a zebra emprenhou e pariu o presidencialismo de coalizão (ou de cooptação, como queiram).

Observação:  No parlamentarismo, o chefe de governo é o primeiro-ministro, que é escolhido entre os membros do partido (ou da coligação) com maior número de cadeiras no parlamento. Caso ele perca o apoio das alianças construídas para sua eleição, seu mandato pode ser interrompido a qualquer momento. No presidencialismo, os remédios constitucionais são o impeachment (por crime de responsabilidade) e a abertura de processo criminal no STF (em caso de infração penal comum), mas ambos são demorados, e sua eficácia depende do Congresso, que funciona como juiz e júri num julgamento eminentemente político.

Resta ao povo — de quem supostamente todo poder emana e em cujo nome deve ser exercido — assistir estarrecido e impotente aos sucessivos crimes de responsabilidade praticados pelo líder da nação. O senador tucano Tasso Jereissati disse com todas as letras: “É preciso parar esse cara”. Mas parar como, se o próprio Jereissati é contra o impeachment? 

Em se tratando de Bolsonaro, a renúncia está fora de cogitação. A menos que ele se dê conta de que seus direitos políticos venham a ser ameaçados por um impeachment, como se deu com Collor em 1992. Aliás, tanto no impeachment do caçador de marajás de festim quanto no da gerentona de araque (em 2016), a pressão popular resultante das crises econômica e política estimulou os congressistas a rescindir unilateralmente o contrato de locação do inquilino de turno do Planalto. No contexto atual, porém, existe um fator complicador, que é o isolamento diplomático.

Outra diferença — talvez ainda mais relevante — consiste no fato de o país estar atravessando a pior fase da pandemia sanitária de toda a sua história (e nada indica que o vírus será debelado no curto prazo). Continuar assistindo à derrocada do governo sem nada fazer é um crime de lesa-pátria, até porque, sem ação política, o presidente pode recorrer ao “autogolpe” para implementar um regime de exceção (leia-se ditadura). 

Isso nos leva à troca das cadeiras promovida pelo presidente na última segunda-feira, que teve como estopim a substituição do general Pesadelo, no comando da Saúde, pelo cardiologista Marcelo Queiroga, bem como a demissão de Ernesto Araújo (detalhes nas postagens anteriores). 

Impulsionadas pelo agravamento da pandemia, essas mudanças sinalizam três movimentos preocupantes. Num, Bolsonaro afaga o Centrão, entregando a coordenação política à inexperiente deputada Flávia Arruda, filiada ao partido do mensaleiro Valdemar da Costa Neto e cupincha do réu que ora preside a Câmara. Noutro, aperta as Forças Armadas trocando o ministro da Defesa. Num terceiro lance, tenta proteger a prole colocando no comando da pasta da Justiça um delegado federal licenciado que amigo da filharada. 

Mas o mais surpreendente foi a substituição do general Fernando Azevedo e Silva pelo até então ministro chefe Casa Civil, general Braga Netto, no comando da Defesa, e a transferência do general Luís Eduardo Ramos da articulação política para a Casa Civil

Nesse ambiente, prevalece uma máxima que o próprio Bolsonaro criou: "Ministros são como fusíveis. Para não queimar o presidente, eles se queimam". A questão é saber com que propósito Bolsonaro promoveu as mudanças. Por enquanto, a única certeza que se tem é a de que não há sobre a mesa nada que se pareça com interesse público.

O ministério da Defesa foi criado no segundo mandato de FHC para explicitar a subordinação das Forças Armadas, que são uma instituição de Estado, não de governo. Nunca antes na história deste país essa pasta foi usada politicamente para reforçar a prevalência dos militares sobre o poder civil — ou, nas palavras de Merval Pereira, como uma ameaça de autogolpe.

Na divisão do butim do Orçamento de 2021, a quota-parte que tocou à Defesa superou a soma das verbas destinadas à Saúde e à Educação. E como Bolsonaro não dá ponto sem nó, salta aos olhos que a contrapartida esperada é a ampla, geral e irrestrita lealdade dos fardados. 

Donde a demissão do general Azevedo e Silva, que anotou em sua nota de despedida sempre ter preservado as Forças Armadas como instituições de Estado, deixando claro seu incômodo em ter de respaldar o presidente quando ele usava o Exército para fins político-eleitoreiros. Aliás, foi por essas e outras que o general Edson Pujol ameaçou deixar o comando do Exército no ano passado — e só não o fez porque foi dissuadido por Azevedo e Silva.

Ontem, após se reunirem com o general Braga Netto, sucessor de Azevedo e Silva no ministério da Defesa, os três comandantes das Forças Armadas renunciaram. Eles reafirmaram que os militares não participarão de nenhuma aventura golpista, mas buscam uma saída de acomodação para a maior crise na área desde a demissão do então ministro do Exército Sylvio Frota. Braga Netto tentou dissuadi-los, mas pesou demais a demissão inesperada de Azevedo, que funcionava como pivô entre as alas militares no governo, o serviço ativo e o Judiciário.

Observação: Há um temor de agitação nos quartéis nesta quarta (31), quando o golpe de 1964 completa 57 anos. O episódio envolvendo Frota é lembrado pelos oficiais-generais — todos formados em turmas em anos próximos —, embora seja preciso ter em mente que em 1977 vivia-se uma ditadura em abertura por Geisel, e Frota foi demitido porque se opunha a isso. Além do mais, ele era ministro do Exército — como dito linhas atrás, a pasta da Defesa só viria a ser criada em 1999 e foi comandada por civis até 2018, embora 5 de seus 12 titulares até aqui tenham saído de forma conturbada.

Resta agora a Braga Netto acertar uma acomodação de nomes. Para Marinha e Aeronáutica, que têm menor peso relativo, a sucessão deve ser menos nevrálgica do que no Exército. Mas nada indica que o general aceite participar de uma ação de exceção, a despeito de sua lealdade a Bolsonaro. E ainda que isso acontecesse, não haveria respaldo no Alto-Comando do Exército para um autogolpe. Ou pelo menos é o que se espera.

O Brasil vive uma crise com características especiais, diz o historiador e professor Marco Antonio Villa. Não há na história republicana nenhum paralelo. Tudo pelo que passamos até hoje foram crises pontuais, mas agora convivemos com um processo de tensão permanente, que atinge amplos setores da vida nacional. É a crise mais longa e profunda de toda a nossa história. Longa pela extensão no tempo; profunda por ter alcançado uma amplitude muito maior do que conhecemos em 132 anos de República. E pior: em nenhuma das crises anteriores havia na Presidência um genocida, psicopata e beócio, conclui o professor Villa.

Esperar que Bolsonaro se converta à democracia é, no mínimo, um grave equívoco. Como parlamentar, o capitão das trevas sempre deixou claro seu descompromisso com os valores democráticos e com a Constituição de 1988. Não se pode esquecer que ele planejou — enquanto militar da ativa — um conjunto de ações terroristas que, se realizadas, levariam a um morticínio. No Parlamento, permaneceu por quase 3 décadas defendendo torturadores, ditaduras, insuflando a guerra civil e até advogando o fuzilamento de um presidente da República.

A questão que se coloca é que os sucessivos ataques ao Estado democrático de Direito, nesta conjuntura, são ainda mais graves, sobretudo em meio à pandemia da Covid. A perversa combinação de tais fatores, associada a uma profunda recessão econômica, joga o Brasil à beira do caos social. 

A economia está à deriva. Todas as condições para uma explosão social ao estilo das antigas jacqueries — que assolaram o mundo rural francês no final da Idade Média — estão colocadas, posto que não há, como no final do século anterior, organizações populares que poderiam sistematizar, articular e conduzir ações políticas.

O impasse tem de ser enfrentado e resolvido. A iniciativa política precisa vir dos setores democráticos. Agir reativamente não basta. Há que construir um amplo arco de alianças no Parlamento e fora dele. É preciso agir, pois simples lamentos não adiantam de nada. E a ação tem de ser rápida. 

Diversamente das crises anteriores, esta tem um componente único: a vida dos milhões de brasileiros. Se Bolsonaro não for rapidamente vencido, a pandemia continuará a ceifar milhares de vidas todos os dias.

Dirigentes e líderes de partidos de centro temem que o presidente venha a radicalizar seu discurso (e suas ações) caso se sinta ameaçado, diz Monica Bergamo em sua coluna na Folha. Na visão dos parlamentares, afirma a jornalista do Globo, Bolsonaro, ao mesmo tempo que tenta consolidar o apoio do centrão, testa os limites da governabilidade, como se preparasse um plano B

Para Ministros do STF, o que minimiza o temor de atos mais autoritários é o fato de os próprios fardados de alto escalão estarem reagindo ao capitão. Além disso, o presidente está em um momento de fraqueza política e não receberia aval para levar adiante medidas polêmicas, como, por exemplo, decretar estado de sítio.

De todo modo, causou surpresa geral a forma como se deu a demissão do ministro da Defesa e a nítida impressão de que o chefe do Executivo quer usar as Forças Armadas em seu espúrio projeto de poder. 

Embora tenha feito acenos ao Centrão colocando uma deputada do grupo para comandar a Secretaria de Governo, a inflexão que a cúpula do Congresso e empresários esperavam de Bolsonaro não ocorreu nem vai ocorrer: mesmo flertando com discursos ponderados de combate à Covid e usando máscara, o presidente seguirá numa toada radical, falando mais para sua base radical e menos com o Parlamento.

O governador de São Paulo, João Doria lembrou que “as Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo”. Flávio Dino, do Maranhão, avaliou que a substituição dos comandantes reforça o diagnóstico de que a troca na Defesa não foi corriqueira ou poderia ser vista como trivial. “Na verdade, é uma tentativa do Bolsonaro de subalternizar as Forças Armadas para seus intentos delirantes e despóticos”, disse Dino, para quem as Forças Armadas, o Congresso e o Judiciário precisam se opor às tentativas do capitão de “transformar as Forças Armadas em milícias desse poder que ele exerce.”

ObservaçãoEstado é uma estrutura e como tal tem caráter permanente. O governo, representado por aqueles escolhidos para gerir a máquina do Estado, é transitório. Dito de outro modo: enquanto o Estado serve à nação de uma maneira mais ampla, apartidária, impessoal, o governo está ligado a partidos políticos e a indivíduos. 

A preocupação ganhou corpo na reunião de ontem, após o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, apresentar um projeto que daria poderes a Bolsonaro para decretar mobilização nacional em questões de grave problema de saúde pública — como a pandemia. Protocolado na Câmara há cinco dias, a proposta foi vista como uma tentativa de criar um mecanismo legal para que a União pudesse interferir direto nas ações de estados e municípios, em meio a atritos entre o Executivo Federal, governadores e prefeitos. O Congresso teria que dar autorização ao decreto presidencial, mas, mesmo assim, o timing causou inquietação no Parlamento.

Na avaliação do deputado Rodrigo Maia, o projeto do deputado bolsonarista é flagrantemente inconstitucional. “Ele busca criar um novo instituto de emergência constitucional fora da Constituição”, critica o ex-presidente da Câmara, que deixou de “herança” a seu sucessor mais de 60 pedidos de abertura de processo de impeachment contra o capitão-calamidade. Maia pondera que, apesar de ser necessário obter autorização do Parlamento, o quórum de votação é baixo. Mas salienta que o projeto não teve consenso da maioria dos presentes e não foi incluído na pauta da sessão da tarde de ontem. Disse ainda o deputado que "Bolsonaro está cada vez mais parecido com Chávez e Maduro. Logo mais começam a expropriar. E muita gente, na elite principalmente, acha que é uma opção contra o PT. É muito mais do que isso. Um autoritário sempre será autoritário". 

A pergunta é: por que Maia não faz o que poderia — e deveria — ter feito quando presida a Câmara e, portanto, tinha a faca e o queijo nas mãos?

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A MALDIÇÃO DA VICE-PRESIDÊNCIA — CONTINUAÇÃO


Desde o golpe de Estado de 1889 (que entrou para nossos livros de História com o pomposo nome de "Proclamação da República"), oito vice-presidentes terminaram os mandatos de seus titulares. Só no período pós-ditatura houve três casos. O primeiro se deu quando ainda se ouviam os vagidos da "Nova República". Mas a pergunta que se coloca é: será que a instituição da vice-presidência ainda se justifica — se é que algum dia se justificou?

Em dezembro de 2015, Michel Temer encaminhou a Dilma uma "carta pessoal" queixando-se de ser um vice-presidente meramente decorativo. A missiva vazou (dizem que por obra e graça do próprio Temer) e foi amplamente repercutida pela imprensa. Ato contínuo, o Vampiro do Jaburu se tornou o principal articulador (e maior beneficiário) do impeachment da gerentona de araque. 

Pergunta-se: que falta fez um vice durante seu mandato-tampão? Será que os presidentes da Câmara, do Congresso e do STF (segundo a linha sucessória presidencial) não deram conta de cobrir as eventuais ausências do vampiro que tem medo de assombração? Para que serve um vice-presidente senão para sugar das tetas do Erário uma polpuda remuneração, morar num palácio à beira do lago, ter a sua disposição um batalhão de serviçais e assessores e não fazer nada de útil além de, nas horas vagas, conspirar contra o titular?

O cenário atual é ainda mais escabroso. O mandatário de turno é investigado em 5 inquéritos, denunciado pela CPI por 9 crimes (denúncias que seu vassalo na PGR se esforça para matar no peito) e alvo de 141 pedidos de impeachment (que o réu que preside a Câmara mantém sob seu respeitável buzanfã). Antes mesmo de tomar posse, o vice do capetão, general Hamilton Mourão, disse à Folha que o salário era "uma palhaçada".  

Observação: A partir de maio deste ano, Mourão passou a receber R$ 63.511 de remuneração bruta. Ele ganhou R$ 30.934 em fevereiro, último dado disponível, para exercer o cargo de vice-presidente, e mais R$ 32.577 da reserva remunerada (o abate-teto de R$ 24.311,71 deixou de existir com a publicação da portaria de 30 de abril).

Ainda durante a campanha, o duble mau militar e parlamentar medíocre — que, por alguma razão inexplicável, continua presidente — pegou em lanças contra a corrupção, excomungou a velha política do toma-lá-dá-cá e prometeu acabar com a reeleição. Eleito, enfiou o discurso de palanque em local incerto e não sabido. Em meio à pandemia, transformou a Saúde num grande quartel. Em meio à institucionalização da corrupção pela banda podre do Judiciário, fritou o ministro da Justiça, reconduziu o tal vassalo à PGR, comprou votos para eleger o tal réu que preside a Câmara, nomeou ministro do STF alguém comum currículo questionável, mas com quem ele "bebeu muita tubaína" e, mais recentemente, entregou a suprema toga a um pastor "terrivelmente evangélico".

Ao longo de três anos de gestão, Bolsonaro não só incentivou como participou pessoalmente de inúmeras manifestações golpistas. Transformou as comemorações do último 7 de setembro em balão de ensaio para um autogolpe. Converteu o país que deveria presidir (coisa que jamais fez, pois prefere fazer campanha e promover motociatas durante o expediente) o populista cachaceiro que renunciaria antes de completar sete meses no cargo. Sem falar que é useiro e vezeiro em interferir nas instituições para proteger sua prole — dos cinco filhos que teve em três casamentos, somente a caçula, de 11 anos não é alvo de investigações.

Observação: A tragédia que elegemos para evitar a volta do lulopetismo corrupto é mais inútil do que qualquer vice poderia ser. Talvez estivéssemos numa situação melhor se o estrupício já tivesse sido deposto, metido numa camisa-de-força e trancafiado num manicômio judiciário. Mas isso é outra conversa.

Para entender por que as coisas são como são, faremos uma rápida viagem pelo passado recente desta republiqueta de bananas. Comecemos pela décima sétima eleição presidencial — a décima quinta pelo voto direto e a última antes do Golpe Militar de 1964 (a próxima ocorreria somente 29 anos depois) —, da qual saiu vitorioso o populista cachaceiro que renunciaria antes de completar sete meses no cargo.

Jânio só fez o que fez, dizem, porque estava bêbado. Verdade ou não, isso não muda o fato de que seu ato pavimentou o para os 21 anos de ditadura militar — que alguns lunáticos afirmam que nunca existiu, mas isso é outra conversa.

Falando em cachaceiro, a patuleia ignara, empolgada com os resultados das pesquisas, está convicta de que seu amado líder será novamente eleito presidente, e com mais de 200% dos votos válidos. Segundo a Genial/Quaest, o ex-presidiário dá duas voltas completas na pista enquanto o verdugo do Planalto liga o motor e o ex-juiz da Lava-Jato procura a chave do carro. 

Dito de outra maneira, Lula tem 47% das intenções de voto — contra 24% de Bolsonaro e 11% de Moro —, e rejeição bem menor que a dos adversários. (Para não dizer que não falei das flores, Ciro Gomes, que concorrerá ao Planalto pela quarta vez, tem 7% das intenções de voto). 

Retomando nossa breve viagem pelo tempo, voltemos (ou avancemos) para 15 de janeiro de 1985, data histórica em que Tancredo Neves derrotou Paulo Maluf  por 480 a 180 votos de um colegiado formado por 686 "eleitores" (361 do PDS, 273 do PMDB, 30 do PDT, 14 do PTB e 8 do PT). 

Não foi a eleição direta que todos desejavam, mas a perspectiva de voltar a ter um civil na Presidência encheu de esperança o coração dos brasileiros. Mas quis a sorte madrasta que o presidente eleito baixasse ao hospital 12 horas antes da cerimônia de posse e fosse sepultado 41 dias (e sete cirurgias) depois.

E assim Tancredo se foi, levando com ele nossas esperanças e nos deixando de herança ninguém menos que José Ribamar Ferreira de Araújo Costa (mais conhecido como José Sarney).

Continua na próxima postagem.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

INFINITO COMO O UNIVERSO E A ESTUPIDEZ HUMANA


A exemplo do universo e da estupidez humana, o negacionismo de Bolsonaro parece não ter limites — vale a pena ouvir a análise de Lauro Jardim e Fernando Gabeira

Como o escorpião da fábula, o "mito" dos despirocados é incapaz de agir contra a própria natureza. Menos de três meses depois do recuo estratégico que se sucedeu ao quase-autogolpe de 7 de setembro, o lobo do Planalto despiu a pelagem de cordeiro e voltou a arreganhar os dentes para o STF.

No discurso de encerramento dos trabalhos do Judiciário — que só serão retomados em fevereiro próximo —, o ministro Luiz Roberto Barroso, atual presidente do TSE, exaltou a pronta intervenção dos togados contra os arroubos antidemocráticos de Bolsonaro

Na visão do eminente ministro, as instituições brasileiras "resistiram" a ataques contra o processo eleitoral e à democracia e afastaram o "fantasma do retrocesso". Rechaçaram ameaças de fechamento do Congresso, do STF, de descumprimento de decisões, do atraso que rondou nossas vidas ameaçadoramente. "O debate público foi dominado muitas vezes pela mentira, pela desinformação e pelo ódio", disse Barroso, sem citar nomes nem explicar por que não foram tomadas medidas mais incisivas para exorcizar de uma vez por todas o egum maldespachado que nos assombra desde o Palácio do Planalto.

Num país que se desse minimamente ao respeito, um presidente que é alvo de 141 pedidos de impeachment, investigado em 5 inquéritos e apontado pela CPI como autor de pelo menos 9 crimes já teria sido apeado do cargo. No Brasil, a deusa Têmis — que simboliza a Justiça — fica sentada defronte ao prédio do STF, como que para simbolizar a morosidade do Judiciário e a inércia das supremas togas. Como se sabe, uma suprema decisão tanto pode levar horas quanto anos para ser proferida, a depender do magistrado e do bandido de estimação cujo destino lhe cabe decidir.

Basta lembrar que no apagar das luzes de 2019 o plenário da Corte reverteu, por 6 votos a 5, o entendimento sobre a constitucionalidade da prisão após condenação em segunda instância, restaurando o império da impunidade e pavimentando o caminho que levou à anulação de quatro processos contra Lula na 13ª Vara Federal Penal de Curitiba (PR).

Mais adiante, as denúncias espúrias de Verdevaldo das Couves e seu site panfletário vieram de encomenda para que um passarinho contasse ao relator da Lava-Jato no STF (com seis anos de atraso) que o juiz Sergio Moro não tinha competência para julgar os crimes do petista. E assim os processos contra o ex-presidiário foram encaminhados para a Justiça Federal do Distrito Federal, que pautou o novo julgamento para o Dia de São Nunca. E como se essa bizarrice surreal já não bastasse, a colenda segunda turma, capitaneada pelo versão togada de Amon-Rá, sepultou a reputação do ex-juiz de Curitiba sob a lápide da parcialidade.

De fato, havia um erro na questão da competência para julgar Lula. Todo mundo sabe que ele só poderia ser julgado numa vara onde houvesse um juiz capaz de atestar a idoneidade do ladrão. E isso não aconteceu. O ex-presidente foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro (duas vezes) porque o judiciário de primeira instância, de segunda instância (TRF-4) e de terceira instância (STJ) estava muito mal equipado, sem um único magistrado "cumpanhêro" que pudesse compreender a complexidade desse homem bom que assaltou o povo sem querer prejudicar ninguém. Os quase R$ 5 bilhões devolvidos pela quadrilha do petrolão poderiam ter sido usados para comprar um pouco mais de compreensão.

De uma hora para outra, ficou entendido que a tal vara federal de Curitiba só podia julgar processos relacionados à Petrobras. A OAS ganhou de Lula contratos fraudulentos com a estatal e pagou a ele e seu bando propinas oriundas do caixa de corrupção da empreiteira. Mas nenhum azulejo do triplex do Guarujá tinha o carimbo “Obrigado, Lula, pela grana que nós roubamos juntos da Petrobras”.

No Brasil, uma coisa é um agente público roubar honestamente a maior empresa pública do país porque tem o legítimo desejo de ficar rico que nem os seus comparsas, e ou coisa é a Justiça querer diferenciar o que foi propina decorrente da negociata e o que foi só um presentinho do amigo empreiteiro. Obviamente, isso é questão de foro íntimo, e o ex-juiz da 13ª Vara de Curitiba terá de responder por invasão de privacidade.

O que o STF fez ao inocentar o pai dos pobres e mãe dos ricos foi demonstrar que o grande erro da operação Lava-Jato foi "não saber com quem estava falando". E não foi por falta de aviso. A intelectualidade de cabresto, a burguesia decadente, as subcelebridades e a bandidagem do bem alertaram desde sempre os homens da lei de que para Lula não há lei. E o escândalo do mensalão era a prova cabal disso: José Dirceu foi preso por montar um propinoduto entre empresas estatais e o PT para comprar deputados e outras bugigangas — e Lula saiu assobiando numa boa, porque Dirceu era seu braço direito, mas nem todo mundo sabe o que seu braço direito faz. Nem sua mão boba.

A Lava-Jato não quis entender isso. Recusou-se a obedecer a lei máxima nacional segundo a qual roubar não é crime quando se é um picareta festejado por estrelas cadentes da MPB e por uma legião de inocentes úteis e inúteis. Ressuscitando sua lendária militância em favor de Dilmanta, a musa dos intelectuais, o ministro Fachin sacou sua faquinha e tchum! Adeus, roubalheira. Aí foi só correr para o abraço das togas esvoaçantes, exuberantes como asas de urubu em perfeita coordenação para envolver e proteger a carniça. Lula livre!

Agora ninguém segura. Se as eleições fossem hoje, o ex-presidiário promovido a "ex-corrupto" seria eleito com 171% dos votos, de acordo com a mais recente pesquisa do Instituto DataVenia. Aos cidadãos de bem deste país, restam apenas duas opções: arrumar um padrinho na cleptocracia ou levantar a bunda do sofá e avisar que não vão permitir que essa escumalha volte a assalta-los.

Triste Brasil.

Com Guilherme Fiuza

terça-feira, 7 de setembro de 2021

SOB O DOMÍNIO DO (ANOR)MAL



O futuro a Deus pertence, dizem. Não faço ideia de quem foram esses misteriosos sábios a quem atribuímos as famosas "pérolas da sabedoria popular", mas tenho comigo que eles estavam certos na maioria dos casos.

Escrever sobre política, de véspera, numa conjuntura que muda como as nuvens no céu, exige bola de cristal, baralho de tarô, búzios e tabuleiro Ouija. Mas não é preciso ser um Nostradamus para prever que as manifestações programadas para hoje podem acabar mal. Enfim, o resultado será conhecido no final da tarde; até lá, resta-nos apenas torcer pelo melhor.

Vale lembrar que hoje não é o dia da independência, mas a data em que se comemora o 199º aniversário do "Grito da Independência" (mais detalhes nesta postagem). O fato de as margens do córrego do Ipiranga terem servido de pano de fundo para o "heroico brado" deveu-se a mero acaso:

Passava por lá a comitiva imperial quando D. Pedro, acometido de poderosa caganeira, apeou e saiu em busca de uma touceira atrás da qual pudesse esvaziar os intestinos com alguma privacidade. Foi então que se juntou ao grupo um mensageiro vindo de São Paulo, com três missivas endereçadas a sua alteza. A primeira epístola, assinada por D. João VI, ordenava ao nobre rebento que regressasse imediatamente a Portugal e se submetesse ao Rei e às Cortes. A segunda, de José Bonifácio, aconselhava-o a romper com Portugal. A terceira, da Imperatriz Leopoldina, dileta esposa do príncipe (noves fora Domitila de Castro Canto e Mello, mais conhecida como Marquesa de Santos), transmitia ao marido o seguinte recado: “O pomo está maduro; colhe-o já, antes que apodreça”. Impelido pelas circunstâncias, Pedrão, que já estava mesmo fazendo merda, aproveitou o ensejo para romper os laços de união política com Portugal e declarar a independência do Brasil.

Feita essa breve digressão, passemos ao assunto do dia.

Jair Messias e Luiz Inácio tomam sol no jardim do hospício. O primeiro mantém a mão esquerda sob o roupão, na altura do estômago; o segundo mastiga preguiçosamente um raminho de capim. Luiz pergunta a Jair: "Quem é você?". Jair responde: "Napoleão Bonaparte". Luiz: "De onde você tirou essa ideia?" Jair: "Deus me disse." Luiz: "Mentiroso! Eu jamais falei isso!"

À luz da Teoria das Probabilidades, um anormal ser eleito presidente da República seria improvável; dois, inacreditável; três, e em seguida, virtualmente impossível. Mas não no Brasil. Lula ocupou o Planalto de 2003 a 2010; Dilma, de 2011 a 12 de maio de 2016; Bolsonaro, de 2019 até sabe Deus quando.

O mascador de capim megalomaníaco da anedota — um desculturado exótico que se orgulha de jamais ter lido um livro — deveria estar na cadeia, mas posa de pré-candidato a candidato à Presidência; o napoleão de hospício — um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar, como bem o definiu o general ditador Ernesto Geisel em 1993 —, obcecado pela reeleição. Nenhum deles é burro ou doido de pedra — mesmo porque doido de pedra que se preza rasga dinheiro e come merda —, mas uma eventual vitória de qualquer um dos dois em 2022 será mais um retrocesso na trajetória do país do futuro que tem um longo passado pela frente.

Sempre existe a alternativa do impeachment, dirão os mais otimistas. Afinal, esse remédio constitucional produziu bons efeitos nos casos do caçador de marajás de festim e da gerentona de araque. Há também quem diga que esse é um remédio amargo, que pode matar em vez de curar, mas os tais sábios nos ensinaram que a diferença entre o remédio e o veneno estaria na dosagem.

Na visão do cientista político Carlos Pereira, a recente conversão de Bolsonaro à política tradicional ao dizer que "sempre foi Centrão" é uma clara evidência de que o presidente não representa ameaça crível à democracia, já que "é preferível ver o governo Bolsonaro domesticado e refém de políticos profissionais de um Centrão ‘guloso’ do que cercado de militares que não entendem como o presidencialismo multipartidário funciona.”

Na verdade, é preferível ver Bolsonaro defenestrado e julgado pelos crimes que cometeu durante sua desditosa e lúgubre gestão. A única saída realmente democrática para o Brasil é o impeachment, que, lamentavelmente, vem sendo obstruído pelas marafonas do Centrão.

Não passa um santo dia sem que Bolsonaro vitupere o Estado Democrático de Direito e vomite impropérios contra a democracia, embora essa mesma democracia — numa conjuntura de enfraquecimento das instituições, de angústia e desespero frente aos sucessivos casos de corrupção, da falta de candidaturas que conseguissem entender o sentimento dos brasileiros cansados e frustrados com os presidentes recentemente eleitos — lhe deu a chance de chegar à Presidência após três décadas de inexpressiva trajetória política.  

Bolsonaro vem solapando diuturnamente as bases democráticas construídas com tanto esforço desde os anos 1980. Incapaz de elevar a sua estatura, o presidente que reconheceu não ter sido talhado para o cargo rebaixa o teto da Presidência. Parece não saber que, por trás da faixa de presidente deve existir uma noção qualquer de honra. O Brasil não merece ser presidido pela desonra e pela estupidez (embora o mesmo raciocínio não se aplique necessariamente ao eleitorado tupiniquim, mas isso é outra conversa).

Sob o título "Um Projeto para o Brasil", Diogo Mainardi publicou em Crusoé:  

"A parcela do eleitorado que opta pela fórmula “nem Lula, nem Bolsonaro” corresponde a 25% do total, segundo a pesquisa encomendada pela Genial Investimentos. Lula tem quase duas vezes mais do que isso, 45%, e o sociopata já foi passado para trás, com seus 23%. Minha turma é nem Lula, nem Bolsonaro, nem Arthur Lira, nem Gilmar Mendes, nem Augusto Aras, nem Dias Toffoli, nem Braga Netto, nem VTC Log, nem Dilma Rousseff, nem Michel Temer, nem João Doria, nem Renan Calheiros, nem Carlos Bolsonaro, nem os funcionários fantasmas de Carlos Bolsonaro, nem o lobista da Covaxin, nem o motoboy, nem Ciro Nogueira, nem Gleisi Hoffmann, nem o PIB do segundo trimestre, nem Joe Biden, nem o FIB Bank, nem a Covid, nem Sete de Setembro, nem Osmar Terra, nem Luciano Hang, nem Onyx Lorenzoni, nem o jabuti da reforma administrativa, nem o golpe do Código Eleitoral, nem o PSDB, nem Paulo Guedes (como foi que ele só entrou agora?), nem a variante Delta, nem Silas Malafaia, nem o PCC, nem Aécio Neves, nem os caminhoneiros, nem os cantores sertanejos, nem Roberto Campos Neto, nem as 28 mil queimadas na selva, nem Ernesto Araújo, nem Rodrigo Pacheco, nem Kassio Nunes, nem cloroquina, nem Fiesp, nem Febraban, nem Paulo Skaf, nem os procuradores de Mossoró. Os nomes foram pescados apenas entre aqueles citados em O Antagonista nas primeiras seis horas da quarta-feira (1º). Se o site cobrisse outros assuntos além da imundice brasiliense, a lista de expurgo seria bem maior. Estupidamente, aliás, acabei ignorando os escroques da imprensa e das redes sociais. Eu deveria ter acrescentado o jornalismo lulista, que nos últimos dias recebeu do próprio Lula promessas públicas de suborno com verbas estatais, num ambiente de censura e de omertà mafiosa, e os blogueiros bolsonaristas, que reproduziram o esquema do PT com a mesma canalhice e com uma pitada a mais de analfabetismo. Por enquanto, ninguém foi capaz de encarnar a candidatura “nem Lula, nem Bolsonaro”, causando uma certa ansiedade naqueles que acompanham as pesquisas de semana em semana. Mas se a fórmula valesse apenas para a escolha de um nome capaz de enfrentar os dois bandoleiros nas urnas, em 2022, ela seria reduzida a um mero lema de campanha presidencial. Para ter algum sentido, ela precisa valer de agora até 2023, 2024, 2025. Trata-se de um programa permanente, que jamais será plenamente realizado, porque é minoritário. O Brasil nunca teve um projeto. Na falta de algo melhor, “nem Lula, nem Bolsonaro” pode cumprir esse papel." Eu assino embaixo.

Se Bolsonaro ainda não partiu para o autogolpe, isso se deve ao STF — embora um acerto em meio a tantos erros não exima as togas da teratologia explícita de decisões como a que (com o voto de minerva do eminente ministro Dias Toffoli) derrubou a prisão após condenação em segunda instância, ou a que (capitaneada pelo nobilíssimo ministro Gilmar Mendes) converteu em "ex-corrupto" um ex-presidiário condenado a mais de 25 respaldando-se numa na falaciosa "incompetência territorial da 13ª Vara Federal de Curitiba (leia-se do ex-juiz Sergio Moro).

O historiador e professor Marco Antonio Villa alerta que estamos nos aproximando da hora decisiva. "O Brasil não aguenta mais tanta turbulência política, tanta insegurança jurídica, tanta polarização, tanta incompetência administrativa, tanta falta de projeto de governo e tantas mortes. Estamos alcançando a macabra marca de 600 mil óbitos. Em um ano e meio de pandemia e sem nenhum tiro — graças ao planejamento do genocida de um governante incompetente — tivemos quatro vezes mais mortos do que em vinte anos de guerra no Afeganistão."

A popularidade do capitão entrou em parafuso, mas a caterva que apoia ainda é suficiente numerosa para levá-lo ao segundo turno. A menos que surja uma "terceira via" — ou que uma batalha campal entre as torcidas adversárias evolua para guerra civil e culmine no golpe de estado com que sonham Bolsonaro e seus asseclas —, teremos no ano que vem um repeteco do pleito plebiscitário de 2018. A diferença, ao que tudo indica, é que o lulopetismo corrupto derrotará o bolsonarismo boçal. E é aí que mora o perigo.

Sem a mão firme de um timoneiro experiente, a Nau de Insensatos seguirá em rota de colisão com o iceberg e irá a pique. O senador Rodrigo Pacheco, com sua indefectível mineirice moderadora, fala em "respeito à democracia", em "obediência à vontade soberana do provo expressa pelo resultado das urnas" e blá, blá, blá. Luiz Fux até sobe o tom, mas não junta ação ao palavrório. Barroso aposta na sutileza, mas Bolsonaro é tão refratário a ironias quando cabeça de militante a noções de razoabilidade.

Bolsonaro está fazendo para os presidentes do Congresso, do Supremo e do TSE o mesmo que disse ter feito para a CPI do Genocídio.

Observação: Com Alexandre de Moraes é diferente: em vez de cagar para ele, Bolsonaro borra de medo dele. Comenta-se, inclusive, que o capitão só armou circo marambaia que Pacheco desarmou em tempo recorde por temer que o filho Zero Dois fosse escalado para fazer companhia a Roberto Jefferson no xilindró.

Faltam treze meses para as eleições. Muita coisa pode acontecer em treze meses, mas precisamos salvar o Brasil o quanto antes dessa sanha nazifascista chamada bolsonarismo. O país dificilmente resistirá a um processo eleitoral sob o descomando de um incompetente que almeja completar a sua obra feral ensanguentando a nação.

É de James Carville a frase “It’s the economy, stupid!” (é a economia, estúpido!), dita há quase três décadas (quando Bill Clinton e George W. Bush disputavam a presidência dos EUA). É provável que Bolsonaro não conheça a máxima de Carville — ou simplesmente acredite estar imune ao fenômeno que ela representa. Ele parece não ter percebido que perigosas nuvens se alinham no horizonte a cada ataque que faz à estabilidade democrática do país, aos demais poderes constituídos e à ordem institucional. Sob o júbilo da horda de ultrarradicais que o seguem e idolatram — a turba que vai sair às ruas daqui a algumas horas —, a crescente turbulência ele provoca tem solapado a economia do país, em um surpreendente processo de autossabotagem jamais visto em um ocupante do Palácio do Planalto. É como se tivéssemos um presidente de oposição — uma inovação esdrúxula, ridícula e altamente prejudicial ao Brasil.

Pouco afeito às questões técnicas de gestão pública ou aos fundamentos econômicos, Bolsonaro, ao subir continuamente o tom de seus arroubos autoritários, está pulverizando a confiança dos investidores potenciais no país — e, consequentemente, piorando a vida da população brasileira. Reportagem na edição de Veja desta semana mostra como e por que, impulsionados pelo destempero da autoridade máxima da nação, o dólar se mantém em patamares muito mais elevados que o esperado, e o investimento estrangeiro despencou a um volume que equivale a menos de um quarto do registrado em janeiro.

Em suma: o Brasil, que poderia estar se aproveitando da alta liquidez internacional e do novo ciclo de commodities, na verdade se vê acuado diante do fantasma da inflação, dos preços astronômicos dos combustíveis e da ameaça de uma grave crise energética.

Ao promover o caos, Bolsonaro trai a maioria daqueles que o elegeram para governar o país e implantar um sistema econômico liberal. Empossado, porém, o candidato descumpridor de promessas (maior estelionato eleitoral da história do Brasil, deixando no chinelo a própria Dilma) prefere promover uma confusão, sem pesar as consequências de seus atos. Na realidade paralela em que habita, as adversidades são sempre parte de um complô armado por adversários e inimigos imaginários. Em seus devaneios, acredita que passeios de moto e manifestações, associados a um pacote de obras eleitoreiras, impulsionarão sua popularidade (obviamente, em queda vertiginosa no momento). Iludido, não percebe que tais medidas podem até lhe trazer fotos e votos, mas dificilmente conseguirão impulsionar a recuperação econômica de que o país tanto precisa e que poderia representar a sua própria reeleição.

Amante de armas, Bolsonaro está dando um verdadeiro tiro no pé. Em agosto de , Getúlio atirou contra o próprio peito. Mas isso é outra conversa. 

Bom 7 de setembro a todos. 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

O GOLPE DE BOLSONARO E O CASAMENTO DE LULA


No Ensaio sobre a cegueira, o Nobel de literatura lusitano José Saramago anotou que “a cegueira é um problema particular entre as pessoas e os olhos com que nasceram”. E com efeito. As eleições se aproximam, Bolsonaro sobe o tom, mas nem o Congresso, nem o TSE, nem o STF parecem ver o golpe como uma possibilidade real.

 

O Supremo — que o ex-ministro Sepúlveda Pertence definiu como uma arquipélago de 11 ilhas independentes e em constante conflito — é rápido no gatilho quando lhe convém. A depender do acusado e da toga sob a qual o processo está, a decisão pode sair em duas horas, dois anos ou duas décadas. 


Observação: Há no STF uma dezena de ações protocolados entre 1969 e 1987 — anteriores, portanto, à atual Constituição e ao ingresso do atual decano, que representa, juntamente com a PEC da Reeleição, a verdadeira herança maldita do governo FHC.

 

Depois que uma epifania revelou ao ministro Fachin — com seis anos de atraso — a incompetência da 13ª Vara Federal do Paraná para julgar os crimes do ex-presidiário Lula, o plenário do Supremo chancelou por 7 votos a 4 a decisão da 2ª Turma sobre a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro. Mas não se viu essa mesma presteza por ocasião dos discursos golpistas de Bolsonaro no último Sete de Setembro. 

 

O ministro Luiz Fux, presidente das togas, deu um "puxão de orelha" no mandatário de fancaria. O senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso, fez um pronunciamento ainda mais morno e insípido. Dias depois, Bolsonaro leu uma patética cartinha de desculpas, redigida pelo igualmente patético Vampiro do Jaburu, e a paz voltou a reinar em Brasília das Maravilhas.

 

A suprema pusilanimidade vai cobrar seu preço. Resta saber se ainda dá tempo de evitar que o sociopata e seus acólitos transformem a eleição numa batalha campal. O atual presidente da TSE (aquele da epifania) afirmou há alguns dias que “o Brasil não consente mais com “aventuras autoritárias”. Cerca de um mês antes, o ministro Barroso disse que as Forças Armadas estão sendo orientadas a atacar o processo eleitoral, e que existe uma tentativa de levar a corporação ao “varejo da política”. 


Por ordem de Bolsonaro o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que deixou o comando do Exército para assumir o Ministério da Defesa, divulgou uma nota chamando Barroso de “irresponsável”. Se levarmos em conta que o próprio Bolsonarochamou Barroso de “filho da puta”, o general até que foi gentil.

 

Em entrevista ao Roda Viva do último dia 16, Rodrigo Pacheco afirmou que há uma linha amarela pintada no chão que nenhum dos candidatos pode atravessar, e que “o resultado das urnas será respeitado por todos, inclusive pelas Forças Armadas”. Segundo ele, os militares não devem ter compromisso político eleitoral. Resta saber se ele combinou com Bolsonaro, seus ministros fardados e os comandantes das FFAA. 

 

Segundo a Folha, alguns presidentes de partidos e pré-candidatos à sucessão presidencial disseram ver os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral e a ministros das cortes superiores como um comportamento golpista que precisa ser levado a sério. Procurados pela reportagem, os presidentes da Câmara, do Senado e do STF não se manifestaram. Líderes do PP e do PL (partidos que encabeçam o Centrão) e outros pré-candidatos se abstiveram de opinar. Entre as 13 entidades questionadas pela Folha, só duas responderam. 

 

Bolsonaro flerta com o golpismo desde a campanha de 2018. Já deixou claro que não aceitará outro resultado que não seja a sua vitória em outubro. Fux e o Pacheco se fingem de paisagem. A coalizão Pacto pela Democracia lançou o manifesto “Em defesa das eleições” para cobrar a mobilização de instituições em defesa do processo eleitoral. O documento foi entregue aos presidentes do STF e do TSE, mas não se sabe ao certo o que suas excelências fizeram com ele.

 

Em meio a esse cenário dramático, o queridinho do eleitorado (segundo todas as pesquisas), que "se casou eleitoreiramente" com o picolé de chuchu, contraiu núpcias com a socióloga Rosângela Silva, a Janja. Em se confirmando a vitória do petralha, o casamento representará uma bizarra transição da cadeia para o Palácio do Planalto. 

 

Janja e Lula começaram o relacionamento no fim de 2017. No período em que o hoje "ex-corrupto" ficou hospedado na Superintendência da PF de Curitiba, a namorada foi arroz de festa na vigília. Hoje, ela é figura central da campanha. Aparece nas viagens, nos comícios, nos encontros fechados e nos discursos do candidato. Tornou-se parte do marketing eleitoral de Lula, que contrapõe o amor de um candidato apaixonado ao ódio que o PT e seus sectários nutrem por Bolsonaro .

 

É falsa a percepção de que Lula fez uma pausa em sua campanha antecipada para se casar, tanto que inseriu suas núpcias no discurso e na coreografia da campanha. O movimento, que vinha sendo insinuado há semanas. tornou-se explícito no ato de lançamento da chapa Lula-Alckmin (outro casamento pra lá de bizarro, que, agora, deveria render ao petralha uma ação por bigamia). 


Ao discursar, o palanque ambulante declarou que “um cara que tem 76 anos e está apaixonado, que está querendo casar (sic), só pode fazer o bem para esse país”. Com essa retórica de conto de fadas, o molusco usa o casamento para contrapor a atmosfera de amor em que está envolto ao discurso de ódio do adversário.

 

Com objetivo de ser uma cerimônia íntima e pessoal, sem pinta de grande evento político, foi recomendado aos convidados que não ficassem falando no assunto — nem o local foi divulgado previamente. Mas comenta-se que mais de R$ 100 mil foram gastos só com bebidas. O espumante escolhido pelos noivos foi o Cave Geisse Brut, que custa em média R$ 130 a garrafa (podendo chegar a R$ 800, conforme a safra).

 

A julgar por seu comportamento, Janja não será uma primeira-dama decorativa. Ela opina, participa da rotina de Lula de uma maneira que os petistas que privam da intimidade do pajé do PT não estavam acostumados a ver. O casal deve passar a lua de mel em São Paulo, e a agenda externa deverá retomar na semana que vem, com viagem para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. 


Observando-se a movimentação, tem-se a impressão de que, se Lula realmente for eleito, muita gente sentirá saudades da discrição da ex-primeira-dama Marisa Letícia — sobre cuja sepultura o viúvo sapateou, usando como palanque o esquife da falecida.

 

Voltando ao que eu dizia no início deste post sobre a cegueira generalizada diante de um possível autogolpe de Bolsonaro, conta-se que o padre da única igreja de uma bucólica cidadezinha do interior era muito devoto e fervoroso. Um dia, a cidade foi inundada por um temporal diluviano. 


O prelado continuou no altar, rezando fervorosamente. Quando a água lhe chegou à cintura, um homem com uma canoa lhe ofereceu ajuda. “Não precisa, meu filho; Deus há de me ajudar”, disse o religioso. O homem se foi na canoa e o padre continuou a rezar. 


Com a água no beiço, o pároco se recusou a embarcar na lancha da Defesa Civil, afirmando novamente que Deus o salvaria. Minutos depois, já do alto torre, enjeitou a ajuda dos bombeiros, que tentaram resgatá-lo de helicóptero. Quando chegou ao Céu, o batina reclamou a Deus: 


Confiei tanto no Senhor! Por que me abandonou quando eu tanto precisava de Sua ajuda? 


E Deus respondeu: 


Mandei uma canoa e você não subiu; mandei uma lancha e você recusou; mandei um helicóptero e você não embarcou. Queria que eu fizesse o quê?