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quarta-feira, 8 de maio de 2024

NOVIDADES NO GOOGLE PLAY STORE

ANTES TARDE DO QUE NUNCA.

O semipresidencialismo — sistema de governo em que o presidente partilha o poder executivo com um primeiro-ministro e um conselho de ministros (gabinete) — vigora no Brasil há décadas, e sua adoção formal é defendida por Arthur Lira há anos, mas, assim como o parlamentarismo, só é lembrado como solução para crises institucionais em anos de eleição presidencial. 
Se houvesse vontade política de debater essa alternativa e consenso em adotá-la no médio prazo, talvez se conseguisse solucionar o problemas das emendas impositivas, que na maioria das vezes só tem a ver com interesses político-eleitoreiros. O problema é que mudanças de sistema de governo no Brasil sempre ocorreram nas crises, e todas tiveram que ser "acoxambradas" para atender às peculiaridades da política tupiniquim. 
Nosso presidencialismo foi copiado por Rui Barbosa da Constituição americana em 1891, para substituir o parlamentarismo "flexibilizado" que existia no Segundo Império. Em 124 anos de história republicana, o parlamentarismo vigeu durante míseros 16 meses de 7 setembro 1961, quando foi implantado para solucionar a crise institucional resultante da renúncia de Jânio e recusa dos militares em aceitar a posse de Jango, até 3 de janeiro de 1963, quando foi extinto por decisão tomada pelo povo em plebiscito.
Desde o governo Michel Temer (que também é defensor do semipresidencialismo), o aumento da influência do Congresso no governo culminou com o simulacro de semipresidencialismo identificado por Arthur Lira como nosso sistema de fato. Talvez fosse o caso oficializá-lo de uma vez por todas.

Em 2019, o Google namorou com o download simultâneo de dois ou mais apps na Play Store — que, aliás, é uma solicitação antiga dos usuários. O casamento nunca aconteceu, mas o blog TheSpAndroid revelou recentemente que a funcionalidade está sendo testada na versão 40.0.13 da Play Store.

Nos moldes atuais, o gerenciador de downloads do sistema organiza os apps numa fila e atende às demandas uma de cada vez. No novo, será possível fazer dois downloads simultâneos, mas qualquer pedido que envolvendo mais de dois apps fará com que o terceiro seja colocado na fila de espera. Além disso, os downloads paralelos não funcionarão nas atualizações de aplicativos instalados, que continuarão sendo baixadas individualmente. 
 
No último dia 29, nova postagem do blog supracitado revelou que a novidade em assunto foi incluída na versão 40.6.31 da Play Store dentro do Android 14, mas que a liberação está sendo feita de forma gradual, e ainda não se sabe ela será estendida ao Android 13 e às versões anteriores do robozinho verde. 

Melhor seria o Google agilizar as atualizações dos apps — que são bem mais frequentes do que as instalações. Enfim, quem viver verá.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

PONTOS A PONDERAR (CONTINUAÇÃO)


Prosseguindo:

Arrastado de volta ao passado, o brasileiro revive hoje a ressaca dos anos 60, quando a gestão de Jânio Quadros terminou em renúncia e a de Jango — que assumiu graças ao arranjo do parlamentarismo — terminou em deposição, dando azo ao golpe militar de 64, que resultou em 21 anos de ditadura. 

A movimentação épica pelas "Diretas Já" — quarta tentativa de recomeço — decepcionou tanto os democratas, que tiveram que adiar o direito ao voto, quanto João Figueiredo, o último general-presidente da ditadura, cujo epílogo foi uma declaração patética: "o povão que poderá me escutar será talvez os 70% de brasileiros que estão apoiando o Tancredo [...] desejo que eles tenham razão [...] e que me esqueçam."
 
Tancredo Neves — quinta tentativa de reescrever a história — saltou da vitória no colégio eleitoral para a cama de hospital e terminou na cova, deixando como herança o vice José Sarney, egresso da ditadura, em cuja gestão — a sexta tentativa — a restauração democrática confundiu-se com a anarquia econômica e administrativa. 

Fernando Collor — primeiro presidente eleito pelo voto direto após a redemocratização, sétima tentativa de recomeço e primeiro mandatário da nova república a ser escorraçado pelo impeachment — demonstrou que faltou ao Brasil aprender com Jânio a desconfiar dos salvadores providenciais (como já disse alguém, os políticos mais perigosos são aqueles que se julgam salvadores da pátria). 
 
FHC, como ministro da Fazenda do governo Itamar, consolidou a mudança do regime monetário introduzida pelo Plano Real e tirou das sombras todas as precariedades nacionais que eram obscurecidas pelo descalabro inflacionário: saúde sofrível, educação precária, desigualdade inaceitável... Mas moveu mundos e fundos para aprovar a PEC da Reeleição e acabou empurrando a oitava tentativa de renascimento para uma impopularidade que mantém o tucanato longe do Poder há mais de duas décadas (em 2022, em estágio avançado de autocombustão, o PSDB desistiu de apresentar um candidato à Presidência; saiu das urnas como um pequeno partido, a caminho do nanismo).
 
Lula 1 — o nono recomeço — tornou-se um caso único de mandatário que sofreu emboscadas da Presidência quando já estava fora dela. Seu estilo de governar, firmando alianças tóxicas financiadas à base de mensalões e petrolões, revelou-se uma rendição à oligarquia política e empresarial. Após usufruir de seus dois primeiros mandatos, deixou o Planalto enfiando os dedos no favo de mel de uma taxa de popularidade de 84%. Lambendo as mãos, elegeu a sucessora duas vezes. Tentava fugir das abelhas quando foi preso.
 
Dilma — o décimo recomeço — foi vendida por seu criador como "gerentona", mas revelou-se um conto do vigário no qual o próprio Lula caiu. Entre 2013 e 2016, a economia brasileira encolheu 6,8% e o desemprego saltou de 6,4% para 11,2%. Foram ao olho da rua algo como 12 milhões de pessoas — se Lula passou à história como presidente que fez a sucessora, Dilma se imortalizou como a criatura que desfez a obra do criador.
 
Michel Temer — produto da deposição de Dilma — sonhou em passar à história como presidente reformista. Depois que tudo virou epílogo no enredo de seu mandato tampão, sobreveio Bolsonaro — o 11º recomeço — que, catapultado pelo antipetismo do baixo clero parlamentar para o Planalto, comandou o governo civil mais militar da história e consolidou esta banânia como o mais antigo país do futuro do mundo. 
 
Como uma borboleta que volta à condição de larva, o Brasil chega a 2023 arrastando atrás de si o seu passado como um casulo pesado e pegajoso. O t
erceiro mandato de Lula será a 12ª tentativa de recomeço em seis décadas, mas isso é assunto para a postagem de amanhã.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — QUARTA PARTE

 

Jânio Quadros levou apenas sete anos para passar de advogado e professor de Português e Geografia a vereador. Na sequência, foi prefeito de São Paulo, governador do Estado e presidente da República. Mas suas idiossincrasias e falta de traquejo com o Congresso levaram-no a renunciar à Presidência antes de completar sete meses no cargo. 

Irritado com os sucessivos boicotes impostos pelos parlamentares, o manguaceiro despachou para a China seu vice, João Goulart, numa missão comercial e diplomática cujos reais propósitos eram reforçar a imagem de comunista que Jango conquistara quando ministro do Trabalho no governo Vargas

Em 25 de agosto de 1961, tendo sido desancado de véspera, em rede nacional de rádio e televisão, pelo desafeto e rival Carlos Lacerda, o pé-de-cana apresentou a carta-renúncia que, em seus delírios etílicos, não seria aceita pelo Congresso — e ainda que fosse, o povo o reconduziria ao cargo por aclamação, permitindo-lhe governar sem ser "incomodado" pelos parlamentares. Mas faltou combinar com os russos.

Jânio voou para a base aérea de Cumbica, em Guarulhos (SP), levando consigo a faixa que não mais lhe pertencia, e lá permaneceu durante horas, aguardando a aclamação popular que não aconteceu — dizem que uma tramoia foi urdida para impedir a população de saber onde ele se encontrava quando a notícia da renúncia foi divulgada. Sem alternativa, ele deixou a base num DKW rumo ao porto de Santos, onde embarcou para a Europa com Dona Eloá Quadros, deixando atrás de si um país imerso na crise política que pavimentaria o caminho para o golpe de 1964 e os 21 anos de ditadura militar que viriam a reboque.

Informado da renúncia, Jango deixou a China rumo ao Uruguai, onde ficou até a poeira baixar. Nesse entretempo, o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente o comando do Executivo, mas quem de fato governou o país até a implementação do parlamentarismo foi uma junta formada pelos três ministros militares do governo Jânio.

Adotar o parlamentarismo foi a solução encontrada para vencer a resistência dos militares à posse de Jango e evitar uma guerra civil, e a PEC foi aprovada a toque de caixa em 2 de setembro de 1961. A princípio, ficou definido que um plebiscito seria realizado em 1965, permitindo ao povo referendar ou não o novo sistema de governo. A consulta acabou sendo antecipada para 1963, e o sempre mui eleitorado tupiniquim optou pela volta do presidencialismo.

Ainda que a mudança do sistema de governo limitasse os poderes do presidente, parte das FFAA se mantiveram contrárias à posse do vice. O governador gaúcho Leonel Brizola, cunhado de Jango, organizou o “Movimento de Resistência Democrática” e a “Voz da Legalidade” visando granjear apoio ao parente. E prometeu pegar em armas contra a tentativa de golpe dos fardados.

Nesse entretempo, foi divulgado que Jango voltaria por terra de Montevidéu a Porto Alegre, quando na verdade ele e sua comitiva embarcaram num Caravelle da Varig (empresa aérea do Rio Grande do Sul), que voou todo o tempo com as luzes apagadas e a uma velocidade que inviabilizou uma possível interceptação por caças da FAB

Uma vez na capital gaúcha, Jango demoveu Brizola da ideia de marchar sobre Brasília para fechar o Congresso. Mesmo não sendo partidário do parlamentarismo, o vice-presidente temia que os conflitos armados evoluíssem para uma guerra civil, de modo que se resignou a dar os anéis para não perder os dedos.

No dia 5 de setembro, Jango embarcou em outro Caravelle da Varig com destino a Brasília — sua posse estava marcada para dali a dois dias, no feriado da Independência. A aeronave voou a uma altitude de 11,1 mil pés, de modo a permanecer fora do alcance do radar e dos caças da FAB durante quase todo o trajeto. A precaução se mostrou justificada: pilotos da FAB haviam recebido ordens de abater o avião em algum ponto do caminho.

Roberto Baere, que à época era tenente aviador do 1º Grupamento de Aviação de Caça da Base Aérea de Santa Cruz, no RJ, revelou posteriormente ter recebido ordens do tenente-coronel Paulo Costa, comandante da base, para preparar os caças que seriam usados no ataque. Baere e outros três colegas que se recusaram a cumprir a missão foram expulsos 3 anos depois.

Em contrapartida à Operação Mosquito, foi urdida uma tática que visava impedir a ação dos aviadores golpistas. A ideia dos apoiadores de Jango era evitar que os demais aeroportos que ficavam no trajeto obtivessem informações sobre o plano de voo, bem como divulgar dados meteorológicos falsos sobre a Região Sul. Nas bases de Porto Alegre e Belém, soldados chegaram a prender seus superiores e furar os pneus dos aviões.

O governo Jango se dividiu em duas fases: a parlamentarista se estendeu até janeiro de 1963 e a presidencialista, até o golpe militar de 31 de março de 1964. A primeira fase durou 14 meses e teve três primeiros-ministros: Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes de Lima. O país enfrentava graves problemas, como a inflação, que vinha num crescendo desde 1940. Para além disso, havia o racha político — com a UDN movendo montanhas em prol da desestabilização do governo. Jango tentou promover o desenvolvimento e reduzir a inflação mediante um plano de austeridade (batizado de Plano Trienal), que fracassou e foi abandonado em 1963.

Com a realização do plebiscito em janeiro de 1963, o presidencialismo foi restabelecido, dando início à segunda fase do governo Jango — que também foi tumultuada pelos debates causados pelas "Reformas de Base" (agrária, tributária, bancária, urbana, educacional e eleitoral). A reforma mais bem elaborada, e que resultou num monumental debate político, foi a agrária, que defendia a desapropriação de propriedades rurais improdutivas com mais de 500 hectares.

Observação: A Constituição de 1946 estipulava que a reforma agrária só poderia ser realizada mediante indenização em dinheiro para quem tivesse sua terra desapropriada, mas o governo Jango tentou negociar a propositura de uma emenda constitucional que lhe permitiria indenizar os proprietários com títulos da dívida pública atualizados pela inflação

Desentendimentos entre os partidos que apoiavam o governo (muitos dos quais eram ligados aos latifundiários) levaram à radicalização, propiciando um aumento exponencial no número de sindicatos de camponeses. Em meio a essa balbúrdia, grupos civis, militares e defensores dos interesses dos EUA — os americanos achavam o governo "muito à esquerda" — passaram a apoiar conservadores e reacionários em prol da desestabilização política do governo.

A interferência americana na política tupiniquim contribuiu para deixar o cenário ainda mais instável, com mobilizações eclodindo no campo e nas grandes cidade e militares defendendo a implantação de um governo autoritário para impor um programa de desenvolvimento econômico no país. Carlos Lacerda, então governador do antigo Distrito Federal e grande agitador político, se contrapunha a Brizola, cunhado de Jango, trabalhista ardoroso e defensor da não-flexibilização das Reformas de Base.

Em meio a esse turbilhão, militares se rebelaram e tomaram de assalto diversos prédios governamentais. Em outubro de 1963, em resposta a uma declaração de Lacerda, Jango decretou estado de sítio no país, o que desagradou tanto os esquerdistas e direitistas quanto os direitistas. Em 1964, grupos que conspiravam contra o governo articularam sua derrubada. 

Para evitar a deposição, Jango proferiu o célebre discurso da Central do Brasil, no qual reafirmou publicamente seu compromisso de realizar, a todo custo, as Reformas de Base. A réplica conservadora não tardou: em 19 de março, meio milhão de pessoas mobilizadas por grupos direitistas realizaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, na qual houve inúmeros pedidos de tomada do poder pelos militares.

Na "virada" de 31 março para 1º de abril de 1964 teve início no município mineiro de Juiz de Fora o levante militar que serviu de estopim para o golpe. Os fardados marcharam para o Rio de Janeiro e tomaram a cidade sem sofrer qualquer tipo de resistência por parte do governo. Jango foi instado a resistir, mas preferiu evitar uma guerra civil, e o golpe foi completado em 2 de abril de 1964, quando o presidente do Senado, Auro de Moura, declarou vaga a presidência do Brasil. Dias depois foi decretado o Ato Institucional nº 1, e a posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco deu início aos 21 anos de ditadura militar.

Continua...

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

... E PODE PIORAR AINDA MAIS

 

Desde sempre que os brasileiros são vocacionados a eleger representantes ladrões e mandatários populistas e imprestáveis. Jânio Quadros é um bom exemplo. Sua renúncia levou ao golpe de 64 e aos subsequentes 21 anos de ditadura militar. Senão vejamos.

Eleito em outubro de 1960, no apagar das luzes do governo de Juscelino Kubitschek — que se notabilizou por construir Brasília do nada, no meio do nada, para suceder ao Rio como Distrito Federal —, o advogado, professor de português, político e cachaceiro inveterado “homem da vassoura” assumiu a Presidência em janeiro do ano de 1961, prometendo “varrer” toda a sujeira da vida pública brasileira. Depois de passar 206 dias mandando “bilhetinhos” para auxiliares e se preocupando com questiúnculas — como rinhas de galo, corridas de cavalo, biquinis nas praias e maiôs cavados em concursos de misses —, o demagogo, "movido por forças terríveis", renunciou ao cargo. 

Na manhã do dia 25 de agosto, após ser acusado por Carlos Lacerda — que viria a ser um dos articuladores civis do Golpe de 1964 e a ganhar o epíteto de “demolidor de presidentes” — de tramar um “golpe de gabinete”, Jânio informou à primeira-dama, dona Eloá, que deixariam Brasília naquela tarde. No Planalto, antecipou aos ministros-chefes das casas Civil e Militar a manchete dos jornais do dia seguinte: “Comunico aos senhores que renuncio, hoje, à Presidência da República. Ajustem o novo Brasil às exigências do Brasil novo. Com esse Congresso, eu não posso governar”.

Findo o desfile do Dia do Soldado, Jânio encarregou o ministro da Justiça de entregar ao presidente do Senado sua carta-renúncia e voou para a Base Aérea de Cumbica, levando consigo a faixa presidencial (que a essa altura não mais lhe pertencia) e a esperança de o pedido não ser aceito — ou de o renunciante de festim ser reconduzido ao cargo por uma manifestação de apoio popular, o que lhe permitira governar sem ser "incomodado pelo Congresso". Mas faltou combinar com os russos.

Mais preocupados em impedir a posse de Jango, os militares esqueceram Jânio, e o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista se seu líder tivesse permitido sua existência. 

Assim, enquanto o país mergulhava na crise provocada pelo veto à promoção do vice a titular, o já ex-presidente embarcou com a mulher num cargueiro com destino à Europa, o presidente da Câmara assumiu (decorativamente) a chefia do Executivo e os ministros militares (que governaram de fato nas semanas seguintes) implementaram a toque de caixa o parlamentarismo. 

Com os poderes limitados e tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, o “vice comunista” foi autorizado a assumir a presidência como chefe de Estado. Mas a experiência parlamentarista foi tão conturbada quanto curta: um plebiscito realizado em 6 de janeiro de 1963 restabeleceu o presidencialismo. 

Jango finalmente assumiu o cargo que era seu por direito, mas foi deposto, quinze meses depois, pelo golpe de 1964. Fica evidente, portanto, que a incipiente democracia tupiniquim havia entrado em parafuso em 25 de agosto de 1961, com a renúncia do populista cachaceiro.

Sobre o golpe: Em 1964, partidos de esquerda, grupos comunistas e seus associados discutiam qual a maneira de derrubar o capitalismo burguês e implantar a ditadura do proletariado, se pela luta armada ou pelo caminho reformista. Naquela época, a ampla maioria da esquerda era reformista — pelas chamadas reformas de base, processo que começava com a agrária e incluía um amplo cardápio de estatizações. 

Jango, filiado ao PTB getulista, estava claramente no campo da esquerda. Ainda que houvesse comunistas em seu governo e no entorno, o presidente nada tivesse de comunista, a exemplo de ilustres membros do seu gabinete durante o curto período parlamentarista, como os primeiros-ministros Tancredo Neves e Santiago Dantas, que eram, no máximo, socialdemocratas, trabalhistas ou nacionalistas.

Como o grupo comunista era claramente minoritário, o sucesso de Jango levaria o Brasil a uma economia mais estatizada, com o aumento dos gastos públicos em todos os setores, dos sociais à infraestrutura (mais ou menos como aconteceu no governo ditatorial do general Ernesto Geisel, um nacionalista e estatizante da primeira linha, e no governo Lula, mas isso é outra conversa). 

Em 1964, no auge da “Guerra Fria” o mundo estava dividido entre os EUA e a URSS. As plataformas reformistas — aqui, no Chile, na Argentina etc. — procuravam se aproximar não propriamente da União Soviética, mas do “Bloco do Terceiro Mundo”, que se declarava independente, mas pendia para a esquerda, ou seja, era adversário dos EUA, que, nessa disputa, patrocinavam ditaduras direitistas para, como se dizia na época, evitar a ditadura comunista.

Não havia a menor possibilidade de uma vitória comunista. Nem pela via reformista, nem pela luta armada. A melhor chance de uma guerrilha no Araguaia ou no Vale do Ribeira era a de ser massacrada, como de fato aconteceu. Mas foi nesse quadro que parte da elite brasileira, representada por partidos e associações civis, bateu às portas dos quartéis. 

Os militares atenderam rapidamente, pois a doutrina que aprendiam era simplesmente Ocidente versus Pacto de Varsóvia (a frente militar da URSS). O Congresso chancelou a derrubada de Jango e elegeu presidente o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, marechal Humberto de Alencar Castello Branco. Mas só o fez porque a alternativa era o fechamento.

Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe, achando que seria um interregno necessário para garantir a eleição presidencial de 1965, que seria disputada entre Juscelino Kubitschek (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador, liberal, democrata). Mas não tardaram a se arrepender, e foram abandonando o governo militar à medida que este radicalizava, transformava-se numa verdadeira ditadura e dava sinais de que tencionava se perpetuar no poder. Lacerda, apoiador do golpe, terminou cassado e se uniu a JK, também cassado, numa frente pela democracia.

O Congresso funcionou durante os 21 anos de ditadura — noves fora os breves momentos em que ousou discordar do regime — e “elegeu” todos os presidentes, mas somente depois que os generais de quatro estrelas decidiam quem seria o mandatário de turno. 

Partidos políticos foram proibidos, a imprensa, censurada, opositores — tanto democratas quanto comunistas —, presos, torturados e mortos. Quando a política econômica finalmente fracassou — com recessão, dívida externa explosiva e inflação —, a ditadura caiu e os militares se retiraram, liderados por colegas de bom senso num processo conduzido por políticos habilidosos.

Em 1985, Tancredo Neves (MDB) derrotou Paulo Maluf (ARENA) por 480 a 180 votos de um colégio eleitoral formado por senadores, deputados federais e membros das assembleias legislativas estaduais. Mas quis o destino o presidente eleito fosse internado 12 horas antes da posse e dado como morto 38 dias e 7 cirurgias depois — ironicamente, no dia 21 de abril, feriado que homenageia Tiradentes, o Mártir da Independência.  

ObservaçãoSegundo a versão oficial, uma diverticulite obrigou Tancredo a ser submetido a uma cirurgia de emergência horas antes da posse. Também oficialmente, sua morte se deu no dia 21 de abril, depois de outras sete cirurgias. O general João Figueiredo se recusou a passar a faixa ao vice, José Sarney — um reles traidor, segundo o fardado, já que o ex-presidente da ARENA e representante do regime militar no Congresso deixara o partido governista e se juntara à oposição. “Faixa a gente transfere para presidente. Não para vice, esse é um impostor”, disse o general, que deixou o Planalto assim que a votação no Congresso foi encerrada. Ainda assim, a mágoa que o último presidente da ditadura guardava do repulsivo oligarca maranhense era menor que a resistência da caserna ao deputado Ulysses Guimarães.

Continua...  

domingo, 11 de outubro de 2020

A RENÚNCIA DE JÂNIO, SUAS CONSEQUÊNCIAS E OUTRAS CURIOSIDADES — FINAL



Há inúmeras teorias sobre a renúncia de Jânio, mas parece ser consenso que o ex-presidente apostava em fortes manifestações, com o povo clamando nas ruas por seu retorno ao poder. Não à toa, ele apresentou sua carta-renúncia e voou para São Paulo (levando a faixa presidencial), onde permaneceu durante horas, aparentemente esperando uma reação de apoio que não aconteceu — fala-se que um arranjo urdido nos bastidores teria impedido que a população soubesse onde ele estaria quando a notícia da renúncia fosse divulgada.

Aceita a renúncia, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente a chefia do Executivo — já que os militares vetaram a ascensão do vice, João Goulart, devido a sua fama de “comunista”. Mazzilli foi apenas uma figura decorativa, já que os três ministros militares do governo Jânio formaram uma junta provisória e presidir o Brasil até a adoção do regime parlamentarista, que foi implementado duas semanas depois e reduziu os poderes presidenciais, levando os militares a permitir que Jango assumisse a presidência.

Curiosidades: 1) O primeiro Primeiro-Ministro do parlamentarismo tupiniquim foi o político mineiro Tancredo de Almeida Neves, que dali a 24 anos, seria eleito o primeiro presidente civil pós-ditadura militar. 2) No ano seguinte a sua renúncia, Jânio disputou novamente o governo de São Paulo, mas foi derrotado por seu velho desafeto Ademar de Barros.

A experiência parlamentarista foi revogada por um plebiscito em 6 de janeiro de 1963. Duas semanas depois, Jango assumiu a presidência — que era sua por direito desde a renúncia de Jânio —, mas foi deposto pelo golpe de 1964, que deu início à ditadura militar que só terminaria em janeiro de 1985, durante o governo do general João Figueiredo, com a vitória de Tancredo Neves (MDB) sobre Paulo Maluf (ARENA) por 480 a 180 votos de um colégio eleitoral composto de senadores, deputados federais e membros das assembleias legislativas estaduais.
 
Observação: Segundo a versão oficial, uma diverticulite obrigou Tancredo a ser submetido a uma cirurgia de emergência 12 horas antes da cerimônia de posse. Também oficialmente, o mineiro foi declarado morto 38 dias e sete cirurgias depois — por uma ironia do destino, no feriado de Tiradentes, o “mártir da independência”. Figueiredo se recusou a passar a faixa ao vice, José Sarney, de quem se tornara inimigo desde que o ex-presidente da ARENA e representante do regime militar no Congresso deixara o partido governista e se juntara à oposição. “Faixa a gente transfere para presidente. Não para vice, esse é um impostor”, dizia Figueiredo, que deixou o Planalto assim que a votação no Congresso foi encerrada. Por outro lado, a mágoa que o último presidente da ditadura militar guardava do político maranhense era bem menor que a resistência da caserna a Ulysses Guimarães.  

Com a eclosão da ditadura, Jânio teve os direitos políticos cassados e só tornou disputar uma eleição em 1985, quando derrotou o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Eduardo Matarazzo Suplicy e se elegeu prefeito de São Paulo. Sua vitória surpreendeu a todos, inclusivo os institutos de pesquisa, tanto que o pomposo grão duque tucano se deixou fotografar aboletado na cadeira de prefeito, o que levou Jânio a desinfetá-la ao tomar posse, dizendo: "Estou desinfetando a poltrona porque nádegas indevidas a usaram".

Em sua derradeira empreitada político-administrativa, Jânio repetiu seus lances populistas habituais: pendurou uma chuteira em seu gabinete (para ilustrar o suposto desinteresse em prosseguir na política), proibiu jogos de sunga e de biquínis fio-dental no Parque do Ibirapuera, forçou a demissão de alunos homossexuais da Escola de Balé do Teatro Municipal, aplicou multas de trânsito pessoalmente e fechou os oito cinemas que exibiriam no ano seguinte (após o término de seu mandato, portanto) o filme A Última Tentação de Cristo, por considerá-lo desrespeitoso à fé cristã.

Ao mesmo tempo em que criava factoides midiáticos estapafúrdios, o ex-presidente investiu na iluminação e pavimentação de centenas de quilômetros de vias públicas, criou a Guarda Civil Metropolitana, abriu os túneis da Avenida Juscelino Kubitschek, inaugurou o Corredor Santo Amaro, reformou o Vale do Anhangabaú, restaurou bibliotecas públicas e teatros (entre eles o Teatro Municipal) e concebeu pessoalmente um sistema viário de múltiplos túneis que conectavam avenidas vitais de São Paulo — obras caríssimas e complexas que foram interrompidas por sua imprestável sucessora, mas retomadas e concluídas pelo alcaide seguinte. Nesse meio tempo, ele se licenciou diversas vezes para cuidar tanto de sua saúde quanto da de sua mulher, Eloá Quadros (falecida em 1990). 

Jânio terminou sua derradeira gestão com apenas 30% de aprovação e apoiou a candidatura de João Leiva (em detrimento de João Mellão Netto e Marco Antonio Mastrobuono, que integraram seu secretariado). Mas quem venceu o pleito foi a petista paraibana Luíza Erundina (que, juntamente com Celso Pitta e Fernando Haddad, compõe o trio dos piores alcaides da história de São Paulo). Visivelmente abalado com a vitória do PT, o prefeito em final de mandato viajou para Londres (a pretexto de passar as festas de final de ano na cidade que tanto admirava), deixado a cargo do secretário Claudio Lembo a incumbência de representá-lo na cerimônia de posse da petista.

Foi também devido à saúde debilitada que Jânio declinou do convite do PDS para disputar a presidência em 1989 e anunciou sua aposentadoria definitiva da política. Após a morte de dona Eloá, passou o tempo de vida que lhe restava entre casas de repouso e quartos de hospitais, e três derrames cerebrais mantiveram-no em estado vegetativo durante meses; Em 16 de fevereiro de 1992, ele finalmente passou desta para melhor, deixando de herança cerca de 70 imóveis — sua única filha, Dirce “Tutu” Quadros, chegou a denunciá-lo por corrupção, e ela parecia saber das coisas: durante a Operação Castelo de Areia, a PF revelou que Jânio tinha US$ 20 milhões depositados na Suíça em uma conta secreta.

Agora a cereja do bolo: Em agosto de 1991, exatos 30 anos após sua renúncia, sabendo que não lhe restava muito tempo de vida, o ex-presidente confidenciou ao neto os verdadeiros motivos de sua renúncia, e Jânio Quadros Neto os revelou em entrevista concedida ao Fantástico em 1999. 

Como quem acompanhou atentamente esta sequência deve ter concluído, a renúncia foi uma tentativa de golpe com o propósito de reassumir ungido pelo povo e, portanto, com mais poderes, mas as palavras que Jânio usou para explicá-la ao neto (depois de definir a presidência como “a suprema ironia, pois por um lado era um inferno, mas por outro era melhor que um orgasmo”) foram as seguintes:

“A minha renúncia era pra ter sido uma articulação. Eu nunca imaginei que seria de fato aceita. Tudo foi muito bem planejado, organizado. Eu mandei o vice-presidente [Jango] em uma visita oficial à China, o lugar mais longe possível. Assim ele não estaria no Brasil para assumir no meu lugar ou fazer articulações políticas.

Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência e pensei que os militares, os governadores e principalmente o povo jamais aceitariam minha renúncia. Pensei que iriam exigir que eu ficasse no poder, porque Jango era inaceitável para a elite. Achei também que era impossível que ele assumisse porque todos iriam implorar para que eu ficasse.

Renunciei no Dia do Soldado porque queria sensibilizar os militares, conseguir o apoio deles. Imaginei que o povo iria às ruas seguido pelos militares. Os dois me chamariam de volta. Achei que voltaria para Brasília com glória.

Ao renunciar, eu pedi um voto de segurança a minha permanência no poder, porque isso é feito frequentemente pelos primeiros ministros lá na Inglaterra. E fui reprovado. Deu tudo errado.

A renúncia foi uma estratégia política que não deu certo e também foi o maior fracasso político da história republicana do país, o maior erro que cometi. E o país pagou um preço muito alto."

sexta-feira, 17 de julho de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — OITAVA PARTE


Plantar populistas no poder sempre foi a melhor maneira de colher consequências indesejáveis. Mas seria preciso ter bola de cristal para prever que Jânio Quadros, eleito presidente em 3 de outubro de 1960 e empossado em 31 de janeiro de 1961, renunciaria dali a pouco mais de seis meses, e que, ao fazê-lo, pavimentaria a estrada que levaria ao golpe de 1964, aos 21 anos de ditadura militar e a quase 3 décadas sem eleições diretas para presidente da República.

Jânio sempre foi evasivo quanto aos motivos pelos quais deixou o gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto menos de 7 meses depois de lá se ter aboletado, sempre demonstrou desconforto quando questionado a respeito, o que alimentou teorias conspiratórias sobre o que, em última análise, não passou de mais um do atos espetaculosas do homem da vassoura (Jânio respaldou sua campanha na promessa de "varrer a corrupção" e adotou como símbolo uma vassoura). Certa vez, durante um almoço em casa de amigos, uma convidada suscitou o assunto, e ele respondeu: “Renunciei porque a comida no Palácio da Alvorada era uma droga como é aqui, e a companhia era quase tão ruim quanto a companhia daqui”. E foi-se embora sem sequer se despedir do anfitrião.

Mas bastava ler as entrelinhas para inferir que o verdadeiro propósito do então presidente foi causar comoção popular e forçar o Congresso a lhe pedir que reconsiderasse. Tivesse o plano funcionado, Jânio muito provavelmente se sentiria fortalecido e teria posto em prática o plano do autogolpe, que lhe permitiria governar sem ser "incomodado" pelo Legislativo. Vale lembrar que a cúpula militar via em João Goulart, o vice eleito com o apoio da esquerda (naquela época, os cargos de presidente e vice eram preenchidos mediante votações independentes), um herdeiro do getulismo e a porta de entrada para o comunismo no Brasil.

Jânio acertou quanto ao vice e os militares, mas enganou-se em relação ao Congresso, que não só aceitou sua renúncia como se aproveitou do fato de Jango estar em missão na China para nomear presidente interino o deputado Ranieri Mazzilli  (então presidente da Câmara Federal), enquanto os ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica formaram uma junta informal para obstar a posse de Jango. Como o que está ruim consegue piorar, a tramoia acirrou os ânimos e aprofundou a crise a tal ponto que foi preciso aprovar a toque de caixa uma emenda constitucional para instituir o parlamentarismo e empossar Jango como Chefe de Estado (ou seja, como presidente decorativo, com poderes reduzidos). 

A gestão de Jango seria marcada por diversas turbulências. A fase parlamentarista de seu governo durou 14 meses e teve três primeiros-ministros — Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes de Lima. O Brasil vivenciou ingerências presidenciais nas atividades dos gabinetes ministeriais e decisões unilaterais do Congresso, não raro em total desacordo com o primeiro-ministro. Em janeiro de 1963, após a antecipação do plebiscito marcado originalmente para 1965, o presidencialismo foi restabelecido, mas, devido a diversos fatores que não vêm ao caso neste momento, não foi a panaceia que muitos esperavam. Jango ganhou poderes de chefe de governo, mas meteu os pés pelas mãos e perdeu sua base de apoio (composta majoritariamente por partidos ligados a interesses de latifundiários). Os EUA, que o consideravam "muito à esquerda", passaram a financiar conservadores e reacionários para desestabilizá-lo politicamente, ao mesmo tempo que parte da ala militar defendia a implementação de uma ditadura para pôr ordem no galinheiro.

Em 1964, politicamente emparedado e sem condições de levar adiante suas reformas, Jango resolveu guinar de vez à esquerda, e no célebre discurso da Central do Brasil, em 13 de março, reafirmou publicamente seu compromisso de realizar a qualquer custo as Reformas de Base. A resposta conservadora não se fez por esperar: seis dias depois, meio milhão de pessoas mobilizadas por grupos direitistas realizaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, pedindo a tomada do poder pelos militares.

Na virada de 31 março para 1º de abril de 1964 (que coincidentemente é o dia dos tolos), um levante iniciado em Juiz de Fora avançou para o Rio de Janeiro. Jango foi instado por Leonel Brizola — seu cunhado — a resistir, mas negou-se para evitar uma guerra civil. O golpe militar foi completado no dia 2 de abril, quando Auro de Moura, presidente do Senado, declarou vaga a presidência da República. Dias depois, uma vez decretado o Ato Institucional nº 1 para embasar o que viria a seguir, o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco assumiu a presidência. 

Começavam, então, os célebres anos de chumbo, que perdurariam até 1985.

Continua no próximo capítulo...

quinta-feira, 23 de maio de 2019

ENTRE JÂNIOS E BOLSONAROS



Depois que Jair Bolsonaro desistiu de participar das manifestações que articulou com a mão do gato, o assunto meio que esfriou. O acordo entre o Planalto e a Câmara para a aprovação da medida provisória que reduziu o número de ministérios também botou água na fervura, a despeito de Rodrigo Maia e o líder do governo na Câmara terem ficado de mal. É curioso que fatos dessa natureza — que em outras circunstâncias não mereceriam sequer meia dúzia de linhas no jornal — assumam tamanhas proporções, derrubem o Ibovespa e façam a cotação do dólar disparar. Mas é o retrato do país em que vivemos; não há o que fazer senão esperar que seja uma fase passageira e que tudo volte ao normal em breve.

O folhetim Flávio Bolsonaro/Fabrício Queiroz também ganhou novas nuances em seus novos capítulos, notadamente após a autorização da quebra do sigilo bancário dos envolvidos. O filho do pai, que nega ter culpa nesse cartório, mostra-se inconformado com a investigação — o que é causa espécie, considerando que ela é fundamental para afastar quaisquer suspeitas de ilicitudes, como a prática da rachadinha em seu gabinete na Alerj e sua evolução patrimonial incompatível com seus proventos de parlamentar e sócio de uma lojinha de chocolates. Supondo que as investigações apontem Queiroz como o único responsável pelos malfeitos, tornar-se-á verossímil a alegação de que o erro de Flávio foi ter confiado demais no ex-auxiliar. Se nada existe que o desabone, ele deveria incentivar a devassa nas suas movimentações financeiras — quanto mais ampla, rigorosa e transparente ela for, mais convincentes serão seus resultados.

Segundo Ricardo Noblat, zero um anda uma pilha de nervos — o que é compreensível: para qualquer cidadão, mesmo que inocente, ser investigado é uma aporrinhação. Mas confrontar a Justiça certamente não é a melhor estratégia. Aliás, esse foi o maior erro cometido por Lula desde que seus rolos foram denunciados, e parece que o filho do capitão parece decidido a seguir o mesmo caminho trilhado pelo petralha.

Condenado em duas das oito ou nove ações criminais em que figura como réu — numa delas por oito juízes de três instâncias do Judiciário —, o sacripanta de Garanhuns segue preso em Curitiba, de onde comanda uma agremiação criminosa que chama de partido e, de uns tempos a esta parte, concede entrevistas a torto e a direito. Nem o próprio PT aguenta mais tanta parlapatice. Gente que cuida da comunicação no partido acha que é hora de Lula silenciar, sobretudo no que tange ao Judiciário e ao governo Bolsonaro.

Observação: Michel Temer também protestou inocência quando Lauro Jardim trouxe a lume sua conversa de alcova com o moedor de carne bilionário dono da JBS, disse que “o inquérito no STF seria o território onde surgiriam todas as explicações”, e que seria feita “uma investigação plena e muito rápida para os esclarecimentos ao povo brasileiro”. Ato contínuo, fez o diabo para barrar as investigações e penhorou até as cuecas (as nossas cuecas) para comprar votos das marafonas do Congresso. Isso impediu que ele fosse afastado, mas não de, cinco meses depois de transferir da faixa para o presidente do turno, tornar-se réu em seis processos e ser preso preventivamente em duas oportunidades (até agora). A diferença é que Lula tem um partido que o defende e algum apoio popular (menos do que imaginou, mas tem), ao passo que Michel Temer não tem ninguém que levante a voz para defendê-lo, a não ser seus (bem pagos) advogados.

Voltando a Flávio Bolsonaro, antes da quebra do seu sigilo, ele tentou por duas vezes barrar a investigação do Ministério Público alegando que ter privilegiado porque se elegeu senador. Não funcionou. Agora, tenta se esconder à sombra do pai ao afirmar que o verdadeiro alvo da Justiça não é ele, mas sim o presidente. É uma jogada primária que, além de falta de imaginação, denota fraqueza, embute um pedido de socorro à instância invocada e acarreta descrédito. Embora tenha afirmado ao filho que não o protegerá, o presidente costuma dizer que filho é filho, coisa de sangue, e que jamais conseguirão separá-los deles. Com tal comportamento, ele se arrisca a afundar seu governo — como se não bastasse tudo o mais que ele vem fazendo nesse sentido, a pretexto de testar seus limites, como no incitamento às manifestações convocadas por seus apoiadores, que, mesmo sob o manto da democracia e da liberdade de expressão, é mais condizente com ditadores que precisam mostrar força popular — como Nicolas Maduro na Venezuela. Mas parece ser da natureza do presidente esticar a corda e soltá-la quando sente que ela vai arrebentar, como comprovam suas constantes “idas e vindas” em relação a medidas polêmicas, rejeitadas pela opinião pública ou por líderes políticos (veja-se o recuo no decreto de liberação do porte de armas).

Nas visão de Merval Pereira, um presidente democraticamente eleito há cerca de cinco meses não precisa insuflar manifestações de apoio popular, a não ser que se sinta desconfortável com as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. Daí a mobilização da militância ser contra o Congresso, o Judiciário e a Imprensa — justamente as instituições que têm como finalidade precípua impedir que o Executivo exorbite de seus poderes, sobretudo num regime presidencialista que dá preponderância quase imperial ao presidente da República.

Como macaco velho não mete a mão em cumbuca, Bolsonaro, apesar de avalizar publicamente os protestos, desistiu de participar pessoalmente e orientou seus ministros a fazerem o mesmo, retirando o comprometedor “ar oficialesco” da convocação. Desde o início, aliás, ele deveria ter se apartado de movimentos que querem emparedar os demais poderes do Estado. É certo que sua eleição deveu-se em grande medida a um nicho que se prepara para sair às ruas em sua suposta defesa, como se ele estivesse sendo submetido a “forças terríveis” — quiçá as mesmas que levaram à renúncia de Jânio, que a exemplo do capitão era um líder populista e não se enquadrava nas limitações que a democracia de então lhe impunha. Vamos aos detalhes.

Jânio da Silva Quadros teve uma carreira meteórica: em sete anos passou de obscuro advogado e professor de Português a prefeito de São Paulo (1953), a governador (1954) e a presidente (1960) — eleito com 48% dos votos (na época não havia segundo turno). Renunciou sete meses depois, alegando motivos que até hoje dão margem a toda sorte de teorias conspiratórias. Parece ser consenso entre os historiadores que sua ideia voltar ao poder por aclamação popular, só que a estratégia não funcionou, mas jogou o país numa crise política que só seria debelada com a adoção do parlamentarismo e, de quebra, abriu a janela de oportunidade para o golpe de estado e a subsequente instalação de uma ditadura militar que durou mais de duas décadas (a despeito de os que gostam de reescrever a história afirmarem que ela nunca existiu). 

Bolsonaro, por seu turno, tenta usar o povo para não ter que sair, mas falemos mais pouco sobre seu paradigma de outrora, que foi o primeiro político a transformar o combate à corrupção em plataforma eleitoral. Usando como símbolo era a vassoura — para dar a ideia de que varreria a corrupção — e dono de um gestual histriônico e um português recheado de formas oblíquas, o político mato-grossense transformava cada comício em show. Ao longo de sua trajetória política, abriu vários inquéritos para apurar supostas irregularidades das gestões anteriores, enquanto insistia na tese de que para ele a política era um enorme sacrifício pessoal. Pura encenação.

Eleito deputado federal pelo Paraná em 1958, Jânio não compareceu a nenhuma sessão do Congresso, deixando claro seu notório desdém pelo Legislativo. Dois anos depois, representando o mesmo papel de candidato solitário que recebia apoio de partidos, e não como representante de partido, derrotou Teixeira Lott e nacionalizou seu discurso, passando de fenômeno paulista a fenômeno nacional. Em seus sete meses na Presidência, reforçou suas características mais conservadoras. Não teve problemas com o Congresso — aprovou tudo o que considerava importante —, mas fez um governo bipolar, adotando um programa econômico conservador e desvalorizou a moeda (fazendo a inflação subir), ao mesmo tempo em que implantava a política externa independente, rompendo com o alinhamento automático com os EUA em plena Guerra Fria, quando a questão cubana estava no auge. Paralelamente, buscava estabelecer uma relação direta com os governos estaduais e se imiscuía em questões irrelevantes, como os biquínis e as brigas de galo que chegou a proibir.

Mas o que parecia novo estava eivado do velho golpismo latino-americano, do desejo pelo poder absoluto. Jânio abandonou a presidência — alegando “forças terríveis” — num autogolpe que surpreendeu até mesmo os ministros militares, que não foram consultados, apesar de suas simpatias pelo autoritarismo janista. Ele esperava que sua renúncia não fosse aceita, e que um clamor popular exigisse seu retorno à presidência com amplos poderes políticos — ou seja, sem o Congresso para incomodá-lo. Puro delírio. Jânio deixou a base aérea de Cumbica solitário e rumou — a bordo de um DKW — para o litoral, de onde partiu dias depois para a Inglaterra, deixando no seu rastro uma grave crise política, que só seria resolvida com a posse de Jango, em setembro de 1961, sob regime parlamentarista.

Como o lobo perde o pelo mas não larga o vício, Jânio se candidatou no ano seguinte ao governo de São Paulo, mas foi derrotado por Adhemar de Barros. Teve os direitos políticos cassados pela ditadura militar, mas recuperou-os em 1974. Em 1978, manifestou a intenção de concorrer à sucessão de Paulo Maluf (um gatuno de marca maior, que hoje cumpre pena em prisão domiciliar) ao governo do estado de São Paulo. Filiou-se ao PTB, mas deixou o partido sete meses depois para ingressar no PMDB. Como sua filiação foi recusada pela executiva nacional da sigla, voltou ao PTB, lançou-se candidato a governador de São Paulo em 1982, mas perdeu para Franco Montoro. Com o fim da ditadura, declarou apoio a Tancredo Neves e venceu Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy na disputa pela prefeitura de São Paulo, contrariando os prognósticos dos institutos de pesquisa. FHC, na condição de primeiro colocado nas sondagens eleitorais, chegou a tirar uma foto sentado na cadeira de prefeito de São Paulo (que foi publicada pela Revista Veja). Na cerimônia de posse, Jânio fez questão de ser fotografado com um tubo de inseticida nas mãos para, segundo ele, desinfetar a poltrona porque nádegas indevidas a usaram".

Em sua derradeira empreitada político-administrativa, o homem da vassoura repetiu seus lances populistas habituais: pendurou uma chuteira em seu gabinete (para ilustrar o suposto desinteresse em prosseguir na política), proibiu o uso de sunga e de biquini fio-dental no Parque do Ibirapuera (onde ficava a sede da prefeitura), obrigou a direção da Escola de Balé do Teatro Municipal a expulsar alguns alunos tidos como homossexuais, mandou publicar no Diário Oficial do Município os “bilhetinhos” que enviava a seus assessores, aplicou multas de trânsito pessoalmente, posou para a imprensa com a camisa do Corinthians e fechou os oito cinemas que iriam exibir o filme A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, por considerar a obra desrespeitosa à fé cristã.  

Jânio adotou posturas autoritárias em diversas situações. Seu governo foi marcado por insatisfações de vários setores do funcionalismo público, materializadas através de greves e protestos nas proximidades de seu gabinete, aos quais quase sempre respondia com demissões em massa. Também se mostrou inflexível diante de manifestações de movimentos sociais (como o MST). Criou a Guarda Civil Metropolitana para, segundo ele, reforçar o policiamento na cidade, mas seus adversários o acusavam de utilizá-la como mais um de seus instrumentos de repressão. Afastou-se diversas vezes do cargo para cuidar tanto de sua saúde quanto da de sua mulher, Eloá Quadros (falecida em 1990). Ao fim da gestão, quando já se encontrava desgastado perante a opinião pública (apenas 30% dos paulistanos aprovaram sua administração), foi acusado pelo então vereador Walter Feldmann de manter uma conta bancária na Suíça. Nas eleições de 1988, apoiou João Leiva, embora Mellão Neto e Mastrobuono, integrantes de seu secretariado, disputassem a sucessão. Deixou o cargo dez dias antes do final do mandato para passar o réveillon em Londres (cidade pela qual ele era apaixonado), depois de incumbir seu Secretário dos Negócios Jurídicos, Cláudio Lembo, de transferir o bastão para a petista Luíza Erundina — talvez a maior calamidade travestida de alcaide paulistano que esta cidade já viu.

Com a saúde debilitada — em parte devido à manguaça, de que era fã incondicional —, Jânio declinou do convite do PSD para disputar a presidência da República em 1989 e apoiou o caçador de marajás — um populista como ele, como viríamos a descobrir mais adiante. Naquele mesmo ano, anunciou sua aposentadoria definitiva da política. No ano seguinte, a morte da esposa contribuiu para agravar ainda mais seu estado de saúde, levando-o a passar os últimos meses de vida entre casas de repouso e quartos de hospitais. Acabou falecendo no Hospital Israelita Albert Einstein, em 16 de fevereiro de 1992, em estado vegetativo decorrente de três derrames cerebrais.