Guindado à Presidência com a promessa demagógica,
autoritária e irrealizável de livrar o Brasil dos grilhões do presidencialismo
de coalizão, o protagonista do maior estelionato eleitoral da história desta
banânia (sorry, Dilma) e pior presidente desde a democratização (sorry
again, Dilma) acabou entregando ao Centrão "a alma de seu
governo", o que, de certa modo, foi uma volta às origens: desde que
ingressou na vida pública, Bolsonaro foi filiado ao PDC, PDC,
PP (duas vezes), PPR, PPB, PTB, PFL, PSC
e PSL, todos do assim chamado "Centrão" (faltam PCC e o
PQP, mas isso é outra conversa).
Em novembro de 2019, devido a desentendimentos com Luciano
Bivar, o sultão do bananistão deixou o laranjal para plantar o Aliança pelo
Brasil. Mas faltou estrume (a Justiça Eleitoral exige 492 mil assinaturas
para a criação de um partido, e ele conseguiu somente 154 mil) e o projeto foi
pra ponte que partiu. Desde então, sua alteza irreal flertou com uma dúzia de
partidos (todas do Centrão), até se decidir finalmente a trocar alianças com o PL
do mensaleiro e ex-presidiário — a quem ele chamava de “corrupto
e condenado” e mandou pra puta que pariu no domingo 14, e de quem ouviu
(leu, melhor dizendo) um retumbante "vá
tomar no cu". Mas a DR acabou superada e o enlace, que
havia sido suspenso, ficou para o final
da tarde de hoje, com direito a juras de amor eterno e fidelidade
imorredoura. Glória a Deus, como diria o folclórico Cabo Daciolo.
Bolsonaro cresceu o olho para o Palácio do Planalto durante
o desgoverno Dilma. Em 2014, o então deputado federal disse ao
jornal O GLOBO que pretendia disputar
a Presidência e que a página "Jair Bolsonaro Presidente
2014", criada no Facebook por "militantes da
direita e apoiadores", já contava com mais de 12 mil seguidores (na
época, o perfil oficial do então deputado tinha mais de 340 mil
admiradores). Em 2015, ele já aparecia nas pesquisas com 4% das intenções
de voto. Em 2016, subiu para 7% em 2016 e para 15% no ano seguinte.
Para minimizar os efeitos da pecha de sectário e da notória
falta de conhecimento em relação a temas importantes para alguém que aspirava a
comandar o país, o parlamentar passou a modular o discurso e terceirizar a
elaboração de propostas em algumas áreas cruciais. Faltou combinar com Ciro
Nogueira — presidente do PP —, que sempre fugia do assunto.
Após a reeleição de Dilma, o capitão trocou
o PP pelo PSC, que também lhe negou legenda para disputar a
Presidência. Em 2017, ele finalmente compreendeu que teria mais chances numa
sigla menor, e, depois de flertar com o nanico PEN, acabou
filiando-se ao PSL. O resto é história recente.
Para provar que era amigo do mercado e obter o apoio dos
empresários, o estatista que acreditava em Estado grande e intervencionista,
que sempre lutou por privilégios para corporações que se locupletavam do Estado
havia décadas foi buscar Paulo Guedes, que embarcou em uma canoa
que deveria saber furada. Para provar que era inimigo da corrupção e obter
o apoio da classe média, o adepto das práticas da baixa política e amigo de
milicianos foi buscar Sergio Moro, que embarcou em uma canoa que
deveria saber furada. Para obter o apoio das Forças Armadas, o
ex-militar agressivo e falastrão, que foi enxotado da corporação por
indisciplina e subordinação, foi buscar legitimidade em uma fieira de generais,
que embarcaram em uma canoa que deveriam saber furada.
Uma vez eleito e empossado, Bolsonaro obrigou Moro a
reverter uma nomeação, tomou-lhe o Coaf, forçou-o a substituir um
superintendente da PF, esnobou seu projeto contra a corrupção e,
vendo que o ex-juiz não cumpriria a missão de blindar sua prole (*),
obrigou-o a engolir dúzias de sapos e beber toda a água da lagoa. O auxiliar
fingia não ver, tentava negociar, mas acabou abandonando a canoa para salvar o
prestígio que ainda lhe restava.
(*) Em três casamentos, o presidente que
acabou com a Lava-Jato porque “não
tem mais corrupção no governo” teve quatro
filhos e uma
filha. Desses, somente Laura, que tem 11 anos, não é
alvo de investigações. Afora o célebre caso
de Zero Um e as rachadinhas, a PF e
o Ministério Público apuram
suspeitas contra Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Renan Bolsonaro,
que incluem tráfico de influência, contratação de funcionários fantasmas e
envolvimento na organização de manifestações que pediram o fechamento de
instituições como o Congresso e o Supremo.
Bolsonaro desautorizou Guedes incontáveis
vezes, sabotou seus projetos e, com o Centrão, enterrou de vez a
agenda econômica. Em vez de aprender com Mandetta, Moro e Teich como
sair da canoa antes de ela virar, o "superministro" espelhou-se
em Pazuello e virou uma espécie de dublê de bonifrate e zero à
esquerda.
Já as Forças Armadas, cujo comportamento
irrepreensível ao longo das últimas três décadas desfez a imagem negativa
associada aos 21 anos de ditadura, perdeu boa parte da admiração e do
reconhecimento dos brasileiros. Alguns fardados de alta patente parecem ter
desaprendido que, num governo civil, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica não
devem obediência cega ao "comandante-em-chefe", e que tampouco é seu
papel salvar o presidente de turno. Sua lealdade maior é com o país. Já passou
da hora de os militares desembarcarem dessa canoa furada.
É inegável que a popularidade do mandatário e a aprovação de
sua gestão venham afundando como martelo sem cabo. Mas seria leviano declará-lo
carta fora do baralho. O sultão do bolsonaristão tem fichas próprias para
jogar, com os instrumentos que lhe dão o cargo e a base de apoio que ainda o
mantém com chances de passar ao segundo turno das eleições de 2022. Para além
disso, é preciso ter clareza sobre a profundidade das mudanças sociais e
políticas provocadas por sua gestão (calamitosa, mas enfim...) e pela
emergência do bolsonarismo: o novo protagonismo das Forças Armadas, a
politização de setores das polícias militares, a articulação de grupos e redes
de extrema direita, tudo isso numa sociedade que se polariza e empobrece, com
mais desigualdade.
Embora as características mais visíveis do presidencialismo
multipartidário sejam aparentemente as mesmas, o terreno institucional e o
ambiente sociopolítico nos quais o sistema opera sofreram alterações
importantes nos últimos anos. Para pior. O Centrão e o bolsonarismo são formas
distintas do proverbial atraso brasileiro. Não há dúvidas de que o bolsonarismo
seja mais virulento e nocivo à democracia. É fato que a dominância do Centrão
reduz os riscos no curto prazo, mas não se deve perder de vista a possibilidade
de sua simbiose com o bolsonarismo — hipótese em que o Brasil estaria condenado
a seguir, com maior velocidade, no plano inclinado de um gradual e inseguro
declínio econômico e social, com muita instabilidade política. Presumir que a
democracia poderá escapar sã e salva de um processo como esse é, no mínimo,
imprudente.
Se vitoriosa, a fórmula "bolsonarismo atenuado +
Centrão guloso" representaria o adeus — talvez definitivo — a qualquer
aspiração maior de fazer do Brasil um país desenvolvido no sentido amplo do
termo. Perderíamos o bonde da história, que se acelera puxado por uma nova onda
de transformações tecnológicas, sob o acicate da mudança climática, que nos
transformou em párias internacionais. Diante do que está em jogo, é hora de
olhar de frente os enormes riscos que nos desafiam e evitar o autoengano com
alívios de curto prazo.
O Brasil tem lideranças lúcidas e antenadas em diversos
meios. O desafio é dar expressão política a essas forças. Primeiro, é preciso
compor uma ampla frente política e social para evitar a reeleição de Bolsonaro
e qualquer tentativa de desestabilização institucional. Depois, é preciso
adotar uma prudente ousadia nas reformas do sistema político brasileiro. É sem
dúvida relevante melhorar o seu funcionamento à luz da governabilidade. Nessa
linha, importa reduzir a propensão à fragmentação partidária — no que vínhamos
avançando com o fim das coligações proporcionais, agora ameaçado, e com a
introdução da cláusula de desempenho —, bem como mitigar a tendência a crises
institucionais de custosa resolução, para o que a eventual adoção do
semipresidencialismo, em momento adequado, possa vir a ser um remédio.
Em vista do tamanho e da profundidade da crise da representação
política, é preciso ir além. Trata-se de romper com os mecanismos que se
autoalimentam e vêm fechando os partidos e a representação parlamentar para as
"forças vivas" da sociedade. Por que um número cada vez maior de
pessoas com vocação para a vida pública opta por ingressar em uma carreira da
área jurídica ou econômica do Estado, ou se engajar em uma ONG, em lugar de se
arriscar no ofício da política parlamentar? Não há resposta simples a essa
pergunta, mas ela passa necessariamente pelo rompimento com o virtual monopólio
das oligarquias partidárias sobre os polpudos recursos reservados ao
financiamento eleitoral. Ou, quem sabe, quebrar o próprio monopólio dos
partidos sobre a representação parlamentar, permitindo o lançamento de listas
cívicas, mas desde que os eleitos tenham de seguir regras que os obriguem a
funcionar como um grupo parlamentar no Congresso.
Essa ideia implica riscos para a
"governabilidade", mas tem o mérito de deslocar a ênfase do debate
para a dimensão da "representatividade" do sistema político e alargar
o campo da discussão sobre as reformas políticas. Sem abrir mão da prudência, é
preciso devolver algum encanto à política. Para isso não é preciso derrubar
muros na nossa arquitetura institucional, mas é indispensável reformá-la para
abrir mais o sistema político a novas formas de organização, expressão e
participação da sociedade, seja pela desobstrução dos canais existentes,
democratizando os partidos, seja pela criação de novos canais. Para fortalecer
a democracia representativa, é preciso renová-la. E esse objetivo não será
alcançado com a reeleição de Bolsonaro nem com a volta do lulopetismo
corrupto ao poder.
Seria preferível ver Bolsonaro afastado da
Presidência e julgado pelos crimes que cometeu durante seu mandato. Em outras
palavras, a única saída realmente democrática para o Brasil seria o impeachment
do sociopata. O problema é que ela é impedida pelos cleptocratas do Centrão. Se
Bolsonaro realmente presidisse alguma coisa, poder-se-ia dizer que, nos
moldes do acerto vigente, "o capetão preside e o Centrão governa e dita
as regras da reeleição", como escreveu Jose Casado em sua
coluna em Veja.
Bolsonaro
preside, o Centrão governa. É regra não escrita, mas confirmada por dois
fatos relevantes nos últimos 80 dias. Em setembro, sob forte pressão do
agrupamento que é seu esteio parlamentar, o mandatário recuou do confronto
aberto com o Supremo e foi chorar as pitangas na barra da saia do ex-presidente
Michel Temer, numa carta de rendição que, provavelmente, nem o próprio
vampiro do Jaburu assinaria.
Na manhã da última sexta-feira, o capitão anunciou que não
haveria restrições em aeroportos ao turismo antivacina. À tarde, ouviu líderes
do Centrão. Ao anoitecer estava decidida a exigência do “passaporte
vacinal”, como já recomendara a Avisa. Ciro Nogueira, chefe
da Casa Civil e presidente licenciado do PP, foi quem fez o anúncio — via
redes sociais. Ontem, a lista de restrições a viajantes foi ampliada.
Bolsonaro se esforça para desmentir os críticos que o
acusam de agir como um demente. Ao ignorar recomendações da Anvisa para
proteger o Brasil contra o Ômicron, o presidente comprovou que não sofre
de insanidade, mas, sim, aproveita cada segundo dela. Há duas semanas, a Anvisa
fez circular pela cúpula do governo um par de ofícios sobre a conveniência de
reforçar o controle de fronteiras e aeroportos em reação ao aumento de casos de
Covid no exterior. Aconselhou, entre outras medidas, a exigência de
comprovante de vacinação. Bolsonaro deu de ombros.
Diante da confirmação de que uma nova cepa surgida na África
do Sul circula pela atmosfera à procura de encrenca, a Anvisa
recomendou, dessa vez em nota técnica trombeteada em público, o controle
rigoroso do desembarque de passageiros procedentes de seis países africanos. E
nada! Na véspera, por ordem do capetão, o ministro da Justiça afastou a
hipótese de exigir prova de imunização dos estrangeiros. "Vacina não
impede a transmissão da doença", declarou a sumidade. Dia seguinte,
discursando para a récua de descerebrados que se apinha defronte ao Alvorada, o
"mito" comentou o surgimento de "uma nova onda" de Covid.
Chamou de "loucura" a ideia de restringir voos internacionais. "Tem
que aprender a conviver com o vírus", disse.
Um detalhe encurta a distância que separa a teimosia de Bolsonaro
da estupidez. As recomendações da Anvisa estão baseadas na Lei 13.979
— sancionada pelo próprio Bolsonaro em 6 de fevereiro de 2020 —, que
prevê, no artigo 3º, que o governo pode adotar medidas excepcionais para o
"enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus". Estão enumeradas nesse
artigo oito providências. No item de número sete, lê-se o seguinte: "Restrição
excepcional e temporária de entrada e saída do país, conforme recomendação
técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
por rodovias, portos ou aeroportos." Quer dizer: Bolsonaro
ignora recomendações sanitárias inspiradas numa lei sancionada por ele.
Repetindo: em vez de cumprir a lei que surgiu para
supostamente proteger os brasileiros durante a pandemia, o capitão prefere
ignorar o que assinou para manter sua aliança preferencial com o vírus. O
partido Rede Sustentabilidade pedirá ao STF que obrigue o mandatário a
seguir as recomendações da Anvisa. A exemplo do que vem ocorrendo desde
o início da pandemia, a corte o obrigará a fazer por imposição o que deixa de
realizar por opção.
Israel, Bélgica e Hong Kong já detectaram a nova variante.
Países da União Europeia, o Reino Unido e a Índia reforçaram o controle de
fronteiras e de viagens. A OMS realizou reunião de emergência. As
dúvidas quando à resistência da nova cepa às vacinas existentes derrubou os
mercados ao redor do mundo. No Brasil, o Ibovespa chegou a cair 4%. E Bolsonaro,
que costuma esgrimir uma hipotética preocupação com os efeitos da pandemia na
atividade econômica, continua ruminando o seu negacionismo.
Aos poucos, o brasileiro vai descobrindo, afinal, a
serventia da passagem de Bolsonaro pelo Planalto. Ele se consolida como
um extraordinário protagonista de tríades: o nascer do Sol, a morte e a próxima
estupidez do presidente. Descobre-se agora que há também no universo três
coisas irrecuperáveis: a pedra atirada, a denúncia adiada pelo Augusto Aras
e o prejuízo imposto ao Brasil por um presidente insano.
Como dito alhures, Bolsonaro marcou para esta terça, Dia
do Evangélico, seu casamento com o partido de Valdemar Costa Neto. PL
e PP são sócios no Centrão, que governa e, agora, também comanda
a campanha de reeleição.
Triste Brasil.
Com Josias de Souza