Em entrevista
reproduzida pela BBC Brasil, o coronel da reserva Marcelo Pimentel
Jorge de Souza disse que os militares voltaram ao poder para ficar, com ou
sem Bolsonaro. Segundo ele, os 17 generais que formam o Alto Comando do
Exército (dos quais 15 exercem cargos na Esplanada dos Ministérios ou em
estatais, autarquias e órgãos de fiscalização) formaram um “Partido Militar”
para eleger o ex-capitão, e assim chegar ao poder sem ruptura institucional.
O grupo
teria começado a se articular no início da década passada, em parte pelo fato
do país ser governado, então, por uma ex-guerrilheira. E foram eles que
procuraram Bolsonaro, não o contrário (um
registo do encontro está no canal no YouTube de Carlos Bolsonaro).
A candidatura do hoje
presidente foi cuidadosamente planejada para disfarçar o envolvimento do grupo.
Na escolha do vice, por exemplo, falou-se em Magno Malta, no príncipe Luiz
Philippe de Orléans e Bragança e na advogada Janaína Paschoal. Mas a
única dúvida era se seria o general Augusto Heleno ou o general Hamilton
Mourão — devido à idade do primeiro, optou-se pelo segundo.
Pimentel atuou junto com Santos Cruz em 2016,
supervisionando um grupo de trabalho do Estado Maior do Exército que era
orientado pelo general, que já havia passado para a reserva e mais adiante, assumiu
um cargo no primeiro escalão do Governo do capitão, no qual permaneceu por sete
meses, até ser demitido devido a ataques de Carlos Bolsonaro e apoiadores do presidente. “Talvez o Mourão passe para o segundo turno, talvez seja o Santos Cruz”,
especula o coronel. “Mas o Partido Militar vai estar no segundo turno no
ano que vem.”
O general Santos Cruz disse à reportagem que não quer comentar sobre as “divagações” de seu ex-subordinado, e o Exército e o Planalto não retornaram o contato da emissora.
Observação: Sobre a motociata do capetão, Santos Cruz assim se pronunciou: “A mentalidade anarquista do presidente age para destruir e desmoralizar as instituições, e banalizar o desrespeito pessoal, funcional e institucional. Junto com seguidores extremistas, alimenta um fanatismo que certamente terminará em violência.” Talvez fosse bom lhe dar ouvidos.
Pimentel diz ainda que a ida de Pazuello para
o Ministério da Saúde foi um erro de cálculo do Partido Militar: “Tentaram
fazer uma publicidade da capacidade do Exército brasileiro de resolver
problemas, pensando que os números iam cair, e quem estaria à
frente do ministério seria um general da ativa vendido como ‘o rei da logística’.”
A pandemia se agravou e Pazuello deixou o ministério muito
criticado e é alvo de investigação por causa do colapso do sistema de
saúde em Manaus. Ainda assim, virou secretário do presidente e discursou num
ato em apoio a seu governo. Na avalição do coronel, a
decisão do Exército de não punir Pazuello comprova a politização das
Forças Armadas. “Ficou estranha essa decisão, porque com indisciplina não
se transige. É a base da instituição.”
No sábado 12, o presidente promoveu outra “motociata”
e foi multado pelo governo de São Paulo por desrespeitar as leis sanitárias do
Estado. Como se não bastassem as aglomerações produzidas pelo comício, o
capitão transgrediu a lei ao andar numa moto com a placa oculta.
Adulterar placas, lembra o jornalista Guilherme Amado, viola o Código
Penal, que prevê pena
de três a seis anos de reclusão, além de multa, a quem comete esse tipo
de infração.
Observação: Durante a manifestação bolsonarista,
um motociclista perdeu o
controle, caiu e acabou derrubando outros participantes. Uma pessoa ficou deitada no asfalto esperando atendimento médico.
Ao contrário dos índices de aprovação de sua gestão, o presidente — que vestia
uma jaqueta bordada com seu retrato eu usava um capacete com a inscrição “presidente
Bolsonaro” — não caiu.
Ricardo Kertzman anotou em sua coluna na ISTOÉ que não deixa de ser curioso o nome da motociata do capetão ser Acelera para Cristo:
“Cristo? Milhares de irresponsáveis se aglomerando e espalhando o novo coronavírus jamais seria obra Dele? O Motoqueiro Fantasma é um anti-herói do bem. Renascido do fogo do inferno, retorna à Terra para combater o mal. Já o amigão do Queiroz (aquele miliciano que entupiu a conta da primeira-dama com 90 mil reais em ‘micheques’) é o próprio demônio encarnado. Sua missão é destruir, ofender, promover o ódio e a discórdia e, claro, espalhar vírus e causar mortes.
Em culto a si mesmo e à sua personalidade macabra, o devoto da cloroquina sequestra a imagem de Cristo e usurpa o cristianismo em causa própria. O rolê jamais foi para o mais pródigo dos filhos de Deus, e sim para o líder da seita fanática do bolsonarismo, que trajava uma camisa com sua própria foto e um elmo com seu próprio nome. Bolsonaro é tão lunático e tão psicopata que não me surpreenderia a equiparação a Cristo.
Certa feita, Lula, o meliante de São Bernardo, comparou-se a Deus. Essa espécie de gente acaba acreditando naquilo que seus devotos lhe oferecem, ou seja, a divindade sob forma humana (eu disse humana?). Mas, no final do dia, se deparam com a mediocridade e finitude que a imagem carcomida que o espelho atira em suas caras desavergonhadas.”
Bolsonaro cometeu diversos crimes de
responsabilidade, mas é protegido por um “escudo político” que inclui até Lula,
que prefere tentar derrota-lo nas urnas, avalia o professor de direito da
Universidade de São Paulo Rafael Mafei, autor do livro Como
Remover um Presidente — Teoria, história e prática do impeachment no Brasil.
Em entrevista
ao Estadão, Mafei afirma que o impeachment é um remédio
amargo que deve ser reservado como último recurso para proteger o país de um
presidente tirano ou criminoso que tenha conseguido vencer as eleições, mas vacilar na sua aplicação quando ele
for indispensável pode ter efeitos trágicos para a democracia.
Uma das hipóteses emergenciais nas quais o uso desse
instrumento seria necessário, segundo Mafei, é o exercício da
Presidência por Jair Bolsonaro. Não há, segundo ele, nenhuma dúvida
jurídica de que o presidente tenha cometido crimes de responsabilidade. Como
exemplos, Mafei cita a violação ao direito à saúde no contexto da pandemia
— que ficou ainda mais claro com os trabalhos da CPI do
Genocídio — e o fato de o mandatário agir de modo incompatível com a
dignidade, a honra e o decoro do cargo ao usar o poder comunicacional de sua
posição para agredir instituições, incitar comportamentos contrários à lei,
estimular indisciplina de instituições militares e a hostilidade entre
instituições militares e civis.
Cerca de 120 pedidos de impeachment dormitam placidamente
sobre a mesa do deputado-réu Arthur Lira, que se elegeu presidente da Câmara
com o apoio do chefe do Executivo e recursos do “orçamento
paralelo” (ou “Tratoraço”, como queiram). Lira não dará andamento a
nenhum deles (a exemplo de como fez seu antecessor) enquanto Bolsonaro
mantiver seu “escudo político” de apoiadores e seus adversários acharem que a melhor solução é derrotá-lo
nas urnas. Mas que respeito terão pelo TSE um presidente e uma matula de
apoiadores que não têm o menor respeito pelo STF? (Falo do Supremo
como instituição, porque a maioria dos togados... enfim, deixa pra lá).
Mafei apresenta em seu livro uma análise detalhada
dos impeachments de Collor e Dilma. O primeiro
serviu para o país estabelecer as regras do procedimento, mas teve um ar festivo, a despeito de o impeachment ser um grande trauma e ter um custo político
enorme. Quanto ao segundo, o escritor pondera que o termo “golpe”,
como usado pelos apoiadores da petista, é inadequado para analisar o processo, mas que as ilegalidades cometidas pela ex-presidanta poderiam ter sido
enfrentadas por meios menos traumáticos.
Remover do cargo um presidente descomprometido com as
instituições, perigoso para a sobrevivência e para a integridade delas, e que
não possa ser contido de outra maneira é, em última análise, permitir que o destino da democracia de um país fique rendido nas
mãos de um tirano ou de um criminoso que tenha conseguido vencer as eleições. Deodoro da Fonseca, que foi o primeiro presidente do
Brasil, vetou a Lei do Impeachment por achar que ela estava sendo
trabalhada pelos seus adversários para depô-lo. Quando o Congresso derrubou seu
veto, ele simplesmente dissolveu o Legislativo, como se o país ainda estivesse
no Império e ele fosse o imperador.
Observação: Ao longo de seus 130 anos de história
republicana, o Brasil teve 35 presidentes que chegaram ao poder pelo voto
popular, por eleição indireta, via linha sucessória ou por golpe de Estado.
Oito deles, a começar do primeiro, foram de alguma maneira apeados do poder.
No caso de Collor, quando a situação começou
a ficar insustentável, o parlamentarismo se apresentou com a alternativa, até porque a Constituição Cidadã,
promulgada em meio à ressaca da ditadura militar, pavimentara o caminho
para esse sistema de governo. Mas o plano não seguiu adiante, uma vez que Collor botou sua tropa de choque em campo para jogar pesado no Senado e derrotar a emenda parlamentarista.
Observação: O art. 2º Título X, no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, dispõe que: “no dia 7 de setembro de
1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou
monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou
presidencialismo) que devem vigorar no País.” Mais adiante, a emenda nº 2, de 25 de agosto de 1992, antecipou o
plebiscito para 21 de abril de 1993 e determinou que seus efeitos vigessem a
partir de 1º de janeiro de 1995. Mas faltou combinar com os burros, e aí
deu zebra — uma zebra que emprenhou e pariu o presidencialismo de
coalizão (ou de cooptação, como queiram).
É importante salientar que, quando o impeachment de Collor começou a ser cogitado, o
que se tinha era a lei de 1950 e o Brasil jamais havia vivenciado
um impedimento de chefe do Executivo (nem mesmo de governador de Estado). Quando
a Câmara aprovou a abertura do processo, o Senado não tinha ideia de como conduzi-lo,
e assim coube ao Supremo esclarecer as regras do jogo.
Num almoço que reuniu os
então presidentes do STF e do Senado, o ministro Sydney
Sanches entregou ao senador Mauro Benevides duas folhas com o rito
do impeachment, escrito quase que integralmente pelo ministro Celso de Mello, e disse: “Se vocês seguirem isso aqui, nós não vamos interferir em nada”.
O processo que resultou na renúncia de Collor (que foi julgado culpado e inabilitado politicamente por 8 anos) foi como que uma micareta cívica. Mas o impeachment não só é um processo traumático como
acarreta um custo político astronômico. Essa percepção é importante para evitar
que se lance mão da medida em situações que não a exijam. Por outro lado, se
ela for realmente indispensável, vacilar na sua aplicação pode ter efeitos
trágicos para o país. Nos anos 1970, quando o então presidente norte-americano Richard
Nixon renunciou para não ser cassado, um dos primeiros atos de Gerald
Ford foi perdoar o antecessor para pôr uma pá de cal sobre o assunto.
Mafei diz não ter dúvidas de que Bolsonaro
cometeu crimes de responsabilidade, sobretudo no contexto da pandemia. Segundo
ele, dois crimes estão claramente configurados. O artigo sétimo da Lei do Impeachment tipifica como crime de responsabilidade violar, patentemente, qualquer
direito social assegurado na Constituição — e a Constituição assegura o
direito social à saúde.
A CPI tem
evidenciado que o presidente claramente optou por sacrificar a saúde dos brasileiros e inviabilizar
políticas essenciais no combate à pandemia, pois, se a economia fosse mal, sua reeleição estaria comprometida, mas se a
saúde fosse mal e centenas de milhares de pessoas morressem (como de fato aconteceu), a culpa seria dos governadores e prefeitos. É por isso que Bolsonaro insiste na tese de que o
STF o afastou do comando do gerenciamento da crise. Somada a seu
discurso negacionista, essa falácia estimula seus apoiadores de raiz a demonizar qualquer um que defenda o distanciamento
social (e, por extensão, do uso de máscaras e demais medidas preventivas).
O segundo crime do capetão consiste na violação ao artigo
9º da Lei do Impeachment, no tocante a proceder de modo incompatível com
a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Bolsonaro falou muita bobagem em
seus 28 anos de deputância, mas o que disse como deputado tem um impacto insignificante se comparado ao das aleivosias que ele regurgita como presidente.
Observação: O dispositivo legal retrocitado visa justamente
impedir que o chefe do Executivo use seu poder retórico e verbal para agredir
instituições, incitar comportamentos contrários à lei, estimular indisciplina
de instituições militares e hostilidade entre instituições militares e
instituições civis. Se o comportamento de Bolsonaro não viola a
dignidade, a honra ou o decoro do cargo, esse crime precisa ser elidido da lei,
posto que não existe e, portanto, não é possível cometê-lo.
Bolsonaro é um criminoso político que
desafia o impeachment escudando-se em seus apoiadores e no fato de seus
adversários insistirem em derrotá-lo nas urnas. A estes, cumpre lembrar que a prudência recomenda não ferir
quem não se pode matar. Atores políticos que já estiveram no círculo de proximidade do presidente hoje
se bate pelo impeachment — caso de Alexandre Frota, Kim Kataguiri
e Joice Hasselmann, entre outros —, mas para isso seria preciso que todos se
unissem e que o impeachment em si fosse o “plano A”.
Derrotar Bolsonaro nas urnas vai muito além de fazer
campanha e apurar o resultado das urnas. Ele já deixou isso evidente ao fazer eco à falácia trumpista de fraude eleitoral e ao insistir no restabelecimento do voto impresso no Brasil (detalhe: nos EUA ainda se
utilizam cédulas). Demais disso, já cuidou de aparelhar a PF, a Abin,
a PGR, a AGU, a CGU, o Ministério da Saúde, as presidências
da Câmara e do Senado e as Forças Armadas.
Observação: Quem não se lembra do motim
da PM do Ceará, do descumprimento da Polícia Civil do RJ às restrições
impostas pelo STF a operações em comunidades, da ação truculenta da PM
pernambucana, que
disparou balas de borracha contra manifestantes que saíram às ruas para
protestar contra o governo, entre tantos outros exemplos?
A derrota de Bolsonaro nas urnas (que seria
providencial, mormente se o candidato vitorioso fosse outro que não certo ex-presidente
ex-presidiário e “ex-corrupto”) pode dar azo a uma batalha campal, uma situação
caótica muito mais grave que a invasão do Capitólio
pela caterva trumpista em 6 de janeiro passado. Alguém deveria dizer isso a Lula, Leite, Doria e a quem mais tencione disputar a presidência em 2022, até porque a janela de oportunidade do impeachment vai se fechando conforme o início oficial da disputa se aproxima.
Bolsonaro se preocupa apenas em proteger
a filharada, acirrar
sua militância e fazer
campanha pela reeleição — embora o fim da reeleição tenha
sido uma de suas principais promessas de campanha em 2018 — e nem se dá ao trabalho de fingir que respeitará o resultado das urnas se vier a ser derrotado em 2022. Repete ad nauseam que não confia no processo porque, em 2018, sua
vitória no primeiro turno não foi reconhecida, como relembrou na semana passada ao discursar para lideranças evangélicas em Anápolis (GO). Mas a pergunta que não quer calar é: se tem mesmo provas, por
que ele não as apresenta? Se havia mesmo um plano para roubar sua eleição, como explicar sua vitória no
segundo turno?
Numa das vezes em que tratou dessa acusação, o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do TSE, lamentou que o Brasil não
é mesmo um país para amadores, lembrando a famosa máxima de Tom Jobim. “Só aqui o ganhador reclama de fraude”, disse o magistrado.
Em sua carreira política, Bolsonaro venceu oito eleições
consecutivas, sendo seis delas já no esquema de voto digital. Mas coerência
nunca foi mesmo o forte do presidente, assim como as análises precisas sobre
eventos importantes ocorridos na história do Brasil. Fraudes existiam em
abundância no passado das velhas cédulas de papel, problema que foi eliminado
com as urnas eletrônicas, cuja confiabilidade é constantemente avalizada por
auditorias internas e organismos internacionais. “É como voltar aos tempos do
orelhão”, disse Barroso.
Essa insistência dos bolsonaristas em praticar o
terraplanismo eleitoral serve como tentativa diversionista em meio à atual
crise de popularidade do governo, e não passaria de mais uma aleivosia do lunático inquilino de turno do Planalto se não servisse de
combustível para movimentos antidemocráticos. Não por acaso, insuflados pelo
seu líder, os bolsomínions ameaçam armar um circo semelhante,
avisando que não vão reconhecer o resultado do pleito de 2022 sem a impressão
do voto. E o mito mitômano lhes dá corda: “Lula só ganha na fraude”.
Como salientou Mauricio Lima na Carta ao Leitor publicada na edição impressa de VEJA desta semana, não
bastasse o custo estimado em R$ 2 bilhões de reais para a adaptação do atual
sistema, a medida abre uma perigosa brecha para a judicialização das eleições,
com o potencial surgimento de hordas de derrotados exigindo nos tribunais a
recontagem dos votos. Em meio a tantos problemas da atualidade, tudo de que o
Brasil não precisa é ser assombrado por fantasmas do passado.