Dizem que o diabo sabe das coisas não por ser o diabo, mas
por ser velho. Dizem também que o vinho melhora com o tempo, mas, nas pessoas, a experiência que resulta do passar do tempo pode vir ou não
acompanhada da boa e velha sabedoria.
No que concerne ao eleitorado tupiniquim,
a falta de bom senso (decorrente, em grande medida, de falta de instrução) implica
a possibilidade (nada remota) de a próxima eleição presidencial ser uma edição
reeditada e piorada do pleito plebiscitário de 2018. A diferença é que, em 2018, não faltaram ao então candidato
pelo PSL "cabos eleitorais" de peso, como Lula na cadeia, a sensaboria do
bonifrate Haddad, a facada de Adélio Bispo (que livrou o ex-capitão
de participar dos debates), o impulsionamento espúrio da campanha nas redes
sociais, a confiança conquistada com Paulo Guedes na Economia e Sergio
Moro na Justiça, e assim por aí vai.
Sabíamos (ou deveríamos saber) que faltavam ao dublê de mau
militar e parlamentar medíocre competência, preparo e envergadura para presidir um mísero carrinho de pipoca, mas a perspectiva de ver o país comandado
(novamente) por um criminoso, então condenado e preso... Enfim, apostamos
nossas fichas em Bolsonaro e torcemos para a emenda não sair pior que o
soneto. Mas diz outro velho ditado que basta fazer planos para ouvir a
gargalhada do diabo.
Passando ao que interessa, Volodymyr Zelensky, que até poucas semanas atrás era para nós um ilustre desconhecido, nasceu no
sul da Ucrânia e passou quatro anos na Mongólia até retornar à cidade natal. Já
na faculdade, percebeu que tinha talento como humorista e apareceu com
frequência em programas televisivos. Mesmo tendo concluído o curso de Direito,
decidiu seguir carreira como comediante e produtor de TV. Em 2006, venceu a primeira
temporada da versão ucraniana do programa “Dança dos Famosos”. Seis
anos depois, sua produtora fechou contrato com a rede de TV ucraniana 1+1, de Igor
Kolomoysky — dos homens mais ricos do país — e a parceria fez com que Zelensky chegasse ao
cinema atuando em comédias românticas como “8 First Dates”.
Nesse entretempo, o então presidente ucraniano Viktor Yanukoyvich — um lambe-botas de Putin e corrupto de marca maior — se recusou a assinar um termo de aproximação com a União
Europeia. Os ucranianos protestaram, derrubaram dito-cuja e elegeram o
bilionário Petro Poroshenko, na tentativa de acabar com a corrupção. Uma
insurgência apoiada
por Putin resultou na anexação da península da Crimeia e deu azo a movimentos separatistas pró-russos. Em meio a tudo isso, Zelensky
filmava a série de TV Servant
of the People, que estreou em 2015. Tratava-se da história de um professor (interpretado pelo
próprio Zelensky) cujo discurso contra a corrupção feito em sala de
aula foi gravado por um de seus alunos, viralizou na Web e culminou com a
eleição do mestre-escola presidente da Ucrânia com 60% dos votos.
Enquanto os
ucranianos assistiam aos episódios, Putin se reunia com líderes mundiais em Minsk
para assinar um acordo de paz que poria fim aos combates, mas os
conflitos na Ucrânia foram retomados. Em dezembro de 2018, a vida imitou a
arte: Zelensky criou o partido “Servo do Povo”, anunciou sua candidatura à presidência e, mesmo enfrentando quase três dúzias de concorrentes, obteve 30% dos votos no primeiro turno (contra 16% de seu principal oponente) e venceu o favorito de Putin com 73%
dos votos.
Observação: Durante seu primeiro ano do mandato, Zelensky recebeu de Donald Trump, então presidente dos EUA, um pedido para investigar o filho de Joe Biden
em troca de apoio econômico. O telefonema rendeu a Trump um pedido de impeachment (que não foi aprovado no
senado).
Ao apresentar um plano de governo considerado vago, o mandatário ucraniano levou
para a vida real as críticas feitas na TV aos "oligarcas" da
política e defendeu a entrada de seu país na União Europeia e
na Otan — questão central do atual conflito com a Rússia. Diante da
pandemia de Covid, ele articulou uma estratégia nacional para limitar a
propagação do vírus, mas houve enfáticas restrições às medidas de bloqueio por parte dos que lhe faziam oposição. Paralelamente, a insurgência apoiada pela Rússia na região
de Donbass se transformou na maior ameaça à estabilidade europeia desde
a Segunda Guerra Mundial. E o resto é história recente: menos de um mês atrás,
Putin reconheceu a independência das regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk,
anulando o acordo de paz de Minsk e despachando “mantenedores da paz” as regiões em questão.
Zelensky
fez um apelo pela TV pedindo paz. Horas depois, Putin iniciou uma
“operação militar especial” na Ucrânia, com direito a bombardeios em várias cidades, inclusive na capital, Kiev. O líder ucraniano se recusou a abandonar o posto, pediu ajuda para defender seu país — chegando mesmo a dizer que “precisava “de munição, não de uma carona” — e se vem valendo de sua habilidade de comunicação para liderar seu povo. Putin achou que dominaria o país numa
questão de dias, mas os ucranianos resistiram e os líderes ocidentais vem
impondo um sem-número de sanções econômicas contra a Rússia. Desde então, Zelensky
sobreviveu a três tentativas de assassinato, passou a ser admirado
por sua coragem, inclusive por membros da oposição e segue pedindo à
União Europeia que considere urgentemente admitir a Ucrânia como membro do bloco.
Como se vê, num intervalo de poucos anos Zelensky foi de humorista de TV e novato político a presidente de um país em guerra contra uma das maiores potências militares do planeta, e agora vem unindo a nação com seus discursos e selfies em vídeo, dando voz à raiva
ucraniana na resistência à agressão russa. Enquanto Putin parece cada
vez mais errático — acusando a Ucrânia de "genocídio" nas repúblicas
separatistas de Donetsk e Luhansk e falando da necessidade de
"desnazificar" o país, o ex-comediante, cujos pronunciamentos
revelaram um lado que muitos críticos seus não esperavam, se destaca pela postura digna.
Estrategicamente posicionado em
frente a um mapa da Ucrânia, Zelensky falou (na maior parte do tempo em
russo) que tentou ligar para Putin, mas foi recebido com silêncio. Disse
que os dois países não precisam de uma guerra, "nem uma Guerra Fria,
nem uma guerra quente, nem uma guerra híbrida". Mas acrescentou que,
se fossem atacados, os ucranianos se defenderiam. Na transmissão seguinte, já após a invasão russa, ele usava uniforme militar, refletindo o clima de
"Davi contra Golias" do conflito. Naquela noite, em outro discurso, alertou os líderes de países como EUA e Reino Unido de que, se eles não ajudassem
no esforço contra os russos, "amanhã a guerra baterá em suas portas".
E concluiu: “Este é o som de uma nova cortina de ferro, que desceu e está
separando a Rússia do mundo civilizado."
Nas últimas semanas, clipes antigos da série protagonizada
por Zelensky exibem cenas incrivelmente semelhantes às que o agora mandatário ucraniano enfrenta na vida real. Numa delas, o fictício presidente Holoborodko caminha por uma praça quando um telefonema da então chanceler alemã Angela
Merkel lhe dá conta de que o país fora aceito como membro da União
Europeia (justamente um dos pedidos feitos por Zelensky na vida real, e
que tem servido de pano de fundo nas tensões com Putin). "Eu estou
tão feliz! Obrigado! Todos os ucranianos... nosso país... estamos esperando
isso há tanto tempo", diz Holoborodko, mas então a Merkel fictícia responde: "Ah, me desculpe, foi engano meu.
Eu estava telefonando para Montenegro".
Outra cena que viralizou na Web mostra Holoborodko tentando apartar uma briga entre os congressistas. Como não consegue, ele grita: "Putin foi deposto". O furdunço cessa imediatamente e todos olham
para o presidente, que confessa que era mentira. Em mais um episódio, o
personagem de Zelensky fantasia metralhar políticos do Parlamento
ucraniano — imagem que reflete, na opinião de alguns analistas, a plataforma
antissistema político que o próprio Zelensky usou para impulsionar sua
campanha na vida real.
Em entrevista ao UOL, o presidente da Representação
Central Ucraniano-Brasileira, Vitorio Sorotiuk, disse que Zelensky
convidou Bolsonaro para visitar a Ucrânia quando de sua viagem à Rússia,
mas o mandatário brasileiro não respondeu ao convite — o que, segundo Sorotiuk,
foi um
insulto ao presidente e ao povo ucraniano. No último dia 7, Roberto
Livianu publicou em O Globo uma carta enviada por Zelensky a
Bolsonaro. Segue a transcrição:
“Presidente Jair Bolsonaro;
As coisas estão difíceis por aqui, mas fui eleito pelo
povo para governar para todos os ucranianos por quatro anos e cumprirei meu
compromisso na íntegra. Aprendi desde cedo que, nas democracias, os governantes
são escolhidos pela maioria, mas, passada a eleição, devem olhar realmente por
todos — os “do cercadinho” e aqueles que “atiram tomates no cercadinho”. O
senhor me entende, certo? Acredito nisso e pratico isso. É o que tem me
fortalecido como líder.
Soube que o senhor tem desaconselhado a população a se
vacinar contra a Covid-19 e que o Brasil é o segundo país do mundo com mais
mortes pelo vírus — mais de 650 mil. Aqui na Ucrânia, aconselhei pessoalmente a
vacinação de todos e todas, pois penso que o exemplo vem do topo. Mas respeito
seu ponto de vista. Peço que transmita meus sentimentos às famílias brasileiras
enlutadas — nós, ucranianos, sentimos muito as perdas humanas e nos
solidarizamos. É o mínimo que se pode fazer diante da tragédia.
Por mais duro que seja, meu lema tem sido a
transparência. Límpida, translúcida como uma boa vodca. Cometo erros, como todo
ser humano, mas presto contas permanentemente a meu povo do que se passa nas
entranhas do poder, assegurando sempre pleno acesso à informação para a
sociedade e absoluta liberdade de imprensa.
Nunca havia exercido cargo político. Estou presidente da
República, e é minha primeira experiência na vida pública. Assumi compromisso
inarredável de lutar contra a corrupção e seu enraizamento no poder. Sou contra
a reeleição — tanto no Executivo quanto no Legislativo, pois acho importante o
arejamento permanente. Até porque eu jamais aguentaria cinco, seis ou sete
mandatos consecutivos no mesmo nível parlamentar. Perdão, o senhor foi deputado
sete vezes seguidas: nada contra sua trajetória pessoal, sou apenas contra
situações assim.
Soube pela imprensa que o senhor esteve visitando o
presidente da Rússia na antevéspera do ataque à Ucrânia. Fiquei sinceramente
curioso, imaginando o motivo que poderia tê-lo levado àquele país em momento
tão agudo. Fui comediante sim, mas não é piada. Pergunto como estadista. O
mundo quer saber.
Soube que apoiadores seus publicaram postagens em redes
sociais afirmando que o senhor convenceu o presidente russo a não atacar nosso
país e que seria até indicado a receber o Nobel da Paz por isso. Pensei
seriamente em pedir os contatos dessas pessoas para recomendá-las ao showbiz da
comédia ucraniana.
A Assembleia Geral da ONU aprovou resolução condenando a
guerra russa por votação avassaladora. Notei que, apesar de a diplomacia
brasileira ter votado contra a agressão, pessoalmente sua posição não tem sido
categórica. Continuo em meu país, contrariando o prognóstico de muitos. Sempre
na luta. Fica aqui meu convite cordial para uma visita regada a vodca ou
tubaína (soube que aprecia). Se quiser vir nesta semana, ficarei feliz. O que
Putin e o mundo pensarão a respeito? E daí?”
Volodymyr Zelensky”