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quarta-feira, 20 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — DÉCIMA PARTE

 

Uma espécie de "Maldição Kennedy" tropicalizada parece perseguir o hoje senador Fernando Collor e sua família. Seja na vida pública, seja na (vida) privada, as histórias se repetem (ou o passado se harmoniza, melhor dizendo). Na carreira política, escândalos; no âmbito familiar, um roteiro de transtornos e desavenças com sólido histórico de traições. 

Em 1992, o pseudo caçador de marajás renunciou à Presidência para escapar do impeachment que teve como estopim as denúncias do irmão Pedro Collor (1952-1994) à revista VEJA. Décadas depois, o ex-presidente caiu na rede da Lava-Jato; hoje, ele responde a pelo menos seis inquéritos. No passado, brigas com os irmãos Pedro e Leopoldo e crises no casamento com Rosane; agora, uma nova e ruidosa confusão aporrinha o “Rei Sol”, que é acusado por cinco sobrinhos — dois filhos do irmão Pedro e três de Leopoldo (1941-2013) — de se apropriar do patrimônio da família sem promover uma divisão correta.

Representantes da clássica oligarquia nordestina, os Collor de Mello fruem a rara combinação de dinheiro e poder. Seus negócios englobam bens como a TV Gazeta, afiliada da Globo, duas rádios, um jornal, uma gráfica e um edifício de treze andares em Maceió. Estima-se que o conjunto chegue a 250 milhões de reais (valores de 2019). E essa é apenas a parte mais visível do império. Há outros bens, de caráter reluzente, que também têm sido alvo de disputa.

O casal Arnon de Mello e Leda Collor formou um clã de poder político e financeiro de longa data. Como se diz hoje em dia, eles não tinham nada de novos-ricos. O pai dela foi ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, nos anos 30, antes de voltar-se contra a administração e ser exilado. Arnon foi senador e governador de Alagoas.

O dinheiro e o tumulto eram equivalentes dentro do lar. O clima de competição ganhava estímulo dentro de casa. “Arnon, de forma descarada, demonstrava mais amor pelo tio Fernando; via nele a vocação política”, diz um parente. Dona Leda também distribuía carinho de forma desigual. 

Leopoldo era o favorito na infância, mas na vida adulta ela transferiu o posto de queridinho para Pedro — quando este alavancou as empresas da família, no começo dos anos 90. Feliz, ela tinha feito um testamento em que daria 50% de seu patrimônio a Pedro. O documento foi desfeito depois que o filho fez as denúncias a VEJADona Leda, então, decidiu testar metade da fortuna às duas filhas mulheres, Ana Luísa, morta em 2013, e Ledinha (ambas sem herdeiros).

Em 1998, outro abalo familiar. Leopoldo emprestou dinheiro ao irmão ex-presidente para a compra do Dossiê Cayman, um calhamaço de documentos falsos para prejudicar FHC. A mutreta foi descoberta, o tucano se reelegeu e Collor jamais quitou a dívida. Foi o ponto-final em uma relação de raiva, inveja e competição.

O inventário da matriarca, Dona Leda (1916-1995), é descrito em 162 páginas, quatro delas dedicadas a joias e pedras preciosas, como uma pulseira de 18 gramas de ouro e 21 esmeraldas e um colar de ouro de 18 quilates de 102 gramas com onze fios de pérolas e brilhantes, além de vasos chineses, lustres de cristal Baccarat e obras de arte, como uma tela a óleo com a imagem da própria Leda pintada por Candido Portinari.

Embora as peças façam parte do testamento da matriarca, os herdeiros não sabem onde elas foram parar. Na intimidade, apontam o dedo para Fernando Collor e não se cansam de atrelar o sumiço ao comportamento do ex-presidente quando se trata de misturar o que não poderia ser misturado — o que é dele e o que é dos outros.

Filhos de Pedro e Thereza Collor, Fernando (nome dado em homenagem ao tio, que depois seria brigado de morte com o pai) e Victor têm juntos 15% do grupo, mas nunca viram um centavo do lucro das empresas nem receberam balanço contábil desde a morte de Pedro. Leopoldo teve três filhos, mas eles não podem exigir parte do patrimônio da família porque o pai vendeu sua participação acionária ainda em vida.

Depois de ser escorraçado da política no pós-impeachment, Collor voltou-se para os negócios da família. Em meados dos anos 90, ele assumiu o controle do grupo, então em boa saúde financeira. Hoje, a Organização Arnon de Mello soma mais de 200 milhões de reais em passivos. De acordo com a PGR, ele usou as empresas da família para lavar R$ 50 milhões, como na compra de um Porsche Panamera, por R$ 550 mil, em nome da TV Gazeta.

Em abril de 2019, a PGR pediu ao STF a condenação do ex-caçador de marajás de araque a 22 anos e oito meses de prisão. As denúncias de irregularidades na distribuição de dinheiro entre os parentes e as acusações de lavagem de dinheiro, ambas ainda sob investigação, são o fio que puxa uma história de relações muito confusas, que não raro terminaram em rompimento. É triste, para dizer o mínimo, a saga da dinastia Collor.

Com recursos escassos, os filhos de Leopoldo começaram a andar de transporte público e a comer ovo como “mistura” no almoço e no jantar. As contas de luz eram pagas com atraso frequentemente. Seu padrão de vida ruiu. Por anos, Leopoldo trabalhou como diretor comercial da Rede Globo no Brasil, frequentando festas chiques regadas a champanhe. Morreu, em 2013, de câncer na garganta, em São Paulo. Não foi feito inventário por uma razão simples: não havia nada em seu nome. Collor impediu o jornal da família de noticiar a morte do irmão.

Dos cinco filhos de Arnon e Dona LedaFernando e Ledinha são os únicos vivos. Ambos estão rompidos. Apesar do atávico desconforto familiar, os primos buscam reinventar essa narrativa pacificamente, tentando um caminho de futuro. Fernando Collor tem cinco filhos de três relacionamentos. Arnon e Joaquim, os dois mais velhos, do casamento com a empresária Lilibeth Monteiro de Carvalho, quase não falam com o pai, mas são amigos dos herdeiros de Pedro e Leopoldo. “Temos de quebrar a maldição deixada por nossos avós”, diz um integrante. 

Procurado por VEJA, Collor enviou a seguinte nota, por meio de seus advogados, ao refutar as acusações de que esconde o patrimônio familiar: “A defesa não vai responder a nenhuma questão relativa às empresas do ex-presidente; isso faz parte da relação entre ele e os sócios, e não faz sentido discutir publicamente questões das empresas”.

Como se vê, as desculpas e a postura arrogante também se repetem.

Com Veja

sábado, 14 de maio de 2016

IMPEACHMENT ― CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS

O (então) ministro Sydney Sanches presidiu o julgamento do impeachment de Collor, em 1992. Agora, 24 anos depois, Ricardo Lewandowski presidirá o julgamento do impeachment de Dilma.

Collor renunciou de véspera, mas acabou sendo condenado e teve os direitos políticos cassados. Dilma foi afastada pelo plenário do Senado (por 55 a 22), e tudo indica que, ao fim e ao cabo, será igualmente condenada. Infelizmente, sua insolência não tem a menor vocação para estadista, ainda que se veja como tal, e, portanto, em vez de renunciar, continuará vivendo às expensas do Erário até o julgamento final do processo.

Observação: Por incrível que pareça, mesmo afastada, a imprestável continuará morando no Palácio da Alvorada e recendo salário mensal superior a R$30 mil mensais, além de ter à sua disposição transporte aéreo presidencial, equipe a serviço do seu gabinete pessoal, cartão corporativo, plano de saúde, automóveis e motoristas. Sopa no mel para quem tenciona viajar pelo país para, juntamente com Lula e representantes da CUT, MST, MTST e grupelhos assemelhados, promover badernas em “defesa do seu mandato”. Um descalabro!   

Enfim, concluído o julgamento do impeachment de Collor no Senado, Sanches se declarou impedido de julgar recursos que a defesa do “caçador de marajás de araque” interpôs contra a decisão. Resta saber se Lewandowski também irá se declarar impedido de julgar eventuais recursos que venham a ser protocolados no STF contra a deposição definitiva da sacripanta petralha.

Isso porque, em dezembro passado, o STF decidiu que impeachment de Dilma deveria seguir as mesmas regras que as definidas para o caso Collor. O próprio Lewandowski votou nesse sentido e, por isso, poderá repetir a decisão de Sanches, declarando-se impedido e escusando-se de julgar possíveis recursos, inclusive contra o mérito das acusações, que a petralhada irresignada promete apesentar contra uma possível condenação por crime de responsabilidade. Note que, na condição de presidente do Supremo, Lewandowski preside o julgamento do impeachment, mas não lhe cabe votar nem julgar a presidente, apenas prolatar e assinar a sentença condenatória, caso seja essa a decisão de pelo menos 2/3 dos senadores.

Em 1993, quando o Supremo julgou o mandado de segurança impetrado pela defesa de Collor contra a cassação de seus direitos políticos, Sanches, notificado pela Corte para prestar informações, disse o seguinte: “Sr. Presidente, peço a palavra para declarar o meu impedimento, uma vez que presidi todos os atos do processo no Senado, lavrei e assinei, como manda a lei, a sentença que resultou do julgamento feito pelos Senhores Senadores. Além disso, prestei informações no processo, por solicitação do eminente Relator. De maneira que me sinto impedido de participar do julgamento, mas peço licença para permanecer no recinto porque acredito que devo assistir a uma lição histórica do Tribunal”.

Por mais de uma vez, Lewandowski sinalizou que o STF poderia analisar o mérito das acusações de crime de responsabilidade. No mês passado, no plenário da corte, ele disse: “Não fechamos a porta para uma eventual contestação no que diz respeito à tipificação dos atos imputados à senhora presidente no momento adequado”.

Isso é relevante porque, a despeito de o juízo no Senado ser político-jurídico, a defesa da petralha promete contestar o mérito do julgamento no Supremo. O entendimento do ministro Teori Zavascki é no sentido de que aquela Corte não pode julgar o mérito da decisão do Senado, ao contrário do que afirma Lewandowski. Para Zavascki, “não há base constitucional para qualquer intervenção do Poder Judiciário que, direta ou indiretamente, importe juízo de mérito sobre a ocorrência ou não dos fatos ou sobre a procedência ou não da acusação. O juiz constitucional dessa matéria é o Senado Federal, que, previamente autorizado pela Câmara dos Deputados, assume o papel de tribunal de instância definitiva, cuja decisão de mérito é insuscetível de reexame, mesmo pelo STF. Admitir-se a possibilidade de controle judicial do mérito da deliberação do Legislativo pelo Poder Judiciário significaria transformar em letra morta o art. 86 da Constituição Federal, que atribui, não ao Supremo, mas ao Senado Federal, autorizado pela Câmara dos Deputados, a competência para julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade”.

Pelo visto, muita água ainda deve rolar por baixo da ponte até que encerremos mais esse capítulo da nossa história. A conferir.

domingo, 3 de maio de 2020

DE VOLTA À RENÚNCIA DE JÂNIO, SUAS CONSEQUÊNCIAS E OUTRAS CURIOSIDADES — PARTE 5


ATUALIZAÇÃO SOBRE DEPOIMENTO DE SERGIO MORO À PF:

Durante quase nove horas — das duas e pouco da tarde de ontem até por volta das onze da noite —, Sergio Moro depôs no âmbito de uma investigação aberta a pedido do procurador-geral da República e deferida pelo STF na qual Augusto Aras apontou indícios de "falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra", que podem ter sido cometidos pelo presidente da República — ou pelo próprio Moro, caso a denúncia não se mostre verdadeira, já que ambos são investigados.


Bolsomínions atávicos e apoiadores do ex-ministro da Justiça confraternizaram (bem, não exatamente) defronte à sede da superintendência da PF em Curitiba (se o criminoso Lula ainda estivesse cumprindo sua pena na cela vip reservada especialmente para ele naquele edifício, poderia ter assistido de camarote aos protestos).

Até meados da tarde de ontem, Bolsonaro e seu entorno estavam tranquilos. “Moro não tinha provas de coisa nenhuma”, disseram fontes próximas ao presidente, ministros militares palacianos e o triunvirato de rebentos presidenciais que haviam acompanhado de perto a realização de um pente fino no telefone do capitão.

Resta saber se nada foi encontrado porque nada havia ou porque foram prévia e cuidadosamente eliminados quaisquer vestígios comprometedores. Não é preciso ter a mente dedutiva de um Sherlock para concluir que quem nada tem culpa no cartório não precisa que peritos escrutinem seu telefone para se assegurar que não sobrou gato escondido com o rabo de fora.

Duas perguntas que não querem calar:

1) Moro, que foi juiz federal por mais de duas décadas, seria estúpido a ponto de “fazer acusações gravíssimas” contra o presidente da República se não estivesse calçado em elementos capazes de comprovar as acusações? Eu duvido.

2) Se o ex-ministro “não tem provas de nada”, como disseram os puxa-sacos palacianos, o que fizeram ele, os policiais federais e os procuradores durante quase nove horas? Jogaram palitinho? Discutiram o sexo dos anjos?

Pouco antes da oitiva, Bolsonaro se referiu a Moro como Judas (e, en passant, se autopromoveu de Messias a Jesus Cristo) num post pelo WhatsApp sobre o atentado que sofreu em Juiz de Fora em 2018: “O Judas, que hoje deporá, interferiu para que não se investigasse? Nada farei que não esteja de acordo com a Constituição. Mas também NÃO ADMITIREI que façam contra MIM e ao nosso Brasil passando por cima da mesma”.

O teor do depoimento de Moro ainda não veio à público oficialmente. Segundo o Estado de S. Paulo e O Globo, textos e arquivos de áudio do ex-ministro e de seus auxiliares foram entregues à Justiça, mas o conteúdo não foi revelado.

Se ficar comprovado que o presidente cometeu algum crime comum no exercício do cargo, ele poderá ser denunciado ao STF por Aras (que foi escolhido por Bolsonaro para substituir Raquel Dodge no comando da PGR, e certamente morreria afogado se o presidente resolvesse tomar um banho de assento). 

Detalhe: O Supremo só poderá dar andamento ao processo com autorização de dois terços da Câmara dos Deputados. Daí a razão de o presidente “que nada tem a esconder” mandar às favas as aparências, sentar-se sobre seus discurso de campanha contra a velha política do toma lá dá cá e passar e negociar cargos e verbas em troca de apoio de deputados venais dos partidos do Centrão.

Para quem não se lembra, assim fez o vampiro do Jaburu quando se tornou alvo das flechadas de Janot, e assim concluiu seu mandato-tampão, ainda que como um presidente pato-manco, subserviente ao Parlamento. Mas Temer era um político cuidadoso, comedido e escorregadio como bagre ensaboado. No mínimo, os 15 como presidente do PMDB ensinaram que, no trato parlamentar, pegam-se mais moscas com açúcar do que com vinagre.

Bolsonaro foi criado no confronto e graças a sua postura beligerante, quase troglodita, renovou seu mandato de deputado do baixo clero sete vezes, e foi também no grito que mobilizou sua militância para eleger-se presidente. Claro que a bandeira do antipetismo também foi fundamental, já que o bonifrate de Lula nunca foi uma alternativa válida para a parcela pensante do eleitorado. Mas isso é outra história. Vamos acompanhar o desenrolar dos acontecimentos e ver que aonde tudo isso vai nos levar.

POSTAGEM DO DIA:

Na história do Brasil, muitos presidentes foram eleitos para ser depostos — e eu não podia ser mais um”, disse o José Sarney em recente entrevista à revista Veja. Tivesse dito isso nos estertores de sua desditosa passagem pelo Palácio do Planalto, o ex-presidente entraria para a história não só como mandatário inepto, mas também como profeta, pois seu vaticínio se cumpriria no apagar das luzes de 1992, com o impeachment de seu sucessor, Fernando Affonso Collor de Mello.

Collor se destaca dos demais ex-presidentes da Nova República tanto por ter sido o primeiro escolhido pelo voto popular (coisa que não acontecia desde a eleição de Jânio Quadros, em 1960) quanto por ter inaugurado a lista dos impichados. Pouco antes do julgamento final de seu impeachment, em 29 de dezembro de 1992, o caçador de marajás de araque apresentou sua carta-renúncia, numa tentativa desesperada de preservar seus direitos políticos (a deposição do cargo era inevitável, e Collor sabia disso, daí dar os anéis para evitar a perda dos dedos). Mas a estratégia não funcionou: por 76 votos a 3, ele foi condenado e apenado com a perda do mandato e oito anos de inelegibilidade.

Observação: A observância dos ditames constitucionais não seria tão rígida 24 anos depois, mais exatamente em 31 de agosto de 2016. No julgamento final do impeachment de Dilma Rousseff, uma vergonhosa tramoia urdida pelos então presidentes do Senado e do Supremo — respectivamente Renan Calheiros, alvo de 17 inquéritos, 13 deles na Lava-Jato, e Ricardo Lewandowski, que ganhou toga graças a sua devoção canina a Lula — “fatiou” a pena, defenestrando a gerentona de araque do cargo, mas preservando seus direitos políticos, a despeito de o artigo 52 da Constituição determinar “a perda do cargo com inabilitação, por oito anos para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”. Enfim, como dizia Maquiavel, “aos amigos, os favores; aos inimigos, a Lei”.

A eleição de 1989 foi convocada exclusivamente para a escolha do novo presidente. Nenhum dos 22 candidatos obteve mais de 50% dos votos em 15 de novembro, e os dois mais votados, Collor e Lula, disputaram o segundo turno em 17 de dezembro, que resultou na vitória do populista de centro direita sobre o demiurgo petista de centro-esquerdaCollor foi empossado em 15 de março de 1990, prometendo abater com um único tiro o “tigre da inflação” (que avançava a uma velocidade de 80% ao mês). Na véspera, solicitara a Sarney que decretasse feriado bancário, de modo que o mercado financeiro tivesse mais tempo para se adequar às novas medidas econômicas — que teriam efeitos imediatos sobre a inflação, mas não tardariam a fazer água, a exemplo de todas as anteriores.

Além de substituir o cruzado novo pelo cruzeiro como unidade monetária, o “Plano Collor” incluiu ações de impacto, tais como a redução da máquina administrativa com a extinção ou fusão de ministérios e órgãos públicos, a demissão de funcionários públicos, o congelamento de preços e salários e — agora a cereja do bolo — o confisco dos ativos financeiros pelo período de 18 meses (a partir de quando seriam devolvidos em suaves parcelas mensais), a pretexto de “enxugar” a liquidez do mercado e conter a escalada dos preços. Entraram na dança cadernetas de poupança, aplicações de overnight e contas correntes com saldo superior a NCz$ 50 mil (cinquenta mil cruzados novos). 

A responsável pelo pacote de maldades foi a economista Zélia Cardoso de Mello, ministra da Fazenda de Collor, que mais adiante teria um tórrido affair com o ministro Bernardo Cabral — conhecido como Boto Tucuxi — e desposaria Chico Anysio, que passaria a ser jocosamente chamado de “o humorista que casou com a piada”.

Observação: Quando o dinheiro confiscado começou a ser devolvido (em suaves prestações mensais), circulou uma piada segundo a qual um cidadão, irritado com o tamanho da fila do banco, disse que ia matar o presidente. Voltou minutos depois. Perguntado por que havia mudado de ideia, respondeu que a fila deferente ao Palácio do Planalto estava maior que a do banco.

Em janeiro de 1991, ainda sob a batuta de Zélia, o Plano Collor II substituiu seu predecessor, mas foi substituído cinco meses depois pelo Plano Marcílio — ao mesmo tempo em que Zélia deixava o Ministério da Fazenda e o economista Marcílio Marques Moreira era nomeado para chefiar a pasta. Em outubro de 1992, quatro dias antes de Collor ser afastado, Marcílio passou o bastão para Gustavo Krause. Entre o fim do Plano Marcílio e o início do Plano Real, já em 1994, sob a presidência de Itamar Franco e com Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda, a inflação, após ficar bastante volátil ao longo do governo Collor, alcançou o patamar de 48% ao mês em junho de 1994.

Como dito no início desta postagem, Collor teve seu impeachment julgado no final de 1992. Ao longo do processo (que levou cerca de quatro meses), o autodeclarado homem macho de colhão roxo descobriu que a mão que afaga é a mesma que apedreja.

A opinião pública já vinha desgostosa com a petulância e o despreparo da equipe collorida, um bando de jagunços comandados por um presidente tão investido da aura de salvador que exalava arrogância por todos os poros. Quando a caça às bruxa ganhou vulto, criou-se o clima de linchamento propício ao afloramento dos sentimentos mais mesquinhos. A cada dia se produziam mais escândalos, como se a mera exposição de um amplo sistema de propinas não fosse suficiente. Um dia era o Fernandinho do pó, no outro era o sujeito que fazia macumbas no porão da Casa da Dinda, que cantou a cunhada, que era maníaco-depressivo e que ficava em estado catatônico e precisava receber remédio na boca. Enfim, cada um colhe o que planta, e quem semeia ventos colhe tempestades.

Oito anos passam depressa, e são mais que suficientes para o eleitor brasileiro, conhecido pela memória curta, esquecer os tapas e cusparada que recebeu nas fuças de políticos tão imprestáveis como quem os elege. Aliás, quem vota em candidato incompetente, desonesto e populista jamais poderá reclamar de não ser bem representado. Cada povo tem o governo que merece, e num país que parece se sentir mais feliz de cócoras e apreciar o avesso das coisas, a farsa se repete como farsa e a História faz de conta que é outra história. Collor será sempre Collor, Lula sempre será Lula e os idiotas que votaram (e ainda votarão) neles sempre serão idiotas.

Depois de se reabilitar politicamente, Collor disputou o governo de Alagoas (que já havia exercido antes de se ser eleito presidente), mas foi derrotado por Ronaldo Lessa. Em 2006, conseguiu se eleger senador. Em 2010, tornou a disputar o governo estadual e perdeu. Em 2014, reelegeu-se senador e, em março de 2015, entrou para a lista dos investigados da Lava-Jato. Em abril de 2017, foi denunciado por peculato; em agosto, virou réu no STF (Collor é investigado em pelo menos outros seis inquéritos, todos oriundos da Lava-Jato e referentes ao escândalo do Petrolão).

Collor é um político emblemático, um personagem frequente no Supremo e representativo da demora da Justiça, em especial da que envolve os parlamentares com foro privilegiado. Pelas últimas contas, o senador por Alagoas é investigado em ao menos outros seis inquéritos, todos oriundos da Lava-Jato e referentes ao escândalo do Petrolão. Isso sem mencionar o assassinato mal explicado de seu coordenador e tesoureiro de campanha, amigo de fé, irmão e camarada Paulo César Cavalcante Farias, o PC, do qual o ex-presidente é suspeito de ter tido algum tipo de envolvimento (o motivo seria queima de arquivo). Em 2014, durante sessão que absolveu Collor dos crimes de corrupção supostamente cometidos durante sua presidência, a ministra Carmem Lúcia citou que Collor já havia sido objeto de 14 inquéritos no STF e quatro ações penais, e absolvido em todos "por falta de provas".

Semanas atrás, em entrevistas ao GLOBO e à revista VejaCollor acusou Bolsonaro de cometer os mesmo erros que ele próprio cometeu 30 anos atrás e prever que o atual governo terá um final tão funesto quanto o seu. Mais um profeta de botequim cujo vaticínio tem chances reais de se concretizar.

Continua no próximo capítulo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

A HORA DO IMPEACHMENT — PARTE II


Tudo é questão de ponto de vista. Os 106.296 pontos de fechamento do Ibovespa, na última sexta, ficaram parecendo uma alta depois de o índice ter atingido 102.854 pontos no pior momento do dia. Ainda assim, trata-se de uma queda de 1,34%.

Para minimizar o estrago causado pelo colapso do teto de gastos do país em prol de medidas populistas, Bolsonaro Guedes tentaram terminar o dia menos pior com uma coletiva de imprensa, e obtiveram sucesso até certo ponto, embora o posto Ipiranga tenha reafirmado que manterá tudo aquilo que disseminou o caos na semana: o Bolsa Família turbo ficará fora do teto de gastos, que agora é retrátil — voltará a ser usado em algum momento — e que haverá ainda o pagamento de R$ 400 aos caminhoneiros, inconformados com a alta nos preços dos combustíveis.

Guedes deixou claro que ficará ao lado do chefe até o fim, diferentemente da sua equipe, que debanda a cada nova medida fiscalmente irresponsável. Foi o único consolo para a Faria Lima — se nem o "superministro" consegue controlar Bolsonaro e a turma do Centrão, é bom nem pensar no que aconteceria se ele pedisse o boné.

"Entendemos que teto é símbolo, mas não deixaremos passarem fome para tirar 10 em fiscal", afirmou Guedes durante a entrevista. O problema é que estão elevando os gastos sem parar, de auxílio em auxílio, sem cortar outras despesas.

No início, a falastrice da dupla até que pegou bem — apesar de todo o caos e das quedas em Nova York, a B3 chegou a sair do vermelho. Mas a alta foi pífia e não se sustentou, e o balanço da semana causaria arrepios até em Stephen King, o mestre do terror: a Bolsa acumulou queda de 7,3%, o dólar fechou a semana com alta de 3,16% e os juros futuros seguiram escalando o Everest chamado risco fiscal brasileiro.

ObservaçãoNoves fora Bolsonaro, ninguém ganha com a permanência de Guedes à frente da Economia. Na verdade, todo mundo perde — como vem perdendo desde quando ele e o capetão assumiram seus cargos. Sob essa parelha, o Brasil caiu de oitava para décima terceira economia, voltando ao mapa da fome com o surgimento de dezenas de milhões de miseráveis. O economista liberal que colocaria o país nos trilhos era uma fraude — a exemplo da fraude que o nomeou. Ambos estão destruindo o Brasil, e agora falam em privatizar a Petrobras o que seria bom, não fosse o fato de a intenção de mimí e cocó ser obter mais recursos para vitaminar o Bolsa Família e torrar na campanha presidencial. Guedes passou de ministro a cabo eleitoral e provável tesoureiro da campanha do capetão. E salve-se quem puder, pois tudo indica que essa junta reeditará o desastre produzido pela gerentona de araque buscando a reeleição a qualquer custo, quebrando o País e depois dizendo “tchau queridos”. Foi constrangedora (para não dizer patética) a coletiva em que Bolsonaro disse que está com Guedes e não abre (faria melhor se não abrisse a boca), enquanto Zero "Rachadinha" Um, da primeira fila, liderava o cordão dos puxa-sacos. Até onde a vista alcança, ao terror das empregadas domésticas resta somente o apoio da Famiglia Bolsonaro (e só Deus sabe até quando). Se serve de consolo para o povão que padece sob o capetão, seu algoz será vítima de Guedes no ano que vem, e não se reelegerá, pelo bem do Brasil.

Impeachment vem do inglês "to impeach" — o ato de incriminar ou acusar, especialmente uma autoridade, de má conduta ou traição. A expressão é uma adaptação anglófona do francês, "empêcher", que em português significa “impedir”. Em sentido literal, é o processo que impossibilita as ações de alguém. Na política, é o impedimento do exercício do mandato de uma autoridade.

Esse conceito foi colocado em prática pela primeira vez no século XIV, no longínquo ano de 1376, quando um britânico chamado Lord Latimer foi alvo de afastamento da Câmara dos Comuns — o Parlamento Inglês —, acusado, entre outras coisas, de corrupção. Os autores da Constituição dos Estados Unidos adaptaram o sistema britânico e ajudaram a espalhar o conceito pelo mundo. Hoje, 94% dos países presidencialistas incluem mecanismos constitucionais capazes de destituir suas autoridades. E não é como se esse fosse um recurso pouco utilizado. De 1990 a 2020, num intervalo de apenas três décadas, houve pelo menos 272 acusações de impeachment contra 132 diferentes chefes de Estado, em 63 países no mundo — só a Noruega apelou para esse dispositivo oito vezes desde 1927.

Embora a saída definitiva do cargo seja algo relativamente raro, isso ocorreu aproximadamente uma vez a cada dois anos nos últimos 30 anos — foram os casos, por exemplo, do filipino Joseph Estrada, em 2001, e da coreana Park Geun-hye, em 2017. Entre 1978 e 2019, a América Latina viu dez presidentes de seis países serem destituídos do cargo por meio do impeachment — ou da renúncia — como tentativa de fugir do impeachment. Isso aconteceu, por exemplo, com o venezuelano Carlos Andrés Pérez, em 1993, e com o peruano Pedro Pablo Kuczynski, em 2018.

O Brasil teve cinco processos de impeachment contra presidentes da República. O primeiro deles em 1954, contra Getúlio Vargas, que acabou rejeitado pelo parlamento, mas a pressão política foi tamanha que Vargas se suicidou dois meses depois, com um improvável tiro no peito. Dada a morte do caudilho, Café Filho, seu vice, herdou seu lugar, mas logo se afastou do cargo por problemas de saúde. A posição mais alta do país foi ocupada pelo então presidente da Câmara, um sujeito de quem a maioria de nós nunca ouviu falar: Carlos Luz.

Luz entrou para a história por dois motivos. Em primeiro lugar, é dele o recorde do mandato presidencial mais curto da República — míseros 3 dias. Em segundo lugar, ele foi o primeiro presidente brasileiro afastado do cargo por um processo de impeachment.

Quando Café Filho recebeu alta médica e tentou reassumir a presidência, ele também acabou afastado — o que significa dizer que tivemos dois processos bem-sucedidos de impeachment em 1955. Para além desses, Fernando Collor, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016, tiveram o mesmo destino.

Muitos países estabelecem bases relativamente subjetivas para o impeachment. Na França, o presidente pode ser afastado por qualquer "violação de seus deveres que seja claramente incompatível com o exercício de seu mandato". Na Tanzânia, o presidente pode ser destituído se ele "se comportar de maneira que diminua a estima do cargo de presidente".

Dezessete países dão a uma câmara alta — o Senado — a palavra final sobre o impeachment; 61 concedem essa palavra a tribunais ou conselhos constitucionais. No Brasil, os senadores decidem se o presidente deve ser afastado, mas é o STF que garante a legitimidade do processo.

Um mandatário tupiniquim sofre impeachment quando comete um crime de responsabilidade, conforme previsto na Constituição Federal e na Lei do Impeachment. São crimes de responsabilidade atentar contra 1) a existência da União; 2) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; 3) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; 4) a segurança interna do País; 5) a probidade na administração; 6) a lei orçamentária; e 7) o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Jair Messias Bolsonaro recebeu cerca de 140 pedidos de impeachment desde que assumiu a presidência. Ao todo, esses pedidos foram assinados por mais de 1.550 pessoas e 550 organizações. Nenhum presidente na história do Brasil recebeu tantos pedidos de impeachment — Dilma teve 68; Lula, 37; Temer, 31; e FHC, 24. Ou seja, é preciso somar o total de pedidos de impeachment dos últimos 20 anos para ombrear com o número alcançado pelo mandatário de turno em 1.000 dias de desgoverno. Entre eles há a lista de dezenas de crimes, em diferentes categorias — incluindo o repetido discurso de ameaça à independência e harmonia entre os Poderes.

O impeachment oferece às democracias presas em crises de natureza política a chance de um "hard reset", além de funcionar como freio contra os abusos e as ameaças de poder, mecanizado para defender o país da incapacidade, da traição e da negligência de um presidente.

A democracia é um modelo político superior às ditaduras não porque carrega uma fórmula mágica que elege os melhores, mas porque tem instrumentos capazes de impedir que os piores permaneçam no poder.

Ao fim e ao cabo, a melhor resposta para um apologista de ditadura ocupando a presidência da República — desqualificado, impotente e desacreditado pelas demais instituições republicanas — é a própria democracia. Mas não há impeachment sem participação popular.

Insatisfação política sem protesto nas ruas não promove afastamento de presidente, mas nota de repúdio. No passado recente, com multidões tomando as ruas, nosso país venceu a inaptidão de líderes à direita e à esquerda, condenados pelo processo de impeachment. É a hora e a vez desse destino alcançar Jair Messias Bolsonaro.

Com Tássia Kastner, Guilherme JaquesRodrigo da Silva

P. S. Retomaremos nossa sequência histórica na próxima quarta-feira.

domingo, 26 de maio de 2019

É O FIM DA PICADA!



O balanço das repercussões das manifestações pró-governo e contra tudo e todos fica para amanhã, dado o horário em que eu posto o Blog. Até lá, seguem algumas considerações sobre o pseudo caçador de marajás — exemplo pronto e acabado do lobo que perde o pelo, mas não larga o vício, e que é uma das muitas provas vivas do despreparo do nosso eleitorado. Na sequência, mais um texto irreprochável do jornalista J.R. Guzzo.

Collor foi primeiro presidente eleito pelo voto direto após o fim da ditadura militar — ditadura essa que, como viemos a saber recentemente, não passou de uma ilusão de óptica. Ele também se destacou por ter confiscado a poupança do brasileiros e por abrir a lista dos presidentes impichados na nova república. Agora, além de responder na Justiça por rapinar o Erário, Fernandinho é acusado de fazer o mesmo com o patrimônio da família, por não repassar aos sobrinhos sua cota-parte no lucro das empresas do clã.

No âmbito familiar, o ex-presidente impichado e ainda senador — ele renunciou às vésperas de ser defenestrado pelo Congresso, mas teve os direitos políticos cassados mesmo assim — exibe um sólido histórico de transtornos, desavenças e traições. No passado, brigas com os irmãos Pedro e Leopoldo e crises no casamento com Rosane; no presente, além de ser réu na Lava-Jato e investigado e responder a outros seis inquéritos, é acusado por cinco sobrinhos — que, juntos, detêm 15% da Organização Arnon de Mello — de apropriar-se do patrimônio da família. Perdeu o pelo, como dito no início, mas não abandonou o vício que o notabilizou.  

Fernando (nome dado em homenagem ao ex-presidente, que se tornaria inimigo figadal do irmão) e Victor têm juntos 15% do grupo. Os dois nunca viram um centavo do lucro das empresas nem receberam balanço contábil desde a morte de Pedro. Leopoldo teve três filhos, mas eles não podem exigir parte do patrimônio porque o pai vendeu sua participação acionária ainda em vida.
Representantes do clássico coronelismo nordestino, os Collor de Mello usufruem a rara combinação de dinheiro e poder. Seus negócios englobam bens como a TV Gazeta, afiliada da Globo, duas rádios, um jornal, uma gráfica e um edifício de treze andares em Maceió. Estima-se que o conjunto chegue a 250 milhões de reais. 

Essa é apenas a parte visível do iceberg, pois há outros bens, de caráter reluzente, que também têm sido alvo de disputa. Segundo matéria publicada em VEJA, o inventário da matriarca, Dona Leda (1916-1995), é descrito em 162 páginas, quatro delas dedicadas a joias e pedras preciosas, como uma pulseira de 18 gramas de ouro e 21 esmeraldas e um colar de ouro de 18 quilates de 102 gramas com onze fios de pérolas e brilhantes, além de vasos chineses, lustres de cristal Baccarat e obras de arte, como uma tela a óleo com a imagem da própria Leda pintada por Cândido Portinari. Embora as peças façam parte do testamento da matriarca, os herdeiros não sabem onde elas foram parar, e apontam o dedo para Fernando Collor, sabidamente useiro e vezeiro em misturar o que é dele e o que é dos outros.

Depois de ser escorraçado da política no pós-impeachment, Collor voltou-­se para os negócios da família. Em meados dos anos 90, assumiu o controle do grupo, então em boa saúde financeira. Hoje, a Organização Arnon de Mello soma mais de 200 milhões de reais em passivos. De acordo com a PGR, o ex-caçador de marajás de festim usou as empresas da família para lavar R$ 50 milhões, como na compra de um Porsche Panamera, por R$ 550mil, em nome da TV Gazeta. No mês passado, a PGR pediu ao STF a condenação do político a 22 anos e oito meses de prisão por lavagem de dinheiro e corrupção passiva.

As denúncias de irregularidades na distribuição de dinheiro entre os parentes e as acusações de lavagem de dinheiro, ambas ainda sob investigação, são o fio que puxa uma história de relações muito confusas, que não raro terminaram em rompimento. É triste, para dizer o mínimo, a saga da dinastia Collor. O casal Arnon de Mello e Leda Collor formou um clã de poder político e financeiro de longa data. O pai dela foi ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, nos anos 30 — antes de voltar-se contra a administração e ser exilado —, além de senador e governador de Alagoas. O dinheiro e o tumulto eram equivalentes dentro do lar. O clima de competição ganhava estímulo dentro de casa, onde a mãe também distribuía carinho de forma desigual. Leopoldo era o favorito na infância, mas na vida adulta ela transferiu o posto de queridinho para Pedro — quando este alavancou as empresas da família, no começo dos anos 90. Feliz, ela tinha feito um testamento em que daria 50% de seu patrimônio a Pedro. Depois que o filho fez as denúncias a VEJA, o documento foi desfeito e D. Leda decidiu testar metade da fortuna às duas filhas mulheres, Ana Luísa, morta em 2013, e Ledinha (ambas sem herdeiros).

Em 1998, outro abalo familiar. Leopoldo emprestou dinheiro ao irmão para a compra do Dossiê Cayman — um calhamaço de documentos falsos para prejudicar FHC. A mutreta foi descoberta, o tucano conseguiu se reeleger e Collor jamais quitou a dívida. Foi o ponto-­final em uma relação de raiva, inveja e competição. Com recursos escassos, os filhos de Leopoldo começaram a andar de transporte público e a comer ovo como “mistura” no almoço e no jantar. Por anos, Leopoldo trabalhou como diretor comercial da Rede Globo no Brasil, frequentando festas chiques regadas a champanhe. Morreu, em 2013, de câncer na garganta, em São Paulo. Não foi feito inventário por uma razão simples: não havia nada em seu nome. Collor impediu o jornal da família de noticiar a morte do irmão.

Fernando Affonso Collor de Mello tem cinco filhos. Arnon e Joaquim, os dois mais velhos, do casamento com a empresária Lilibeth Monteiro de Carvalho, quase não falam com o pai. Dos cinco filhos de Arnon e D. Leda, Fernando e Ledinha são os únicos vivos. Ambos estão rompidos. Apesar do atávico desconforto familiar, os primos buscam reinventar essa narrativa pacificamente. Os filhos mais velhos de Collor são amigos dos herdeiros de Pedro e Leopoldo. Procurado por VEJA, o marajá dos marajás, em nota envida por meio de seus advogados, refutou as acusações de que esconde o patrimônio familiar: “A defesa não vai responder a nenhuma questão relativa às empresas do ex-presidente; isso faz parte da relação entre ele e os sócios, e não faz sentido discutir publicamente”. Como se vê, as desculpas esfarrapadas e a postura arrogante também se repetem.
Passo agora a reproduzir o texto de J.R. Guzzo:

Se existe uma coisa fácil de identificar, no meio deste Brasil tão confuso de hoje, é o sujeito que gosta de ladrão. Falo de gente que manda ou influi em alguma coisa na vida pública — uma “autoridade”, como se diz. A descoberta da turma que dá expediente no Pró-Crime não exige prática nem habilidade. Basta olhar para qualquer dos Três Poderes da República e prestar atenção no seguinte: se a autoridade A, B ou C toma a decisão de mudar daqui para ali a apreciação de qualquer ato de ladroagem, ou o julgamento da conduta de qualquer político, o cidadão já pode ir tirando o cavalo da chuva: a bandidagem de primeira classe conseguiu, mais uma vez, bater lindamente sua carteira — ou, pelo menos, está tentando fazer o possível para isso, e quase sempre leva, quando tenta.

A recente traficância em torno de quem manda no Coaf é um exemplo clássico da primeira modalidade de vigarice que o submundo da “engenharia política” aplica em você. Chega a ser cômico, de tão grosseiro que é, o “modo de usar” manipulado pela politicalha no caso. Que raio pode ser esse Coaf? Uns 99% dos brasileiros não sabem o que é isso, nem querem saber. Mas tenha certeza de que aquele 1% que sabe, porque trabalha no pedaço, sabe extremamente bem o que é esse negócio, para o que serve, como tirar vantagem dele e tudo o mais que se pode imaginar de ruim a respeito. Trata-se de um “Conselho de Controle de Atividades Financeiras” — criado para produzir “inteligência financeira” destinada a combater crimes como a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo. Pois bem: 14 membros de uma Comissão Mista do Congresso, por uma diferença de três votos, decidiram mudar o Coaf “daqui para ali”. Em vez de ficar no Ministério da Justiça, de Sergio Moro, passará para o Ministério da Economia, de Paulo Guedes.

Mas as atividades do Coaf não se ligam muito mais à esfera da Justiça e da polícia do que da economia? Sim, só que ninguém está pensando nisso — o que estão pensando, isso sim, é onde ficaria mais seguro, para eles, encaixar a repartição que vigia a lavagem de dinheiro. Quer dizer que os funcionários da Economia são mais frouxos do que os da Justiça, ou mais dispostos a proteger os criminosos? De jeito nenhum. Não há a menor suspeita de que a equipe de primeira linha montada pelo ministro Guedes possa se meter nesse tipo de coisa. Mas aí é que está: a avacalhação dos políticos brasileiros chegou a tal extremo que qualquer mudança feita por eles levanta automaticamente as piores desconfianças. É como foi dito acima: se mexeram no Coaf, é porque estão atrás de alguma safadeza em seu benefício. O fato de 100% dos deputados e senadores do PT presentes na comissão terem votado a favor da alteração acaba com a conversa: é o selo de garantia definitivo de que a intenção da operação é apoiar a roubalheira.

A segunda modalidade de atuação do Pró-Crime, que muda a esfera onde se julgam os acusados de violar o Código Penal, ficou expressa na também recente decisão do STF, pelo voto decisivo de seu presidente, Dias Toffoli, de mudar para as Assembleias Legislativas o poder real de apreciar os crimes cometidos por deputados estaduais. O Supremo resolveu que eles têm, agora, a mesma “imunidade” dos parlamentares federais. É a ação da “banda podre” do STF, reforçada ultimamente pelo ministro Celso de Mello. De Toffoli, julgado oficialmente, e por duas vezes, sem qualificação mínima para ser juiz de direito, é isso mesmo o que se poderia esperar; ele é um desses casos de “o passado me condena, e o presente também”. De Celso Mello, firma-se a convicção de que a melhor contribuição que pode dar ao país é fazer aniversário no dia 1° de novembro do ano que vem — quando chegará aos 75 anos de idade e terá de ir embora do STF.

Tudo isso é mais um chute nas instituições. Elas vêm sendo destruídas há 30 anos, aliás, como resultado direto da obediência à “Constituição Cidadã” — que foi feita, vejam só, para dar instituições ao Brasil.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

O IMPEACHMENT QUE NÃO HOUVE (CONTINUAÇÃO)

 

"Impeachment" é uma adaptação anglófona do francês "empêcher" (impedir) que, no âmbito da política, designa o impedimento do exercício do mandato de uma autoridade por má conduta. 

Entre 1990 e 2020, houve pelo menos 272 pedidos de impeachment contra 132 diferentes chefes de Estado em 63 países no mundo.
 
Algumas nações estabelecem bases relativamente subjetivas para o impeachment. Na França, o presidente pode ser afastado por qualquer "violação de seus deveres que seja claramente incompatível com o exercício de seu mandato"; na Tanzânia, caso o mandatário "se comporte de maneira que diminua a estima do cargo". Dezessete países dão a uma "câmara alta" — como o nosso Senado — a palavra final sobre o processo, e 61 concedem-na a tribunais ou conselhos constitucionais.
 
No Brasil, o Congresso decide se o presidente deve ser afastado por crime de responsabilidade, mas é o STF que garante a legitimidade do processo. De acordo com a Constituição Federal e a Lei do Impeachment, são considerados crimes de responsabilidade atentar contra a existência da União; o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do País; a probidade na administração; a lei orçamentária; e o cumprimento das leis e das decisões judiciais. 

Observação: Houve 5 processos de impeachment ao longo de nossa história republicana. O primeiro foi contra Getúlio Vargas. O parlamento rejeitou o pedido, mas a pressão resultou no "suicídio" do caudilho (quem se mata com tiro no peito?). 
 
Além de proporcionar a chance de um "hard reset" a democracias presas em crises de natureza política, o impeachment funciona como freio contra abusos e ameaças de mandatários com vocação para tiranete, mas também defender o país da incapacidade, da traição e da negligência de um presidente. 

Observação: A democracia é um modelo político superior às ditaduras não porque carrega uma fórmula mágica que elege os melhores, mas porque tem instrumentos capazes de impedir que os piores permaneçam no poder. 
 
A melhor resposta para um apologista desqualificado, incompetente, desacreditado e saudoso da ditadura ocupando a presidência da República é a própria democracia. Bolsonaro coleciona 145 pedidos de impeachment — mais que a soma dos 31 de Temer, 68 de Dilma e 37 de Lula

Ao longo da nossa história republicana, ao menos quatro presidentes renunciaram: Deodoro da Fonseca em 1891; Getúlio Vargas em 1945; Jânio Quadros em 1961; e Fernando Collor em 1992. Impeachments, houve dois na era pós-ditadura: o de Collor em 1992, e o de Dilma em 2016.
 
O problema é que não há impeachment sem vontade política, e a vontade política advém da pressão popular. Insatisfação sem protesto nas ruas não derruba presidente. No passado recente, o Brasil venceu a inaptidão de líderes à direita e à esquerda, que foram apeados mediante processos de impeachment, mas sempre com multidões tomando as ruas. 
 
Continua...

segunda-feira, 14 de junho de 2021

O PODER, OS PODEROSOS E O QUE SE PODE FAZER


Em entrevista reproduzida pela BBC Brasil, o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza disse que os militares voltaram ao poder para ficar, com ou sem Bolsonaro. Segundo ele, os 17 generais que formam o Alto Comando do Exército (dos quais 15 exercem cargos na Esplanada dos Ministérios ou em estatais, autarquias e órgãos de fiscalização) formaram um “Partido Militar” para eleger o ex-capitão, e assim chegar ao poder sem ruptura institucional. 

O grupo teria começado a se articular no início da década passada, em parte pelo fato do país ser governado, então, por uma ex-guerrilheira. E foram eles que procuraram Bolsonaro, não o contrário (um registo do encontro está no canal no YouTube de Carlos Bolsonaro).

A candidatura do hoje presidente foi cuidadosamente planejada para disfarçar o envolvimento do grupo. Na escolha do vice, por exemplo, falou-se em Magno Malta, no príncipe Luiz Philippe de Orléans e Bragança e na advogada Janaína Paschoal. Mas a única dúvida era se seria o general Augusto Heleno ou o general Hamilton Mourão — devido à idade do primeiro, optou-se pelo segundo.

Pimentel atuou junto com Santos Cruz em 2016, supervisionando um grupo de trabalho do Estado Maior do Exército que era orientado pelo general, que já havia passado para a reserva e mais adiante, assumiu um cargo no primeiro escalão do Governo do capitão, no qual permaneceu por sete meses, até ser demitido devido a ataques de Carlos Bolsonaro e apoiadores do presidente. “Talvez o Mourão passe para o segundo turno, talvez seja o Santos Cruz”, especula o coronel. “Mas o Partido Militar vai estar no segundo turno no ano que vem.” 

O general Santos Cruz disse à reportagem que não quer comentar sobre as “divagações” de seu ex-subordinado, e o Exército e o Planalto não retornaram o contato da emissora.

Observação: Sobre a motociata do capetão, Santos Cruz assim se pronunciou:  “A mentalidade anarquista do presidente age para destruir e desmoralizar as instituições, e banalizar o desrespeito pessoal, funcional e institucional. Junto com seguidores extremistas, alimenta um fanatismo que certamente terminará em violência.” Talvez fosse bom lhe dar ouvidos.

Pimentel diz ainda que a ida de Pazuello para o Ministério da Saúde foi um erro de cálculo do Partido Militar: “Tentaram fazer uma publicidade da capacidade do Exército brasileiro de resolver problemas, pensando que os números iam cair, e quem estaria à frente do ministério seria um general da ativa vendido como ‘o rei da logística’.”

A pandemia se agravou e Pazuello deixou o ministério muito criticado e é alvo de investigação por causa do colapso do sistema de saúde em Manaus. Ainda assim, virou secretário do presidente e discursou num ato em apoio a seu governo. Na avalição do coronel, a decisão do Exército de não punir Pazuello comprova a politização das Forças Armadas. “Ficou estranha essa decisão, porque com indisciplina não se transige. É a base da instituição.”

No sábado 12, o presidente promoveu outra “motociata” e foi multado pelo governo de São Paulo por desrespeitar as leis sanitárias do Estado. Como se não bastassem as aglomerações produzidas pelo comício, o capitão transgrediu a lei ao andar numa moto com a placa oculta. Adulterar placas, lembra o jornalista Guilherme Amado, viola o Código Penal, que prevê pena de três a seis anos de reclusão, além de multa, a quem comete esse tipo de infração. 

Observação: Durante a manifestação bolsonarista, um motociclista perdeu o controle, caiu e acabou derrubando outros participantes. Uma pessoa ficou deitada no asfalto esperando atendimento médico. Ao contrário dos índices de aprovação de sua gestão, o presidente — que vestia uma jaqueta bordada com seu retrato eu usava um capacete com a inscrição “presidente Bolsonaro” — não caiu.

Ricardo Kertzman anotou em sua coluna na ISTOÉ que não deixa de ser curioso o nome da motociata do capetão ser Acelera para Cristo

Cristo? Milhares de irresponsáveis se aglomerando e espalhando o novo coronavírus jamais seria obra Dele? O Motoqueiro Fantasma é um anti-herói do bem. Renascido do fogo do inferno, retorna à Terra para combater o mal. Já o amigão do Queiroz (aquele miliciano que entupiu a conta da primeira-dama com 90 mil reais em ‘micheques’) é o próprio demônio encarnado. Sua missão é destruir, ofender, promover o ódio e a discórdia e, claro, espalhar vírus e causar mortes. 

Em culto a si mesmo e à sua personalidade macabra, o devoto da cloroquina sequestra a imagem de Cristo e usurpa o cristianismo em causa própria. O rolê jamais foi para o mais pródigo dos filhos de Deus, e sim para o líder da seita fanática do bolsonarismo, que trajava uma camisa com sua própria foto e um elmo com seu próprio nome. Bolsonaro é tão lunático e tão psicopata que não me surpreenderia a equiparação a Cristo.

Certa feita, Lula, o meliante de São Bernardo, comparou-se a Deus. Essa espécie de gente acaba acreditando naquilo que seus devotos lhe oferecem, ou seja, a divindade sob forma humana (eu disse humana?). Mas, no final do dia, se deparam com a mediocridade e finitude que a imagem carcomida que o espelho atira em suas caras desavergonhadas.”

Bolsonaro cometeu diversos crimes de responsabilidade, mas é protegido por um “escudo político” que inclui até Lula, que prefere tentar derrota-lo nas urnas, avalia o professor de direito da Universidade de São Paulo Rafael Mafei, autor do livro Como Remover um Presidente — Teoria, história e prática do impeachment no Brasil

Em entrevista ao Estadão, Mafei afirma que o impeachment é um remédio amargo que deve ser reservado como último recurso para proteger o país de um presidente tirano ou criminoso que tenha conseguido vencer as eleições, mas vacilar na sua aplicação quando ele for indispensável pode ter efeitos trágicos para a democracia.

Uma das hipóteses emergenciais nas quais o uso desse instrumento seria necessário, segundo Mafei, é o exercício da Presidência por Jair Bolsonaro. Não há, segundo ele, nenhuma dúvida jurídica de que o presidente tenha cometido crimes de responsabilidade. Como exemplos, Mafei cita a violação ao direito à saúde no contexto da pandemia — que ficou ainda mais claro com os trabalhos da CPI do Genocídio — e o fato de o mandatário agir de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo ao usar o poder comunicacional de sua posição para agredir instituições, incitar comportamentos contrários à lei, estimular indisciplina de instituições militares e a hostilidade entre instituições militares e civis. 

Cerca de 120 pedidos de impeachment dormitam placidamente sobre a mesa do deputado-réu Arthur Lira, que se elegeu presidente da Câmara com o apoio do chefe do Executivo e recursos do “orçamento paralelo” (ou “Tratoraço”, como queiram). Lira não dará andamento a nenhum deles (a exemplo de como fez seu antecessor) enquanto Bolsonaro mantiver seu “escudo político” de apoiadores e seus adversários acharem que a melhor solução é derrotá-lo nas urnas. Mas que respeito terão pelo TSE um presidente e uma matula de apoiadores que não têm o menor respeito pelo STF? (Falo do Supremo como instituição, porque a maioria dos togados... enfim, deixa pra lá).

Mafei apresenta em seu livro uma análise detalhada dos impeachments de Collor e Dilma. O primeiro serviu para o país estabelecer as regras do procedimento, mas teve um ar festivo, a despeito de o impeachment ser um grande trauma e ter um custo político enormeQuanto ao segundo, o escritor pondera que o termo “golpe”, como usado pelos apoiadores da petista, é inadequado para analisar o processo, mas que as ilegalidades cometidas pela ex-presidanta poderiam ter sido enfrentadas por meios menos traumáticos.

Remover do cargo um presidente descomprometido com as instituições, perigoso para a sobrevivência e para a integridade delas, e que não possa ser contido de outra maneira é, em última análise, permitir que o destino da democracia de um país fique rendido nas mãos de um tirano ou de um criminoso que tenha conseguido vencer as eleições. Deodoro da Fonseca, que foi o primeiro presidente do Brasil, vetou a Lei do Impeachment por achar que ela estava sendo trabalhada pelos seus adversários para depô-lo. Quando o Congresso derrubou seu veto, ele simplesmente dissolveu o Legislativo, como se o país ainda estivesse no Império e ele fosse o imperador. 

Observação: Ao longo de seus 130 anos de história republicana, o Brasil teve 35 presidentes que chegaram ao poder pelo voto popular, por eleição indireta, via linha sucessória ou por golpe de Estado. Oito deles, a começar do primeiro, foram de alguma maneira apeados do poder.

No caso de Collor, quando a situação começou a ficar insustentável, o parlamentarismo se apresentou com a alternativa, até porque a Constituição Cidadã, promulgada em meio à ressaca da ditadura militar, pavimentara o caminho para esse sistema de governo. Mas o plano não seguiu adiante, uma vez que Collor botou sua tropa de choque em campo para jogar pesado no Senado e derrotar a emenda parlamentarista.

Observação: art. 2º Título X, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispõe que: “no dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.” Mais adiante, a emenda nº 2, de 25 de agosto de 1992, antecipou o plebiscito para 21 de abril de 1993 e determinou que seus efeitos vigessem a partir de 1º de janeiro de 1995. Mas faltou combinar com os burros, e aí deu zebra — uma zebra que emprenhou e pariu o presidencialismo de coalizão (ou de cooptação, como queiram).

É importante salientar que, quando o impeachment de Collor começou a ser cogitado, o que se tinha era a lei de 1950 e o Brasil jamais havia vivenciado um impedimento de chefe do Executivo (nem mesmo de governador de Estado). Quando a Câmara aprovou a abertura do processo, o Senado não tinha ideia de como conduzi-lo, e assim coube ao Supremo esclarecer as regras do jogo. 

Num almoço que reuniu os então presidentes do STF e do Senado, o ministro Sydney Sanches entregou ao senador Mauro Benevides duas folhas com o rito do impeachment, escrito quase que integralmente pelo ministro Celso de Mello, e disse: “Se vocês seguirem isso aqui, nós não vamos interferir em nada”.

O processo que resultou na renúncia de Collor (que foi julgado culpado e inabilitado politicamente por 8 anos) foi como que uma micareta cívica. Mas o impeachment não só é um processo traumático como acarreta um custo político astronômico. Essa percepção é importante para evitar que se lance mão da medida em situações que não a exijam. Por outro lado, se ela for realmente indispensável, vacilar na sua aplicação pode ter efeitos trágicos para o país. Nos anos 1970, quando o então presidente norte-americano Richard Nixon renunciou para não ser cassado, um dos primeiros atos de Gerald Ford foi perdoar o antecessor para pôr uma pá de cal sobre o assunto.

Mafei diz não ter dúvidas de que Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade, sobretudo no contexto da pandemia. Segundo ele, dois crimes estão claramente configurados. O artigo sétimo da Lei do Impeachment tipifica como crime de responsabilidade violar, patentemente, qualquer direito social assegurado na Constituição — e a Constituição assegura o direito social à saúde. 

CPI tem evidenciado que o presidente claramente optou por sacrificar a saúde dos brasileiros e inviabilizar políticas essenciais no combate à pandemia, pois, se a economia fosse mal, sua reeleição estaria comprometida, mas se a saúde fosse mal e centenas de milhares de pessoas morressem (como de fato aconteceu), a culpa seria dos governadores e prefeitos. É por isso que Bolsonaro insiste na tese de que o STF o afastou do comando do gerenciamento da crise. Somada a seu discurso negacionista, essa falácia estimula seus apoiadores de raiz a demonizar qualquer um que defenda o distanciamento social (e, por extensão, do uso de máscaras e demais medidas preventivas). 

O segundo crime do capetão consiste na violação ao artigo 9º da Lei do Impeachment, no tocante a proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Bolsonaro falou muita bobagem em seus 28 anos de deputância, mas o que disse como deputado tem um impacto insignificante se comparado ao das aleivosias que ele regurgita como presidente

Observação: O dispositivo legal retrocitado visa justamente impedir que o chefe do Executivo use seu poder retórico e verbal para agredir instituições, incitar comportamentos contrários à lei, estimular indisciplina de instituições militares e hostilidade entre instituições militares e instituições civis. Se o comportamento de Bolsonaro não viola a dignidade, a honra ou o decoro do cargo, esse crime precisa ser elidido da lei, posto que não existe e, portanto, não é possível cometê-lo.

Bolsonaro é um criminoso político que desafia o impeachment escudando-se em seus apoiadores e no fato de seus adversários insistirem em derrotá-lo nas urnas. A estes, cumpre lembrar que a prudência recomenda não ferir quem não se pode matar. Atores políticos que já estiveram no círculo de proximidade do presidente hoje se bate pelo impeachment — caso de Alexandre Frota, Kim Kataguiri e Joice Hasselmann, entre outros —, mas para isso seria preciso que todos se unissem e que o impeachment em si fosse o “plano A”.

Derrotar Bolsonaro nas urnas vai muito além de fazer campanha e apurar o resultado das urnas. Ele já deixou isso evidente ao fazer eco à falácia trumpista de fraude eleitoral e ao insistir no restabelecimento do voto impresso no Brasil (detalhe: nos EUA ainda se utilizam cédulas). Demais disso, já cuidou de aparelhar a PF, a Abin, a PGR, a AGU, a CGU, o Ministério da Saúde, as presidências da Câmara e do Senado e as Forças Armadas.

Observação: Quem não se lembra do motim da PM do Ceará, do descumprimento da Polícia Civil do RJ às restrições impostas pelo STF a operações em comunidades, da ação truculenta da PM pernambucana, que disparou balas de borracha contra manifestantes que saíram às ruas para protestar contra o governo, entre tantos outros exemplos?

A derrota de Bolsonaro nas urnas (que seria providencial, mormente se o candidato vitorioso fosse outro que não certo ex-presidente ex-presidiário e “ex-corrupto”) pode dar azo a uma batalha campal, uma situação caótica muito mais grave que a invasão do Capitólio pela caterva trumpista em 6 de janeiro passado. Alguém deveria dizer isso a Lula, Leite, Doria e a quem mais tencione disputar a presidência em 2022, até porque a janela de oportunidade do impeachment vai se fechando conforme o início oficial da disputa se aproxima.

Bolsonaro se preocupa apenas em proteger a filharada, acirrar sua militância e fazer campanha pela reeleição — embora o fim da reeleição tenha sido uma de suas principais promessas de campanha em 2018 — e nem se dá ao trabalho de fingir que respeitará o resultado das urnas se vier a ser derrotado em 2022. Repete ad nauseam que não confia no processo porque, em 2018, sua vitória no primeiro turno não foi reconhecida, como relembrou na semana passada ao discursar para lideranças evangélicas em Anápolis (GO). Mas a pergunta que não quer calar é: se tem mesmo provas, por que ele não as apresenta? Se havia mesmo um plano para roubar sua eleição, como explicar sua vitória no segundo turno? 

Numa das vezes em que tratou dessa acusação, o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do TSE, lamentou que o Brasil não é mesmo um país para amadores, lembrando a famosa máxima de Tom Jobim. “Só aqui o ganhador reclama de fraude”, disse o magistrado. 

Em sua carreira política, Bolsonaro venceu oito eleições consecutivas, sendo seis delas já no esquema de voto digital. Mas coerência nunca foi mesmo o forte do presidente, assim como as análises precisas sobre eventos importantes ocorridos na história do Brasil. Fraudes existiam em abundância no passado das velhas cédulas de papel, problema que foi eliminado com as urnas eletrônicas, cuja confiabilidade é constantemente avalizada por auditorias internas e organismos internacionais. “É como voltar aos tempos do orelhão”, disse Barroso.

Essa insistência dos bolsonaristas em praticar o terraplanismo eleitoral serve como tentativa diversionista em meio à atual crise de popularidade do governo, e não passaria de mais uma aleivosia do lunático inquilino de turno do Planalto se não servisse de combustível para movimentos antidemocráticos. Não por acaso, insuflados pelo seu líder, os bolsomínions ameaçam armar um circo semelhante, avisando que não vão reconhecer o resultado do pleito de 2022 sem a impressão do voto. E o mito mitômano lhes dá corda: “Lula só ganha na fraude”.

Como salientou Mauricio Lima na Carta ao Leitor publicada na edição impressa de VEJA desta semana, não bastasse o custo estimado em R$ 2 bilhões de reais para a adaptação do atual sistema, a medida abre uma perigosa brecha para a judicialização das eleições, com o potencial surgimento de hordas de derrotados exigindo nos tribunais a recontagem dos votos. Em meio a tantos problemas da atualidade, tudo de que o Brasil não precisa é ser assombrado por fantasmas do passado.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

ALEA JACTA EST — E QUE DEUS NOS AJUDE A TODOS

Enquanto o mundo se curva ao poderio do inimigo invisível que já infectou 4,8 milhões de pessoas e, destas, matou 314 mil, o Brasil, que superou a Itália e a Espanha no último sábado e se tornou o quarto país do mundo em número de casos confirmados da Covid-19, precisa se desdobrar em três frentes de batalha.

Além de debelar a crise sanitária e seus efeitos nefastos na economia, o país precisa combater outro adversário. Este, porém, nada tem de invisível. Tem nome, sobrenome e endereço conhecidos (embora também se apresente como "Airton Guedes", "Rafael Augusto Alves da Costa Ferraz" e "paciente 05"). Trata-se de alguém em quem fomos obrigados a votar a contragosto, para evitar um mal maior. Mas jamais imaginamos que estaríamos criando o monstro que aí está.

Sabíamos tratar-se de um anormal e mau militar (na definição irreprochável do ex-presidente general Ernesto Geisel), que foi defenestrado do Exército por planejar explodir bombas de baixa potência em quartéis e academias, que se elegeu deputado federal sete vezes seguidas e, ao longo de longos 27 anos e fumaça como parlamentar do baixo clero, aprovou dois projetos e colecionou mais de trinta ações criminais (a maioria movida por políticos de esquerda, mas até aí morreu o Neves).

Resta saber o que fazer para combater um comandante que bombardeia o próprio navio, quando deveria conduzi-lo a bom porto. Felizmente, a sabedoria popular ensina que a necessidade é a mãe da invenção, e a história, que quando não há caminhos é preciso criá-los.

É certo que o momento não poderia ser pior para um impeachment, como adverte o presidente da Câmara dos Deputados. Mas o mesmo se poderia dizer em relação à demissão não de um, mas de dois ministros da saúde, em menos de 30 dias, por um presidente que não se sabe se é maquiavélico ou demente. E isso em meio à mais grave crise sanitária dos últimos 100 anos — situação em que alguém experiente e muito bem assessorado no comando do Ministério da Saúde faria toda a diferença.

Nelson Teich não foi um bom ministro, mas não é justo culpá-lo pelo desperdício de quase um mês de energias dispersas. Desde a implosão de Mandetta, quem assumiu o posto foi o próprio presidente — Teich passou por Brasília como mera camuflagem para a aversão que seu agora ex-chefe nutre pelo iluminismo.

Bolsonaro — que ganhou no quartel o apelido de "Cavalão" — não quer um ministro da Saúde, mas um fantoche, um áulico que ecoe as suas ideias para o setor. Ninguém com um pingo de dignidade, ou que tenha uma reputação a zelar, ou pura e simples vergonha na cara aceitará o papel de submissão aos “achismos” e obsessões presidenciais, exigência determinante do capitão para a sobrevivência de seus auxiliares. Sendo assim, talvez a única solução seja recorrer à disciplina militar.

Se Cavalão, digo, se Bolsonaro abdicasse do posto de ministro da Saúde para assumir a Presidência — cargo para o qual foi eleito por 57,7 milhões de brasileiros —, algo de bom poderia acontecer, sobretudo se fizesse uma autocrítica e abrisse um canal de diálogo sincero com governadores e prefeitos. Como o único tipo de autocritica que o presidente conhece é a autocritica a favor, o que vem por aí é a continuidade de uma corrida insana, com o capitão trevoso disputando com o vírus o comando da crise.

Pouco importa se Cavalão (ops), se Bolsonaro se criou no confronto ou foi criado por ele. Fato é que criatura e criador tornaram-se indissociáveis, o que desqualifica ambos os dois para o exercício da Presidência. A Constituição oferece duas soluções: o impeachment, em caso de crime de responsabilidade, e a abertura de inquérito pelo procurador-geral da República, em caso de crime comum. Existe uma terceira via — menos traumatizante — que seria a renúncia, mas nesse caso a iniciativa caberia ao próprio presidente, o que a torna tão improvável quanto uma chuva de Moët & Chandon.

Houve ao menos quatro renúncias (de presidentes) na história republicana do Brasil: Deodoro da Fonseca, em 1891; Getúlio Dornelles Vargas, em 1945; Jânio da Silva Quadros, em 1960; Fernando Affonso Collor de Mello, em 1992. Cada qual teve suas peculiaridades e motivações, naturalmente, mas este não é o momento para esmiuçar esse assunto.

Impeachments, houve dois na era pós-ditadura: Collor, em 1992, e Dilma, em 2016 (tecnicamente, houve outros casos desde a proclamação da República, mas alguns não resultaram em deposição e outros que... enfim, não é o momento para maiores delongas).

Collor renunciou horas antes de ser julgado no Senado, mas os parlamentares resolveram prosseguir com o julgamento e, por 76 votos a 3, o caçador de marajás de araque foi inabilitado para o exercício de função pública pelos oito anos seguintes. Dilma é história recente e, portanto, dispensa outras considerações. Mas não me furto a mencionar que a gerentona de araque foi campeã absoluta em pedidos de impeachment: foram nada menos que 68, enquanto Collor foi alvo de 29Itamar, de 4; FHC, de 27; Lula, de 37, e Temer, de 33.

Pedidos de impeachment de presidentes da República são protocolados na Câmara dos Deputados, e cabe ao presidente da Casa decidir se dá, ou não, andamento aos processos. Bolsonaro já contabiliza mais de 30, mas Rodrigo Maia ainda não se dignou de dar andamento a nenhum deles (e tampouco os arquivou, é bom que se diga).

Na última sexta-feira, o ministro Celso de Mello determinou que Bolsonaro fosse notificado do processo em tramitação na Corte que envolve um pedido de impeachment contra ele (o processo foi apresentado com o objetivo de cobrar, pela Justiça, que o presidente da Câmara examine um pedido de afastamento protocolado em março).

Os autores alegam "omissão do Legislativo" em avaliar a abertura de impeachment do presidente. O decano pediu “prévias informações” a Rodrigo Maia, que classificou o afastamento como “solução extrema” e pontuou que não há norma legal que fixe prazo para a avaliação dos pedidos protocolados no Congresso. A decisão por arquivar, ou não, a ação cabe ao relator, ministro Celso de Mello.

Em meio a esse salseiro todo, o general Augusto Heleno desceu à trincheira das redes sociais e, armado de tambores e clarins, o peito estufado como uma segunda barriga, proclamou que o decano do STF cometerá "um ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional" se mandar divulgar a íntegra da gravação da reunião ministerial de 22 de abril (vale lembrar que o Celso de Mello deve assistir ao vídeo hoje à tarde e decidir se libera o conteúdo parcial ou integralmente).

Heleno insinua que, na reunião, o presidente e seus ministros trataram de "assuntos confidenciais e até secretos." Em petição ao decano, a defesa de Moro pede transparência total, alegando que a gravação não expõe "segredos de Estado", apenas "constrangimentos". De fato, a julgar pelos vazamentos, a reunião transcorreu em clima de botequim, sob atmosfera constrangedora, marcada por xingamentos, desqualificações e alucinações.

Ao empurrar Moro para fora do governo, o Cavalão, digo, o capitão ganhou um adversário metódico. Com a experiência adquirida em 22 anos de magistratura, o ex-ministro tenta transformar sua cruzada contra numa espécie de combo, misturando dois inquéritos: o que apura a interferência política de Bolsonaro na PF e o que investiga um aparato de fake news com as digitais do bolsonarismo. Moro e seu advogado, Rodrigo Sanchez Rios, insistem em vincular os comentários feitos pelo presidente, na reunião de 22 de abril, à mensagem que ele enviou para o então ministro da Justiça no dia seguinte, via WhatsApp.

Na reunião, Bolsonaro falou em trocar "gente da segurança nossa no Rio de Janeiro" (pode me chamar de superintendente da PF) antes que surgisse uma "sacanagem" com potencial para "foder minha família toda ou amigo meu". Deixou claro que, para atingir seu objetivo, demitiria até o ministro se necessário. No WhatsApp, reproduziu para Moro notícia segundo a qual o inquérito sobre fake news está "na cola" de uma dezena de parlamentares bolsonaristas. E arrematou, referindo-se a Maurício Valeixo, então diretor-geral da PF: "Mais um motivo para a troca". Os dois inquéritos correm no STF; um é relatado pelo ministro Celso de Mello, e o que roça em Carluxo, pelo ministro Alexandre de Moraes. Num, observa-se o desejo de Bolsonaro, noutro a causa. Juntá-los é como unir pólvora e o fósforo.

Num esforço extra para defender o chefe da acusação de interferir politicamente na PF, Augusto Heleno divulgou uma nota. Quem lê o texto fica com a impressão de que, defendido pelo amigo, o presidente tornou-se um personagem ainda mais indefeso. A pretexto de socorrer Bolsonaro, um amigo em apuros, o general namora o ridículo. E vem sendo totalmente correspondido. Beleza. Cada um faz com sua biografia o que bem entender. O que não é aceitável é que peça aos brasileiros para fazerem como ele, fingindo-se de bobos pelo bem do presidente.

"Não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu. Vou interferir. Ponto final", proclamou o general da banda na fatídica reunião. Sua declaração consta de transcrição oficial levada ao STF pela AGU, que extraiu da gravação feita durante a reunião os trechos que considera relevantes para o inquérito. A transcrição é parcial, mas o pouco que ela expõe já é suficiente para desnudar a versão oficial difundida pelo próprio Bolsonaro. "Eu não falo Polícia Federal", disse o capitão. Mentira. A menção ao órgão escorre dos lábios do presidente no instante em que ele se queixa do desempenho dos serviços de espionagem do governo. "Pô, eu tenho a PF, que não me dá informações", ralhou a certa altura.

Bolsonaro também afirmou a repórteres que o conteúdo da fita estilhaçaria a acusação de Moro, que mencionara somente preocupações com sua segurança pessoal e a proteção de seus filhos e amigos, e que não dirigira a queixa a Moro, mas o chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Lorota. O contexto e os fatos que se sucederam ao encontro não deixam dúvidas de que os alvos eram a PF e Moro. "Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira", disse o presidente.

Com efeito, nesse trecho o capitão não cita a PF nem Moro, mas tampouco faz referência ao GSI nem ao general Heleno. Confrontada com os fatos, a versão não para em pé. De resto, o que se verificou nos dias subsequentes à reunião foi uma incursão de Bolsonaro na estrutura da PF, não no GSI. E que ele exonerou o diretor-geral da PF, Mauricio Valeixo, com requintes de falsidade, seja por anotar no ato de exoneração que o delegado deixou o cargo "a pedido", seja por incluir no documento a assinatura digital de Moro.

Nas pegadas do expurgo de Valeixo sobrevieram o desembarque de Moro, a tentativa de nomeação de Ramagem (barrada pelo STF), a troca de Ramagem pelo subordinado dele na Abin e a mexida no comando da superintendente da PF no Rio. Tudo exatamente como ameaçara Bolsonaro na reunião: "Vai trocar [o superintendente do Rio]; se não puder trocar, troca o chefe dele [Valeixo]; não pode trocar o chefe, troca o ministro [Moro]. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira."

No GSI, nada indica que o general Heleno tenha sido decapitado. Não há registro de substituições no grupo que cuida da segurança de Bolsonaro e de sua família. Afora a percepção de que Bolsonaro tentou mesmo colocar a PF a serviço do seu clã, a transcrição trazida à luz pela AGU revela que o presidente tem uma noção esquisita sobre a tarefa dos órgãos de inteligência do governo. Do modo como se expressou, ele parece associar esse setor mais à bisbilhotagem do que à coleta de dados estratégicos, úteis à tomada de decisões de um presidente. 

O linguajar rastaquera, os modos rústicos e a ignição instantânea fazem parte do DNA do capitão caverna, mas os temas tratados na reunião parecem ter aguçado os seus maus bofes. Em certos trechos, ele se dirigiu aos subordinados como se estivesse fora de si, e sempre que isso ocorre ele não consegue esconder o que tem por dentro.

Resta a Bolsonaro confiar na aposta que fez ao indicar Augusto Aras para o posto de procurador-geral. Se ele decidir que a investigação deve ser arquivada, o assunto estará encerrado, não importa a quantidade de evidências em contrário. É nisso que aposta o Cavalão, mas, por vias das dúvidas, articula com o rebotalho do Centrão para evitar que eventuais desdobramentos políticos lhe ameacem o mandato.

Aras já pediu ao ministro Celso de Mello que mantenha os detalhes sórdidos da gravação da reunião em sigilo, revelando-se menos concessivo do que a AGU e mostrando-se mais realista que o rei. Defensor de Bolsonaro no imbróglio, o AGU defendeu que sejam expostas à luz solar todas as manifestações do presidente na reunião, menos "a breve referência a eventuais e supostos comportamentos de nações amigas", além das falas dos ministros e presidentes de bancos públicos presentes à reunião. 

Aos devotos que carregam seu andor nas redes sociais, Bolsonaro disse o seguinte: "São dois trechos de 30 segundos que interessam ao processo. Mas, da minha parte, autorizo a divulgar todos os 20 minutos, até para ver dentro de um contexto. O restante a gente vai brigar. A gente espera que haja sensibilidade do relator [Celso de Mello]. É uma reunião reservada nossa.”

No serviço público, a publicidade é a regra e o sigilo, a exceção. Pela lei, o Planalto poderia ter requisitado a classificação da fita da reunião como sigilosa, secreta ou ultrassecreta. Mas não ocorreu a ninguém que seria necessário proteger segredos de polichinelo despejados num encontro com mais de duas dezenas de pessoas, incluindo dirigentes de bancos públicos.

Aras justifica a defesa do breu com o argumento de que a divulgação da íntegra transformaria o inquérito em "palanque eleitoral precoce das eleições de 2022." Se procurar um pouco, o procurador notará que o palanque já está montado. De um lado, o capitão das trevas, candidato à reeleição. Do outro, Moro, potencial adversário do trevoso. O procurador esmiuçou suas preocupações: "A divulgação integral do conteúdo o converteria, de instrumento técnico e legal de busca da reconstrução histórica de fatos, em arsenal de uso político, pré-eleitoral (2022), de instabilidade pública e de proliferação de querelas e de pretexto para investigações genéricas sobre pessoas, falas, opiniões e modos de expressão totalmente diversas do objeto das investigações."

Deve-se torcer para que o esforço exibido pelo PGR na busca de argumentos para poupar o governo da exposição de um vexame seja duradouro. O empenho pode ser útil na hora de procurar no inquérito elementos para o oferecimento de uma denúncia criminal que Bolsonaro dá de barato que o procurador-geral não formalizará. 

Aras está sendo pressionado pelas duas partes. Por um lado, a pressão interna, vinda dos procuradores, é pela denúncia, sobretudo depois de terem visto a gravação e interrogado as testemunhas. Há informações de que, ao receber os primeiros detalhes sobre o vídeo, o PGR soltou um palavrão de espanto diante dos relatos. De outro lado, a pressão vem do Cavalão, digo, do presidente, que acena ao procurador com a vaga do decano no STF, mas insinua que a indicação dependeria da atuação de Aras.

À medida que as provas se acumulam, arquivamento desse processo fica mais difícil. O advogado constitucionalista Gustavo Binemboim, muito antes de o vídeo da reunião ministerial se tornar o busílis da questão, escreveu um artigo em que explica os padrões decisórios consolidados para situações de incerteza no direito processual penal: in dúbio pro societate (em dúvida, a favor da sociedade), pelo recebimento da denúncia, no início do processo; in dúbio pro réu (em dúvida, a favor do réu) quando do julgamento final. “Na instauração da ação penal, prefere-se correr o risco de processar suposto inocente a inocentar possível culpado. No veredicto final, havendo dúvida razoável, prefere-se inocentar eventual culpado a condenar virtual inocente”.

Toda investigação é um quebra-cabeça que vai sendo montado peça por peça. Se alguma for esquecida, não se forma a figura final. Aras precisa levar em conta as atitudes pregressas do Cavalão, digo, do presidente, que desde agosto fala publicamente que quer mudar o comando da PF no Rio. Cabe ainda ao PGR analisar cuidadosamente o ambiente da reunião ministerial. Bolsonaro disse que em nenhum momento se referiu à Polícia Federal; os ministros Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos disseram que ele falou, sim, mas em outro momento da reunião, em outro contexto. Depois, tiveram uma crise de amnésia — que acometeu também o general Heleno. É preciso ver o vídeo inteiro para juntar as peças do quebra-cabeça. Um bom passatempo para o decano na quarentena.

Ao fim e ao cabo, de concreto, por ora, há apenas a evidência de que o rei se desnudou. O preço do apoio do centrão dependerá do tamanho da nudez.

Com Merval Pereira e Josias de Souza.