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sexta-feira, 10 de julho de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — QUINTA PARTE


Vimos que a monarquia foi sepultada pela proclamação da República, em 1889, e que esse foi o primeiro dos muitos golpes de Estado que ocorreram em nossa querida republiqueta de bananas. 

No período republicano — que já dura respeitáveis 130 anos —, 38 políticos foram alçados à Presidência via eleições diretas (por voto popular) ou indiretas (pelo Congresso Nacional), golpe de Estado ou linha sucessória. Oito deles — entre os quais Júlio Prestes, que nem chegou a assumir — foram, em algum momento de seus mandatos, defenestrados do poder. E Jair Messias Bolsonaro pode ser o próximo.

Entre o apagar das luzes imperiais, em 1889, e a posse de Prudente de Morais, em 1894, somente militares ocuparam o assento mais cobiçado dos palácio presidencial, daí esse período ser chamado de República da Espada

O Marechal Deodoro da Fonseca, a quem coube desfechar o golpe de misericórdia no regime monárquico e entrar para a história como o primeiro presidente do Brasil, governou interinamente por cerca de dois anos. Promulgada a Constituição de 1891, foi realizada uma eleição indireta, na qual o marechal derrotou seu adversário — o candidato civil Prudente de Morais — por 129 votos a 97. Sua gestão, marcada pelo autoritarismo, foi encerrada prematuramente por um levante da Marinha, conhecido como Revolta da Armada

Tão logo passou de vice a titular, o também marechal Floriano Peixoto demitiu todos os governadores que apoiaram seu antecessor (e que defendiam a realização de nova eleição, à luz do previsto no art. 42 da Constituição de 1891). Graças a sua postura ditatorial — parece que isso seria moda entre os mandatários tupiniquins — Floriano foi apelidado de “Marechal de Ferro”. Para se manter no poder, ele teve de debelar sucessivas rebeliões, como a Revolução Federalista e a Segunda Revolta da Armada

Em abril de 1892, diante de protestos de opositores e divulgação de manifestos na capital federal, Peixoto decretou estado de sítio, prendeu e desterrou desafetos para a Amazônia. Quando Rui Barbosa ingressou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal em favor dos detidos, Peixoto ameaçou os magistrados: "Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão". O Supremo negou o habeas corpus por dez votos a um. 

Em novembro de 1894, muito a contragosto, Floriano Peixoto passou o bastão para o paulista Prudente de Morais — que obteve 90% dos votos na primeira eleição direta da nossa história. A exemplo do que faria o General Figueiredo daí a quase um século, o marechal se recusou a transmitir pessoalmente o cargo a seu sucessor.   

Observação: Figueiredo não compareceu à cerimônia de posse nem passou a faixa presidencial ao oligarca maranhense José Sarney, que ele considerava "traidor" e "ilegítimo" por ter deixado a Arena (partido que apoiava o governo durante a ditadura) para disputar a vice-presidência na chapa de oposição, encabeçada por Tancredo Neves. 

Prudente de Morais foi não só o primeiro presidente civil do Brasil, mas também o primeiro eleito pelo voto direto. Seu governo se estendeu de 1894 a 1898 e deu início à política do café com leite — assim chamada devido à aliança nas indicações para presidentes entre São Paulo e Minas Gerais. Dada a presença substantiva de militares ligados a seu antecessor, temia-se a volta dos fardados ao poder — possibilidade que ganhou força com a morte de Floriano, em junho de 1895: no enterro do ex-presidente, cerca de 30 mil pessoas seguiram o cortejo fúnebre gritando “Viva, Floriano! Morra, Prudente!”.

Problemas de saúde levaram Prudente a transferir o cargo ao vice Manuel Vitorino, soteropolitano e adepto ao florianismo, e reassumiu o posto em 4 de março de 1897 (a despeito dos esforços de Vitorino, que, de olho no cargo, conspirava contra o presidente). Mas o restante de seu governo foi marcado por turbulências e dificuldades — entre as quais uma tentativa de assassinato e a (sempre presente) ameaça de golpe militar. Em 1899, após decretar estado de sítio e promover intensa perseguição aos opositores, Prudente transferiu o cargo ao também paulista Campos Sales, que seria sucedido pelo conterrâneo Rodrigues Alves — mais um integrante das oligarquias cafeeiras —, que, por seu turno, seria sucedido pelo também paulista Afonso Pena.

Em junho de 1909, com a morte de Pena no exercício da presidência, coube a Nilo Peçanha concluir o mandato tampão e dar posse ao gaúcho Hermes da Fonseca, que era sobrinho de Deodoro e derrotara o soteropolitano Rui Barbosa. Na sequência, mediante um acordo costurado por paulistas e mineiros, assumiu o posto Venceslau Brás

Em 1918, o paulista Rodrigues Alves foi eleito presidente, mas a Dona Morte o impediu de assumir o posto pela segunda vez vez. Quem assumiu foi o mineiro Delfim Moreira, que governou até a eleição e posse do paraibano Epitácio Pessoa, em 1919. Pessoa ocupou a poltrona presidencial até 1922, quando então foi sucedido pelo mineiro Arthur Bernardes, que foi sucedido pelo carioca Washington Luiz, que foi o último presidente da chamada República Velha e cuja gestão será abordada de forma mais detalhada no próximo capítulo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS...

 

Na cerimônia de posse de certo governador de São Paulo (não me lembro se Quércia ou Fleury), o fundador da construtora Camargo Corrêa foi saudado por um ex-governador: "Dr. Camargo, o senhor por aqui?" Sebastião Camargo respondeu: "Eu estou sempre por aqui, governador. Vocês é que mudam".

Governo probo, nunca houve no Brasil. Se o nepotismo é uma das muitas facetas da corrupção, então "essa senhora" desembarcou na Terra de Vera Cruz com Cabral (falo do Pedro Álvares, não do ex-governador do Rio). No epílogo da epístola em que deu conta do "descobrimento" a D. Manuel, o escriba Pero Vaz de Caminha anotou:

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E se a um pouco me alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez proceder assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que Dela receberei em muita mercê.”

Observação: o escriba estava preocupado com sua filha única, Isabel de Caminha, cujo marido, um certo Jorge de Osório, preso por roubo, fora degredado para a ilha de São Tomé, na África.

Como reza a sabedoria popular, o que começa mal tende a ficar pior. 

No início do século XIX, a iminente invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas forçou a família real lusitana a vir de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Com isso, o Brasil, que até 1815 foi mera colônia portuguesa, passou à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. E assim permaneceu até o célebre “Grito da Independência” — o tal brado heroico retumbante ouvido pelas margens plácidas do Ipiranga, que Osório Duque Estrada poetizou na letra do Hino Nacional Brasileiro, o pintor Pedro Américo imortalizou em seu tão célebre quanto fantasioso quadro, e os livros didáticos transformaram numa obra de ficção.

Proclamação da República, também cantada em verso e prosa com pompa e circunstância, foi o primeiro dos muitos golpes de Estado que estavam por vir. Entre o apagar das luzes imperiais, em 1889, e a posse de Prudente de Morais, em 1894, somente militares ocuparam o assento mais cobiçado do palácio presidencial — daí esse período ser chamado de República da Espada

O Marechal Deodoro da Fonseca — a quem coube desfechar o golpe de misericórdia no regime monárquico e entrar para a história como o primeiro presidente do Brasil — governou interinamente por cerca de dois anos. Promulgada a Constituição de 1891 e realizada uma eleição indireta, o fardado derrotou o candidato civil Prudente de Morais por 129 votos a 97. Mas sua gestão, marcada pelo autoritarismo, foi encerrada prematuramente por um levante da Marinha que ficou conhecido como Revolta da Armada

Tão logo passou de vice a titular, o também marechal Floriano Peixoto demitiu todos os governadores que apoiaram seu antecessor (e que defendiam a realização de nova eleição, à luz do previsto no art. 42 da Carta Magna). Graças a sua postura ditatorial — que se tornaria moda entre os mandatários tupiniquins — o "Marechal de Ferro" teve de debelar sucessivas rebeliões — como a Revolução Federalista e a Segunda Revolta da Armada — para se manter no poder. 

Observação: Em abril de 1892, diante de protestos de opositores e divulgação de manifestos na capital federal, Peixoto decretou estado de sítio, prendeu e desterrou desafetos para a Amazônia. Quando Rui Barbosa ingressou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal em favor dos detidos, Peixoto ameaçou os magistrados: "Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão". O Supremo negou o habeas corpus por dez votos a um. 

Em novembro de 1894, muito a contragosto, o marechal passou o bastão para o paulista Prudente de Morais — que obteve 90% dos votos na primeira eleição direta da nossa história. A exemplo do que faria o General Figueiredo quase um século depois, Peixoto se recusou a transmitir pessoalmente o cargo a seu sucessor.   

Ao longo de 131 anos de história republicana (completados em novembro do ano passado), 38 presidentes chegaram ao poder pela via do voto popular, eleição indireta, linha sucessória ou golpe de Estado (como até o passado é incerto neste país, esse número varia de 35 a 44). Destes, oito foram de alguma forma apeados antes do fim do mandato. Dos cinco eleitos pelo voto direto desde o fim da ditadura, Collor e Dilma foram expulsos de campo antes do final do jogo.

O caçador de marajás de festim — que inaugurou a lista dos chefes do Executivo Federal depostos por crime de responsabilidade — colecionou 29 pedidos de impeachment, mas nunca foi chamado de genocida. 

ItamarFHCLula e Temer foram agraciados, respectivamente, com 4, 27, 37 e 33 pedidos de impeachment, mas concluíram seus mandatos sem jamais serem chamados de genocidas. 

A gerentona de araque, que foi expelida da Presidência porque estava quebrando o país, foi alvo de 68 pedidos de impeachment, mas ninguém jamais a acusou de genocídio.

Falando em genocídio, o relatório final da CPI já está sendo escrito e deverá ser concluído no mês que vem. O texto-base já possui mais de mil páginas — e pode crescer, a depender dos fatos e dados a serem obtidos pela Comissão. O grosso do material está nos anexos, que incluem documentos e os principais pontos de destaque dos depoimentos.

O relator deve sugerir a continuidade da investigação pelo Ministério Público por meio de inquéritos específicos para cada assunto trazido em destaque. Vários dos capítulos já elaborados dizem respeito ao chamado "gabinete paralelo da saúde" e incluem a transcrição e links de vídeos, áudios, declarações e documentos que, segundo Renan Calheiros, comprovam a atuação do órgão extraoficial. Um dos tópicos do relatório trará a afirmação de que quem se opôs ao gabinete paralelo — como Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich — acabou deixando o Ministério.

Já o general e ex-ministro Eduardo Pazuello será apontado por não se opor à atuação de médicos do suposto gabinete na elaboração de políticas públicas e por "colocar em prática" as orientações extraoficiais. Segundo o senador Randolfe Rodrigues, o documento deve imputar o estrelado crimes como "charlatanismo, prevaricação, advocacia administrativa e por atuar contra a ordem sanitária". Os parlamentares ainda discutem se incluem na lista corrupção passiva.

Haverá um destaque no relatório também com relação ao aplicativo "TrateCov", que, segundo Pazuello teria sofrido um ataque hacker — fato desmentido por uma auditoria técnica do TCU. Na redação, o aplicativo está sendo tratado como uma das políticas falhas do Ministério da Saúde que teriam utilizado a capital do Amazonas como "experimento" para as teorias do gabinete paralelo. Nesse contexto, a minuta de um decreto presidencial que pretendia alterar a bula da cloroquina sem o aval da Anvisa também deverá ser anexada ao texto. Todos esses fatos, envolvendo principalmente o general Pazuello, aparecerão como aspectos que prejudicaram o país na aquisição de vacinas contra a doença.

Com encerramento programado para setembro, a CPI convive com um paradoxo. Tomada pelo relatório final, a investigação parlamentar terá a aparência de uma iniciativa de sucesso. Considerando-se as consequências a serem produzidas pelas conclusões do documento, resultará em frustração. As pessoas que acompanharam os depoimentos pela televisão terão a impressão de que desperdiçaram seu tempo quando as conclusões da Comissão morrerem no arquivo de Augusto Aras — que, como Procurador-Geral da República, é responsável pela análise dos crimes comuns atribuídos a Bolsonaro — e no gavetão do deputado Arthur Lira — a quem, como presidente da Câmara, cabe lidar com a acusação da prática de crimes de responsabilidade, que, em tese, levariam ao impeachment.

Dois espetáculos não cabem ao mesmo tempo num só palco. Ou numa única conjuntura política. Dividido entre um e outro, o público tende a se dispersar. Antes do recesso parlamentar de julho, estava em cartaz a novela da CPI do Genocídio. Ao farejar o cheiro de queimado, Bolsonaro aproveitou o retiro dos senadores para intensificar as críticas às urnas eletrônicas e os insultos a ministros do STF, impondo a mudança do cartaz neste mês de agosto. Ao voltar do recesso, o G7, como ficou conhecido o grupo majoritário que controla os rumos da CPI, percebeu que a pior coisa do sucesso é ter que continuar fazendo sucesso.

Às voltas com um déficit de atenção da plateia, os senadores começaram a planejar o fechamento das cortinas. Enxugam a pauta de depoimentos. Esperam encerrar as oitivas em três semanas. Para evitar marolas, cancelaram a acareação que seria feita nesta semana entre o ministro Onyx Lorenzoni e o deputado Luís Miranda e relutam em aprovar novas convocações. No papel, a Comissão poderia funcionar até o início de novembro, mas tudo indica que o relatório final será entregue em meados de setembro.

Pretende-se indiciar Bolsonaro e outros investigados por transformar em política pública o tratamento da Covid com remédios ineficazes, apostar na imunização coletiva pelo contágio, negligenciar o colapso hospitalar de Manaus, retardar a compra de vacinas da Pfizer e do Butantan, firmar contrato irregular para a compra da vacina indiana Covaxin, abrir as portas do Ministério da Saúde para picaretas que ofereciam vacinas inexistentes (ou seja, a Comissão pretende acusá-lo de crimes comuns e crimes de responsabilidade).

O presidente continua cagando e andando para a CPI. Considera-se invulnerável. Para os crimes comuns, conta com a blindagem do procurador-geral. Para os crimes de responsabilidade, tem a proteção do deputado-réu que preside a Câmara e já mandou para o gavetão 133 pedidos de impeachment. Mantida a blindagem, Bolsonaro poderá repetir que não teve nada a ver com o caos sanitário.

Não há nada que a cúpula da CPI possa fazer para dissolver a cumplicidade de Lira com Bolsonaro. Mas, com honrosas exceções, é espantosa a inércia dos senadores em relação ao procurador-geral. A recondução de Aras ao cargo está pendente de votação no Senado. Em vez de articular a reprovação do dito-cujo, parte dos integrantes da Comissão se reuniram, na última terça-feira, com o procurador que Bolsonaro escolheu para lavar a sua louça por mais dois anos.

Renan Calheiros tornou-se a personificação do paradoxo vivido pela CPI. Há dois anos, quando o Senado aprovou a nomeação de Aras para comandar a PGR, o ora relator da Comissão não conseguiu conter o entusiasmo. Naquela época, o senador alagoano estava ao lado do primogênito do capitão, outro entusiasta da escolha de Aras. Freguês de caderneta da Lava-Jato, o Cangaceiro das Alagoas queria acertar as contas com a força-tarefa de Curitiba; denunciado pelo MP-RJ por peculato e lavagem de dinheiro, Flávio "Rachadinha" Bolsonaro estava à procura de blindagem.

A PGR — e, por extensão, o Ministério Público Federal — vive um apagão mental. Já se sabia que Aras trata Bolsonaro como um ser inviolável e imune (eufemismos para intocável e impune). Descobre-se agora que, para livrar o presidente-suserano de incômodos judiciais, o procurador-vassalo e sua equipe decidiram enquadrá-lo na categoria dos seres inimputáveis.

Bolsonaro obteve da PGR um salvo-conduto para delinquir. Pode tudo, inclusive arrancar máscara da cara de criancinha. PT e PSOL pediram no STF a abertura de inquéritos para apurar o desrespeito a leis estaduais e federal em aglomerações promovidas pelo mandatário durante passeios de moto com seus devotos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Norte. A subprocuradora-geral Lindôra Araújo (braço direito de Aras), a quem coube formular a manifestação da PGR, sustentou que Bolsonaro não infringiu medidas sanitárias nem colocou a vida de ninguém em risco.

Numa evidência de que a PGR opera em "modo Talibã", a subprocuradora aderiu ao negacionismo científico para dispensar Bolsonaro do mais comezinho cuidado sanitário. Anotou que, "em relação ao uso de máscara de proteção, inexistem trabalhos científicos com alto grau de confiabilidade em torno do nível de efetividade da medida de prevenção". 

No Rio Grande do Norte, Bolsonaro pediu a uma menina para retirar a máscara e arrancou o apetrecho da face de um menino. Para Lindôra, o presidente não teve a intenção de "constranger aquelas crianças". Segundo ela, "os infantes também não demonstraram, com atitudes ou gestos, terem ficado constrangidos, humilhados ou envergonhados na presença do presidente". Na avaliação da doutora, o presidente apenas interagiu com as crianças "de forma descontraída."

Como se sabe, Bolsonaro fez uma opção preferencial por exercer o cargo de presidente à margem da lei. Transgride até leis que sancionou. Como há males que vêm para pior, Aras e sua equipe promovem uma junção da ilegalidade com a impunidade.

Em seus deslocamentos eleitorais, Bolsonaro promove aglomerações proibidas por Estados e municípios. Ignora os poderes conferidos a governadores e prefeitos pela Constituição e reafirmados pelo STF. Por onde passa, discursa contra medidas sanitárias restritivas. Finge ignorar o fato de que sancionou em fevereiro do ano passado a "lei da pandemia", que prevê a adoção de providências excepcionais, como o isolamento e a quarentena. Em julho de 2020, Bolsonaro assinou a lei 14.019, que torna obrigatório o uso de máscaras de proteção individual em espaços públicos e privados. Em suma: além de cagar e andar para sua própria decisão, o capitão constrange o ministro Marcelo Queiroga com a cobrança de estudos para flexibilizar o uso da máscara. Agora, recebe salvo-conduto da Procuradoria para descumprir até a lei que avalizou.

Nos passeios de moto, Bolsonaro não percorre apenas o asfalto, mas o Código Penal, cujo artigo 268 estabelece pena de detenção de um mês a um ano para quem "infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". No artigo 132, o diploma legal retrocitado sujeita a uma pena de detenção de três meses a um ano as pessoas que expõem a vida ou a saúde de terceiros a perigo direto e iminente.

Nesse contexto, não parece razoável que um país inteiro tenha que passar vergonha para que um procurador-geral e sua equipe ofereçam blindagem a um presidente da República que se converteu num infrator serial. Não resta aos relatores dos dois processos no STFRosa Weber e Ricardo Lewandowski — senão ignorar a manifestação de Lindôra e ordenar a abertura dos inquéritos.

Vivo, Darwin diria que a atuação da PGR não é apenas uma prova de que o ser humano parou de evoluir. Trata-se de uma evidência de que ele já faz o caminho de volta. No momento, o melhor lugar para se proteger de Bolsonaro é uma caverna nas montanhas do Afeganistão. Aliás, se o homem de Neandertal desconfiasse que o resultado da evolução seria bolsonaros, talvez não tivesse saído da caverna. Teria optado por uma versão pré-histórica do isolamento social.

Com Josias de Souza

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

... SEMPRE TEM ESPAÇO PARA PIORAR!


Assim como o “Descobrimento”, a “Inconfidência Mineira”, o “Grito do Independência” e um sem-número de episódios que os compêndios didáticos romancearam, glamourizaram e ornamentaram com requififes chauvinistas, a “Proclamação da República” entrou para a História como um “bravo ato patriótico”, mas na verdade foi um golpe de Estado político-militar (o primeiro de muitos, diga-se) que tinha tudo para dar errado, inclusive falta de apoio do povo, que assistiu bestializado aos acontecimentos, sem entender o que se passava.

A ideia de transformar o Brasil numa República já era manifesta em muitas revoltas. Os militares, vitoriosos da Guerra do Paraguai, aproximaram-se dos republicanos, a exemplo da Igreja Católica, depois que D. Pedro II anulou suas medidas contra a maçonaria, e os fazendeiros, descontentes com a abolição da escravatura, que os privou da mão de obra gratuita do negros. 

O marechal Deodoro da Fonseca — idoso, enfermo e monarquista — relutava em protagonizar a troca do regime demandada por lideranças civis e fardados liderados por Benjamin Constant, mas a falsa notícia de que sua prisão havia sido decretada acabou por convencê-lo a insurgir-se contra o Império.

Substituída a monarquia constitucional parlamentarista pelo presidencialismo republicano, D. Pedro II e família foram exilados. Deodoro, que não só era amigo pessoal do Imperador, mas também lhe devia favores, ofereceu 5 mil contos de réis para ajudar na mudança. D. Pedro recusou, mas disse que levaria de bom grado um travesseiro com terra do Brasil (para repousar sua cabeça quando fosse sepultado). 

Observação: A quem interessar possa, sugiro a leitura de A História das Constituições Brasileiras, do historiador e professor Marco Antonio Villa.

Deodoro comandou o Governo Republicano Provisório (1889 a 1891) e foi escolhido presidente pelo colégio eleitoral formado por senadores e deputados da Assembleia Constituinte. Mas sua relação tensa com as oligarquias e os muitos desafetos que colecionou durante a gestão renderam-lhe um vice da oposição (o também marechal Floriano Peixoto).

Deodoro substituiu todos os governadores por políticos de sua confiança, mas nem assim conseguiu evitar que as bancadas estaduais do Congresso articulassem um projeto de lei que lhe reduziria os poderes. Em represália, dissolveu o Congresso e decretou estado de sítio. O vice-presidente recorreu ao comandante do Encouraçado Riachuelo, que ameaçou bombardear a capital federal se o presidente não capitulasse. Sua excelência não pensou duas vezes.  

Com a renuncia de Deodoro (em 23 de novembro de 1891), Floriano Peixoto assumiu a presidência e a exerceu até 15 de novembro de 1894, quando, meio que a contragosto, deu posse a Prudente de Moraes, que entrou para a História como primeiro presidente civil e eleito pelo voto direto. Sua gestão foi marcada turbulências e dificuldades, mas isso é conversa para outra hora.

Esse breve relato resume o primeiro e o segundo dos muitos golpes de Estado ocorridos desde a proclamação da República. Oficialmente, Bolsonaro é o 38º presidente desta banânia, e, também oficialmente (segundo dados da plataforma de monitoramento do ministério da Saúde) o Brasil ultrapassou a marca de 190 mil mortes pela Covid. Mas um levantamento realizado pela organização Vital Strategies, formada por pesquisadores e especialistas independentes, dá conta de que esse número pode ser superior a 220 mil. Mas isso também é outra conversa.

Observação: De 1549 a 1763, a capital do Brasil foi Salvador (BA). No Rio, o Palácio do Itamaraty sediou o Executivo até 1897, quando Prudente de Moraes e seu staff passaram a ocupar o Palácio do Catete. A ideia de transferir a capital para o interior era antiga; em 1761, o Marques de Pombal fez essa sugestão, que José Bonifácio ressuscitou em 1823, mas foi no final dos anos 1950, durante o governo de Juscelino Kubitschek, que Brasília foi construída do nada — e no meio do nada — para ser o novo DF, e o Palácio do Planalto, inaugurado em 21 de abril de 1960 para ser a nova sede do Executivo Federal. O que pouca gente sabe é que Curitiba foi capital federal por três dias, de 24 e 27 de março de 1969.   

Desde 1945, o Brasil teve nove presidentes eleitos de forma direta. Desses, apenas quatro completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra, vencedor daquela que é considerada a primeira eleição verdadeiramente democrática do Brasil, em 1945; Juscelino Kubitschek, eleito em 1955; Fernando Henrique Cardoso, vencedor do segundo pleito pós-ditadura militar, em 1994; e Lula, eleito em 2002 e reeleito em 2006. Integrante dos cinco restantes, Getúlio Vargas “foi suicidado” com um tiro no peito, digo, foi encontrado morto com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954, após ter sido acusado de tramar um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda e de 27 generais exigirem publicamente sua renúncia. O político gaúcho deixou uma "carta-testamento" que se notabilizou pelas palavras finais (“saio da vida para entrar na História”).

Em outubro de 1955, quando Juscelino Kubitschek se elegeu presidente, a ala conservadora e os militares, com o apoio de Café Filho  que passou de vice a titular com o “suicídio” de Vargas  e do presidente da Câmara, Carlos Luz — que assumiu interinamente a presidência da República quando do afastamento de Café  urdiram um golpe de Estado para impedir a posse de JKAssim que subiu de posto, Luz substituiu o general Henrique Lott pelo também general Álvaro Fiúza de Castro no comando do Ministério da Guerra. Sentindo o cheiro do golpe, Lott depôs Luz (que ficou apenas 4 dias no cargo e foi impichado em 11 de novembro) e empossou Nereu Ramos, então presidente do Senado. Assim, pela primeira vez na história, o Brasil teve três presidentes numa única semana.

O resto fica para o próximo capítulo.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

RESTAURE-SE O IMPÉRIO DA MORALIDADE OU LOCUPLETEMO-NOS TODOS! (PARTE X)


Em 2012, assistimos estarrecidos (mas esperançosos) à condenação da alta cúpula do Mensalão. Em 2016, livramo-nos de Dilma, que afundou o Brasil na maior recessão da história republicana do país — e está prestes a perder o primeiro lugar no ranking para Bolsonaro, mas isso é outra história.

Quanto ao poste de Lula, nenhuma surpresa: em fevereiro de 1995, quando a paridade cambial entre o real e o dólar favorecia sobremaneira a importação e revenda de badulaques, a calamidade em forma de gente faliu duas lojinhas tipo R$ 1,99 que havia montado em Porto Alegre e batizado com o sugestivo nome de “Pão & Circo” — que remete a uma estratégia romana destinada a entreter a plebe ignara, insatisfeita com os excessos do Império.

Comercializar quinquilharias baratas deveria ser algo trivial para alguém que, 15 anos depois, se apresentaria aos eleitores como a “gerentona” capaz de manter o Brasil no rumo do desenvolvimento. O problema, para Dilma e seus três sócios, é que a futura presidente cuidou da contabilidade da empresa como lidaria mais adiante com as finanças do País: em julho de 1996 seu comercio já não existia mais.

Para começar, a loja foi aberta sem que os donos soubessem ao certo o que seria comercializado ali. Às favas o planejamento — primeiro passo para criação de qualquer negócio que se pretenda lucrativo. A empresa foi registrada para vender de tudo um pouco a preços módicos, entre bijuterias, confecções, eletrônicos, tapeçaria, livros, bebidas, tabaco e até flores naturais e artificiais. Mas Dilma acabou apostando no comércio de brinquedos para crianças, em especial os “Cavaleiros do Zodíaco”.

Os artigos revendidos pela Pão & Circo eram importados de um bazar localizado no Panamá, para onde a grande economista e a sócia e ex-cunhada Sirlei Araújo viajavam regularmente para comprar os produtos. Apesar de a mercadoria custar barato, o negócio era impopular — como Dilma se tornaria mais adiante. 

Ao abrir a vendinha, a mulher sapiens não levou em conta que “o olho do dono engorda o porco”, e só aparecia por lá eventualmente, preferindo dar ordens e terceirizar as tarefas do dia a dia — como fez ao delegar a economia ao ministro Joaquim Levy e a política ao vice Michel Temer — até este desistir da função dizendo-se boicotado pelo (então) ministro-chefe da Casa Civil Aloizio Mercadante.

Na sociedade da Pão & Circo, o equivalente a Mercadante era Carlos Araújo, ex-marido de Dilma, que a aconselhava sobre como turbinar as vendas, mas era tão inepto quanto a futura chefa da Casa Civil e presidenta do Conselho de Administração da Petrobrás no governo de Lula demonstrou ser na negociata de Pasadena. Mesmo assim, a empresária de festim teve uma carreira meteórica: sem saber atirar, virou modelo de guerrilheira; sem ter sido vereadora, virou secretária municipal; sem passar pela Assembleia Legislativa, virou secretária de Estado; sem estagiar no Congresso, virou ministra; sem ter inaugurado nada de relevante, virou estrela de palanque; sem jamais ter tido um único voto na vida até 2010, virou presidente de país.

Observação: Até os pedalinhos do Sítio Santa Bárbara, em Atibaia, sabiam desde sempre que Lula institucionalizou a corrupção no Brasil. E quem não sabia ficou sabendo quando o procurador Deltan Dallagnol apresentou à imprensa um PowerPoint tosco, mas elucidativo, demonstrando que o picareta dos picaretas era o comandante máximo da ORCRIM. Dilma foi o maior erro tático que o petista cometeu em sua trajetória política. Dias atrás, ele próprio disse em entrevista à CBN que não pretende incluir a nefelibata da mandioca em sua campanha à Presidência nem em um eventual futuro governo. A obviedade chapada dos motivos dispensa maiores considerações.

Arrogante, pedante, intransigente e mouca à voz da razão, Dilma montou uma arapuca para si mesma, mas levou de embrulho tanto os inconsequentes que a reconduziram ao Planalto quanto a parcela pensante dos brasileiros. Num monumental estelionato eleitoral, sua alteza irreal preços administrados, aumentou gastos com programas eminentemente eleitoreiros e “pedalou” a mais não poder. Somado à irresponsabilidade fiscal, seu apetite eleitoral aumentou o inchaço da máquina pública e resultou na falência do Estado — para se ter uma ideia, enquanto a Casa Branca contava com 468 servidores, o Palácio do Planalto contabilizava 4.487 funcionários.

Em setembro de 2015, nove meses depois do início da segunda (e ainda mais funesta) gestão da estocadora de vento, o Orçamento já acumulava um rombo de R$ 30 bilhões — algo nunca visto até então. Era o começo do fim: a despeito de as pedaladas fiscais terem sido o “motivo oficial” da deposição, a petista foi expelida do cargo pelo conjunto de sua obra e por sua absoluta falta de traquejo no trato com o Parlamento. 

Num primeiro momento, a troca de comando foi como uma lufada de ar fresco numa catacumba. O novo presidente sabia até falar! Considerando que passáramos 13 anos ouvindo os garranchos verbais de um semianalfabeto e as frases desconexas de uma destrambelhada que não era capaz de juntar sujeito e predicado numa frase que fizesse sentido, ter um mandatário que usava até mesóclises era um refrigério. 

Embora fosse impossível consertar o país da noite para o dia, Temer conseguiu debelar a inflação (que rodava pelos 10% quando ele assumiu), reduzir de maneira “responsável” a Selic e aprovar a PEC do Teto dos Gastos e a Reforma Trabalhista. Mas seu ministério de notáveis revelou-se uma notável agremiação de corruptos — que foram caindo à razão de um por mês.

O primeiro a cair foi Romero Jucá, o “Caju”, que deixou o Ministério do Planejamento uma semana após a nomeação — só que continuou no governo, ocupando uma secretaria criada especialmente para preservar seu direito ao foro privilegiado. Na sequência, demitiram-se ou foram demitidos Fabiano SilveiraHenrique Eduardo AlvesGeddel Vieira Lima e mais meia dúzia de ministros e/ou assessores de primeiro escalão. Temer moveu mundos e fundo$ para preservar Eliseu Padilha, o “Primo”, e Wellington Moreira Franco, o “Angorá”, que o ajudavam a comandar “a quadrilha mais perigosa do Brasil”, como disse Joesley em entrevista à revista Época.   

Livramo-nos de Dilma, mas herdamos Michel Temer, que jamais conquistou a simpatia dos brasileiros. E nem poderia, tendo sido vice de quem foi e presidido o PMDB por 15 anos. Após o julgamento do impeachment, a imprensa publicou vários artigos acusando o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba, de defender um “direito autoritário, próprio das tiranias” e a “relativização do direito de defesa”. Curiosamente, esses mesmos veículos de comunicação não manifestaram a mesma preocupação quando a petista era presidente. Coisas do Brasil.

Em fevereiro de 2017 o partido de Temer indicou Edison Lobão para presidir a CCJ do Senado, numa evidente estratégia de frear os avanços da operação anticorrupção. Lobão era defensor ferrenho da anistia ao caixa 2 e crítico figadal das delações premidas (uma das principais ferramentas da força-tarefa), e dizia que acordos de colaboração haviam virado “um inquérito universal” e poderiam levar o Brasil à “tirania”. Para surpresa de ninguém, partidos investigados se empenharam em bloquear um eventual terceiro mandato de Janot e a possível escolha de alguém próximo a ele para chefiar a PGR.

Mesmo com a podridão aflorando no seu entorno, o presidente seguia adiante, levando a Nau dos Insensatos pelas águas revoltas da crise como um timoneiro experimentado. Sob seu comando, dizia, o Brasil chegaria são e salvo às próximas eleições e seria entregue fortalecido ao próximo dirigente. 

A coisa até funcionou durante algum tempo, a despeito da pecha da ilegitimidade — uma falácia petista, pois quem votou em Dilma votou na chapa; como vice da anta, Temer não só era seu substituto eventual como encabeçava a linha sucessória presidencial. O que ele fez para ser promovido a titular e o fato de seu governo ter degringolado já é outra conversa.

Mas o nosferatu que jurou que não interferiria na Lava-Jato, que afastaria quem fosse denunciado e exoneraria quem se tornasse réu deu um salvo-conduto aos assessores citados nas delações, pois precisava deles para blindar o governo. Só que faltou combinar com os russos, ou melhor, com Joesley Batista: Em maio de 2017, Temer foi abatido em seu voo de galinha pela delação premiada do moedor de carne bilionário e de outros seis altos executivos da JBF/J&F.

Nossa história recomenda darmos mais atenção à figura do vice-presidente. Em 15 de novembro de 1889, um golpe militar capitaneado pelo marechal Deodoro da Fonseca apeou D. Pedro II do trono e substituiu a monarquia constitucionalista pela república presidencialista. Deodoro presidiu o país até 1891, quando então "foi convidado a renunciar" e substituído pelo vice — o também marechal Floriano Peixoto —, que concluiu o mandato-tampão e foi sucedido por Prudente de Moraes, que entrou para a história não só como o primeiro civil a presidir o país, mas também como o primeiro presidente eleito pelo voto direto.

Seria pedir demais aos eleitores brasileiros — que raramente se lembram em que votaram para deputado — analisarem cuidadosamente a composição das chapas que disputam a Presidência, mas o fato é que nove vices terminaram os mandatos de seus titulares: Floriano PeixotoNilo Peçanha, Delfim Moreira, Café Filho, João Goulart, José SarneyItamar Franco e Michel Temer.

Claro que, não fossem os vices, outros sucessores e outras formas de sucessão haveria, mas seria oportuno questionar a real necessidade da figura do vice nos tempos atuais. Para o reserva é ótimo: a vice-presidência rende palácio à beira do lago, diversas mordomias e, em caso de infortúnio do titular, até a Presidência. Para o país, no entanto, essa peça serve apenas para decoração, quando não para conspirar contra o titular, como fez Michel Temer.

Filho imigrantes libaneses, Michel Miguel Elias Temer Lulia nasceu em Tietê (SP), graduou-se em Direito pela USP, atuou como advogado trabalhista e lecionou na PUC-SP e na Faculdade de Direito de Itu antes de ingressar na vida pública como oficial de gabinete de Ataliba Nogueira, então secretário de Educação do governo de São Paulo. Em 1981, filiou-se ao PMDB (hoje MDB); em 1983, foi nomeado procurador-geral do Estado de São Paulo pelo então governador Franco Montoro; no ano seguinte, assumiu a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo; dois anos depois, disputou uma vaga na Câmara Federal, conseguiu uma suplência e assumiu a cadeira do deputado licenciado Tidei de Lima, tornando-se constituinte.

Ao longo de seis mandatos, Temer presidiu a Câmara em 1997, 1999 e 2009 e o PMDB de 2001 até o final de 2010, quando se licenciou do cargo para assumir a vice-presidência da República. Em maio de 2016, quando Dilma foi afastada, passou de “vice decorativo” a presidente interino e acabou efetivado no cargo em agosto, depois que a titular foi devida e definitivamente defenestrada.

Continua...

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — DÉCIMA PARTE



Dos 38 presidentes que governaram o Brasil nos últimos 130 anos, alguns chegaram ao poder pelo voto popular, outros por eleição indireta e outros, ainda, por golpe de Estado ou linha sucessória. Entre todos eles, ao menos 9 deixaram o campo antes que o apito do árbitro sinalizasse o término da partida. E Bolsonaro pode ser o décimo.

A título de contextualização (a audiência do Blog é rotativa), relembro que a proclamação da República não foi propriamente um ato patriótico, mas sim um golpe militar que expeliu D. Pedro II do trono e pôs termo a quase 70 anos de monarquia — contados a partir o famoso “Grito da Independência” (falo, por óbvio, do tal brado heroico retumbante ouvido pelas margens plácidas da Ipiranga, como Osório Duque Estrada poetizou na letra do Hino Nacional Brasileiro). E também carregou nas tintas romanescas o pintor Pedro Américo, no célebre “Independência ou Morte”, que retrata D. Pedro no dorso de venusta montaria, com a espada em riste, no famoso “momento do grito”. 

Como se sabe (ou dever-se-ia saber), a História costuma ser menos poética à luz detergente dos fatos, que expõe quão romanceadas são as versões criadas a partir deles. No que concerne ao "grito do Ipiranga", retornavam da cidade de Santos, no litoral paulista, naquele fatídico 7 de setembro, o então príncipe regente e sua distintíssima comitiva. Para vencer a Serra do Mar, os viajantes não cavalgavam garbosos corcéis, mas montavam prosaicas mulas — animais mais fortes e resistentes que seus primos mais nobres. E tampouco trajavam as vistosas roupas de gala com que foram retratados: sob o forte calor, vinham eles suados, fedidos e com as vestes sujas e amarfanhadas.

Se as margens do córrego do Ipiranga serviram de pano de fundo para o "heróico brado", isso deveu-se a mero acaso: passava por lá a comitiva quando D. Pedro, acometido de poderosa caganeira, apeou e saiu em busca de uma moita que lhe permitisse esvaziar os intestinos com alguma privacidade. Foi então que se juntou ao grupo um mensageiro vindo de São Paulo, com três missivas endereçadas a sua alteza. 

A primeira epístola, assinada por D. João VI, ordenava ao nobre rebento que regressasse imediatamente a Portugal e se submetesse ao Rei e às Cortes. A segunda, de José Bonifácio, aconselhava-o a romper com Portugal. A terceira, da Imperatriz Leopoldina, dileta esposa do príncipe-regente (noves fora Domitila de Castro Canto e Mello, mais conhecida como Marquesa de Santos), transmitia ao marido o seguinte recado: “O pomo está maduro; colhe-o já, antes que apodreça”. 

Impelido pelas circunstâncias, o príncipe, que já estava mesmo fazendo merda, aproveitou o ensejo para romper os laços de união política com Portugal e declarar a independência do Brasil.

Dali a 67 anos, a não menos romanceada “Proclamação da República” — sobre a qual o livros de história se referem como um ato patriótico protagonizado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que estava longe de ser um republicano convicto — foi, isso sim, um golpe de Estado que expeliu do trono o imperador D. Pedro II em prol da “unidade militar”.  

Deodoro tornou-se o primeiro presidente do Brasil — cargo que exerceu interinamente até ser efetivado por uma eleição indireta (como se vê, começamos bem), e do qual foi deposto, 9 meses depois, por iniciativa de seu vice, o também marechal Floriano Peixoto, que ficaria conhecido como "Marechal de Ferro".

A despeito de a Constituição de 1891 determinar a convocação de novas eleições no caso de vacância na Presidência, Floriano decidiu completar o quadriênio para o qual seu predecessor havia sido “eleito”. E começou sua gestão demitindo todos todos os governadores que apoiavam Deodoro. Houve reação, naturalmente, sobretudo no sul do país, onde uma grave crise política se instalou, em razão da disputa pelo poder. Ainda assim, o Marechal de Ferro conseguiu se manter no poder até 1894, quando passou o bastão ao republicano Prudente de Morais, que entrou para a história como o primeiro presidente civil — e eleito pelo voto direto — do novo regime.

Continua no próximo capítulo.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

UM PODER QUE SE SERVE EM VEZ DE SERVIR É UM PODER QUE NÃO SERVE — PARTE 3



Jair Bolsonaro — tido como “mito” por seus apoiadores de raiz e autodeclarado “Messias que não faz milagre” — ocupa o 38º lugar na lista dos presidentes que governaram o Brasil desde o golpe militar de 1889, que pôs fim à monarquia e guindou a presidente de turno o Marechal Deodoro da Fonseca, a quem os livros de História se referem como “proclamador” da República, mas que na verdade foi o protagonista do primeiro golpe desta República. E além de entrar para a História como o primeiro presidente da (hoje chamada) “República Velha”, o indômito marechal foi o primeiro chefe do Executivo Federal Tupiniquim a renunciar ao cargo: sob ameaça de iminente deposição pelos Republicanos — representados pelo igualmente marechal Floriano PeixotoDeodoro pediu o boné em 23 de novembro de 1891Floriano, que era o vice de plantão, assumiu a presidência, e assim, de golpe em golpe e eleição em eleição, noves fora os governos de exceção, chegamos até aqui. Para onde vamos é outra história, mesmo porque no Brasil até o passado é incerto.

Observação: Para acessar a galeria de fotos do ocupantes dos Palácios do Itamaraty, Catete e Planalto nos últimos 130 anos, clique aqui; caso queira ler as postagens em que esmiúço cada gestão desde o desditoso governo de Jânio Quadros — iniciado em janeiro de 1961 e encerrado menos de 7 sete meses depois, em 25 de outubro, com a renúncia do presidente, que foi o estopim do golpe de ’64 —, os primeiros capítulos foram publicados nos dias 15, 16, 17 e 24 de abril e 3 e 7 de maio, e os finais devem ir ao ar na semana que vem ou na próxima.

Voltando ao tempo presente, o presidente da Câmara Federal, deputado Rodrigo Maia — a quem o departamento de propinas da Odebrecht se referia como Botafogo —, abuzanfou-se sobre a pilha de trinta e tantos pedidos de impeachment protocolados até agora contra o atual mandatário.

De acordo com a Constituição de 1988, qualquer cidadão pode pedir o impeachment do Presidente, cabendo ao presidente da Câmara decidir se o pedido preenche os requisitos formais de admissibilidade e, caso afirmativo, fazer a leitura em plenário e encaminhar a denúncia a uma comissão criada especialmente para analisá-la. Se a denúncia for acolhida, o presidente acusado terá até dez sessões da Câmara para se manifestar, após o que a comissão especial terá até cinco sessões para dar seu parecer, que também deverá ser lido na íntegra no plenário da Casa.

Quarenta e oito horas contadas a partir da apresentação do parecer da comissão especial, o documento deverá ser incluído na “ordem do dia” da Câmara e votado em plenário. Se obtiver maioria qualificada de 2/3 — ou seja, se pelo menos 342 dos 513 deputados considerarem o acusado culpado —, a denúncia será encaminhada ao Senado (do contrário ela é arquivada e o assunto morre aí).

Instaurado o processo de impeachment no Senado, o chefe do Executivo é afastado e substituído pelo vice, devendo, inclusive, desocupar as residências oficiais em Brasília. Caso o julgamento não ocorra em até 180 dias, o acusado reassume a presidência e permanece no cargo até o processo terminar sua tramitação.

Reza o artigo 52 da Constituição, em seu parágrafo único: (...) Funcionará como Presidente (do processo de impeachment) o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.

Se for considerado culpado, o presidente é deposto em definitivo e inabilitado para o exercício de cargos públicos por oito anos. Caso o julgamento tenha ocorrido dentro do prazo de 180 dias, o vice é efetivado e conclui o mandato-tampão; caso o prazo tenha sido excedido, o vice reassume, é efetivado e governa até o final do mandato.

ObservaçãoNa hipótese de morte, renúncia, cassação etc. do vice, a Constituição prevê a convocação de nova eleições, que serão diretas se faltarem mais de 2 anos para o final do mandato. Caso contrário, caberá ao Congresso Nacional escolher o novo presidente. 

Da leitura do artigo 52 da CF infere-se que “com” exerce a função de conjunção subordinativa aditiva, relacionando o que vem depois dela (inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública) ao que vem antes (perda do cargo). Basta esta singela análise gramatical para concluir que a deposição de Dilma sem a suspensão dos direitos políticos ofendeu a Constituição, e que, ao permitir que isso ocorresse, o então presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, cometeu crime de prevaricação (volto a esse assunto mais adiante).

Para entender melhor a questão da maioria qualificada de dois terços, tomemos como exemplo o caso de Dilma, que foi considerada culpada por 61 votos a 20 e condenada à perda do cargo. No entanto, uma tramoia orquestrada pelos presidentes do Congresso e do Supremo — o senador e multirréu Renan Calheiros e o ministro petista Ricardo Lewandowski, respectivamente — evitou a cassação dos direitos políticos da gerentona de araque. Ainda que 42 dos 81 senadores tenham votado a favor da inabilitação da ré (outros 36 votaram contra e houve 3 abstenção), a maioria qualificada de dois terços (ou seja, 54 votos) não foi alcançada.

Explicando melhor: o termo “quórum” remete ao número mínimo de pessoas presentes para a realização do processo de votação de alguma medida administrativa ou legislativa. Por “maioria absoluta” entende-se o primeiro número inteiro superior à metade — sendo inadequado, portanto falar em “metade mais um”; tomando como exemplo o Senado, que é composto por 81 parlamentares, a metade é 40,5 e a maioria absoluta, 41 (e não 41,5).

Para aprovação de lei complementar é exigido o voto da maioria absoluta dos membros do legislativo em ambas as Casas. A rejeição de veto presidencial também depende do voto da maioria absoluta dos deputados e senadores, em sessão conjunta. Já a maioria simples leva em consideração o número de presentes participantes na votação, ou seja, compreende mais da metade dos votantes ou o maior resultado da votação, no caso de haver dispersão de votos. O quórum de maioria simples é exigido para a aprovação de projetos de Lei Ordinária, de Resolução, de Decreto Legislativo e de Medida Provisória.

Observação: Ressalte-se que Medidas Provisórias também podem ser aprovadas por votação simbólica, que é quando não há o registro individual de votos. Nesse caso, é pedido aos parlamentares que permaneçam como estão se forem favoráveis à matéria, cabendo apenas aos contrários se manifestarem.

Já a maioria qualificada é aquela que exige número superior à maioria absoluta — geralmente dois terços ou três quintos. Para a aprovação de Propostas de Emenda Constitucional (PEC), o artigo 60, § 2 º da Constituição Federal diz que (a proposta) "será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros". Já o artigo 86 prevê da Carta estabelece que a acusação contra o presidente da República por crime de responsabilidade será admitida por dois terços da Câmara dos Deputados (conforme vimos em detalhes parágrafos atrás).

Por fim, é importante frisar que tanto a maioria absoluta e quanto a maioria qualificada levam em consideração o número total de membros que legalmente integram o órgão, ao passo que a maioria simples toma por base apenas os presentes à votação.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

RESTAURE-SE O IMPÉRIO DA MORALIDADE OU LOCUPLETEMO-NOS TODOS! (PARTE VII)

O ex-ministro Sepúlveda Pertence definiu o STF como um arquipélago de 11 ilhas incomunicáveis, mas talvez fosse melhor dizer um conjunto de onze estados soberanos, onde cada qual declara guerra contra nações inimigas, negocia alianças diplomáticas e estabelece uma política interna própria, sem mencionar que cada ministro parece ter “uma Constituição para chamar de sua”. 

Num colegiado, sempre houve e haverá maiorias vencedoras e minorias vencidas. O problema é o colegiado funcionar na base da “lei de murici” — ou do “defenda os seus que eu defendo os meus”.

Felipe Recondo, autor de Tanques e Togas e Os Onze, diz que o Supremo precisa de uma espécie de Paz de Vestfália. Mas seria igualmente necessário repensar a forma como seus membros são escolhidos.

Para ter os ombros recobertos pela suprema toga, segundo o artigo 101 da Constituição, o indicado pelo Presidente precisa ter entre 35 e 65 anos de idade, notável saber jurídico, reputação ilibada e a indicação aprovada pela CCJ do Senado e chancelada pelo plenário da Casa. Portanto, não é preciso ser juiz de direito, advogado inscrito na OAB ou mesmo bacharel em Ciências Jurídicas. 

Para cair nas graças do mandatário de turno é preciso tomar muita tubaína com ele (caso de Nunes Marques) ou ser terrivelmente evangélico (caso de André Mendonça). Infelizmente para Augusto Aras, ser terrivelmente puxa-saco não basta. 

Quanto à aprovação pelo Senado, nada que o périplo do “beija-mão” não resolva. A sabatina é um jogo de comadres — em 132 anos de república, as poucas rejeições ocorreram em 1894, no governo do marechal Floriano Peixoto, sendo o caso de Cândido Barata Ribeiro o mais emblemático (Floriano indicou outros onze nomes para o STF e o Senado rejeitou quatro).

Atualmente, Gilmar Mendes é o único ministro que não foi indicado por Lula ou por Dilma (noves fora os apadrinhados de Bolsonaro). Juntamente com a abjeta PEC da Reeleição, o semideus togado encarna a verdadeira herança maldita deixada pelo governo de Fernando Henrique.  

Defensor incondicional da Lava-Jato e inimigo figadal dos criminosos de colarinho branco quando os investigados eram Lula e os petralhas, Gilmar — a quem Augusto Nunes apelidou de Maritaca de Diamantino — passou a articular o sepultamento da prisão em segunda instância (que ele próprio defendia com unhas e dentes) e a conceder habeas corpus a quem fosse preso preventivamente pela força-tarefa de Curitiba. Aliás, foi ele quem botou água no chope de Lula quando Dilma nomeou o petralha ministro-chefe da Casa Civil (com o nítido propósito de lhe restituir o foro privilegiado).

Em 2016, ao fundamentar seu voto (sobre a prisão em segunda instância), Gilmar anotou: Não se conhece no mundo civilizado um país que exija o trânsito em julgado; em princípio, pode-se executar a prisão com a decisão em segundo grau [...] uma coisa é ter alguém como investigado, outra coisa é ter alguém como denunciado, com denúncia recebida, e outra, ainda, é ter alguém com condenação...”. Em 2017, porém, passou a começou a admitir publicamente que poderia mudar de posição se houvesse um novo julgamento.

Mendes mandou soltar — não uma, mas três vezes! — o chefe da máfia dos ônibus no Rio Jacó Barata Filho. Apesar de os procuradores da Lava-Jato pedirem seu impeachment, o supremo laxante não se deu por impedido de julgar o caso: “O fato de ser padrinho de casamento da filha do acusado, disse ele, “não se enquadra nas regras legais que determinam o afastamento de um magistrado para julgar uma causa em função de relação íntima com uma das partes”.

Em 2019, quando a prisão em segunda instância voltou à suprema pauta, Mendes votou contra, juntamente com Rosa WeberRicardo Lewandowski, Celso de MelloMarco Aurélio e o então presidente da corte, Dias Toffoli — que, como Gilmarera favorável ao cumprimento antecipado da pena.

No Brasil, criminosos que têm cacife para bancar os honorários astronômicos cobrados por causídicos estrelados (caso dos políticos corruptos, que pagam os chicaneiros com dinheiro desviado do Erário) têm acesso a um formidável cardápio de recursos nas 4 instâncias do Judiciário, e assim conseguem empurrar seus processos com a barriga até que a prescrição (ou sua morte, o que ocorrer primeiro) impeça a punição.

ObservaçãoA defesa de Luiz Estevão ingressou com 120 recursos até o salafrário ser encarcerado, e Paulo Maluf só foi recolhido à Papuda depois que seu processo tramitou por quase duas décadas — mas bastaram alguns meses para o turco lalau ser posto em prisão domiciliar por uma decisão tomada de ofício por Dias Toffoli.

A pergunta que se coloca é: quantas vezes o sujeito precisa ser condenado para começar a pagar sua dívida com a sociedade? Duas vezes, como acontece na maioria de países livres, civilizados e bem-sucedidos, são mais que suficientes; se houver um erro na condenação em primeira instância, o juízo colegiado poderá repará-lo; se não o fizer, é porque não houve erro, e ponto final. Obviamente, isso não significa que os réus sejam impedidos de apelar aos tribunais superiores, mas apenas que não recorram em liberdade, sob pena de vir a ser presos no dia de São Nunca.

Defender o princípio constitucional da presunção da inocência sem compactuar com a impunidade  exige uma dose cavalar de hermenêutica (interpretação que os juristas fazem da lei para além de sua letra fria). Vale destacar que: 1) A presunção de inocência exaure-se após a confirmação da sentença penal pelo tribunal de segundo grau; 2) Os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STJ ou STF, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito. 

Não faltam argumentos abalizados contra e a favor da prisão em segunda instância, mas é preciso levar em conta o “standard de prova” — regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada (para informações mais detalhadas, clique aqui).

standard é preenchido quando o grau de confirmação alcança o padrão exigido entre os quatro níveis possíveis: 1) prova clara e convincente; 2) prova mais provável que sua negação; 3) preponderância da prova; 4) prova além da dúvida razoável — sendo este último o mais exigente e, portanto, utilizado na sentença penal. 

Uma vez que a exigência probatória é menor para receber uma acusação ou decretar uma medida cautelar do que para proferir uma sentença condenatória, é perfeitamente sustentável um rebaixamento do standard probatório conforme a fase procedimental. É por isso que o CPP fala em indícios razoáveis, indícios suficientes etc. para decisões interlocutórias com menor exigência probatória.

A “prisão em quarta instância” é uma jabuticaba brasileira que destoa completamente da prática de vários países desenvolvidos, onde criminosos saem algemados do tribunal onde são condenados em primeira instância, e nem por isso se considera que haja qualquer violação do direito de defesa ou do devido processo legal. Aqui, como dizia Maquiavel, "aos amigos, os favores; aos inimigos, todo o rigor da lei".

A análise da culpabilidade do réu termina na segunda instância — os tribunais superiores verificam apenas questões processuais, tanto que eles não podem inocentar ninguém; cabe-lhes, no máximo, determinar o reinício do processo quando e se encontram alguma irregularidade. 

Como bem disse o desembargador Abel Gomes, ao fundamentar seu voto pela rejeição do habeas corpus de Michel Temer"se tem rabo de jacaré, couro de jacaré e boca de jacaré, então não pode ser um coelho branco".

Meliantes que conseguem dominar o labirinto de ações e recursos adiam ao máximo o trânsito em julgado de suas sentenças. Sabedora de que o dia em que terá de ir para a cadeia está distante ou jamais virá, essa caterva se sente estimulada a seguir delinquindo em vez de cooperar com as autoridades. A leniência com o crime destrói o tecido social de um país, e constitui uma mazela que merece tanta atenção quanto problemas socioeconômicos, como o desemprego. 

Continua...

sábado, 9 de março de 2024

NÃO HÁ NADA COMO O TEMPO PARA PASSAR E O VENTO... CONTINUAÇÃO



Muita coisa precisa mudar para o Brasil deixar de ser um país com muitas leis e pouca vergonha na cara e se tornar uma democracia como manda o figurino (detalhes nesta postagem). A Constituição Cidadã foi uma conquista, mas não a panaceia esperada após 21 anos de ditadura. Ao discursar na cerimônia de promulgação, o deputado Ulysses Guimarães frisou: "A Constituição certamente não é perfeita; ela própria o confessa ao admitir a reforma." E haja reforma! em 35 anos de vigência, nossa Carta Magna foi emendada 128 vezes. 

Infelizmente, podem-se contar nos dedos as PECs que visaram aos interesses da população. Um exemplo de emenda que ficou pior que o soneto foi a da reeleição — um casamento que parecia ser o passaporte para o paraíso, mas se transformou na antessala do inferno. Ela foi promulgada na primeira gestão de Fernando Henrique, ao som do tilintar de verbas e das vozes de deputados pilhados falando sobre uma "cota federal" destinada à compra dos votos (detalhes nesta postagem). 

Como "quem parte e reparte e não fica com a melhor parte é burro ou não tem arte", o tucano de plumas vistosas impulsionou sua recandidatura com um ruinoso populismo cambial. Reeleito, desvalorizou o real no primeiro mês de seu segundo mandato. Mas o problema das consequências é que elas sempre vêm depois

Observação: Em 2020, com 23 anos de atraso, o eterno presidente do honra do PSDB reconheceu o desastre político que produziu, e que foi uma ingenuidade "imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a eleição". Mas o problema das autocríticas, que elas sempre chegam tarde.

A maioria dos presidenciáveis prometeu propor o fim da reeleição, mas nenhum manteve a promessa depois de se aboletar no trono do Planalto. E Bolsonaro levou a perversão às fronteiras do paroxismo: a despeito de todo o populismo eleitoral, tornou-se o primeiro presidente da história a pleitear um segundo mandato e ser barrado nas urnas. Ao tentar um golpe de Estado, imaginou que o impossível é apenas um vocábulo que traz o possível injetado dentro de si. 
 
O Senado deve votar em breve o fim da recondução ao cargo de presidente, governador e prefeito, o aumento dos mandatos de quatro para cinco anos e a unificação de eleições municipais e gerais. Apôs expor as alternativas a Rodrigo Pacheco e líderes partidários, o relator Marcelo Castro, virtual coveiro da reeleição, exaltou o óbvio: "Não está funcionando.

Observação: Lula é contra a mudança, mas a opinião de um admirador confesso de Maduro, Castro et caterva, que culpa a Ucrânia pelo conflito no Leste Europeu e diz que democracia é "um conceito relativo", não pode ser levada a sério. 
 
Outra mudança que se impõe tem a ver com o STF, mais exatamente como a forma como são indicados os substitutos dos ministros que trocam a suprema toga pelo supremo pijama — ou pelo pijama de madeira, como aconteceu com Menezes Direito em 2009 e Teori Zavascki em 2016 
—, lembrando que a aposentadoria é compulsória quando o togado completa 75 anos, mas nada impede suas excelências de antecipá-la, como fez Joaquim Barbosa em 2012, aos 59 anos. 
 
De acordo com o artigo art. 104 da CF, os candidatos devem ser brasileiros natos, ter entre 35 e 65 anos e gozar de reputação ilibada e notável saber jurídico. Não é preciso ser juiz de carreira, advogado ou mesmo bacharel em Direito. Na prática, basta cair nas boas graças do PR de turno (que é o responsável pela indicação), de pelo menos 14 dos 28 integrantes da CCJ do Senado e 41 dos 81 senadores na sessão plenária. 

Observação: A sabatina é eminentemente protocolar: em 134 anos de república, os senadores rejeitaram apenas 5 indicações, todas durante o governo de Floriano Peixoto (confira essa e outras curiosidades no estudo publicado pelo decano Celso de Mello em 2014).
 
A posse acontece numa cerimônia realizada no próprio STF, quando então o novo minitro veste a toga e se acomoda na poltrona de onde passará a julgar e condenar os pobres, absolver os ricos, soltar traficantes e chefes de organizações criminosas e amoldar a Constituição para favorecer políticos corruptos e outros criminosos de estimação. 

Entre juízes auxiliares, estagiários, capinhas e terceirizados, o Supremo emprega 2.500 funcionários (média de 222 por ministro) e custa mais de R$ 1 bilhão por ano aos contribuintes. E enquanto os "padrinhos" ficam no Planalto por 4 ou 8 anos (Lula é um ponto fora da curva, mas isso é outra convexa), seus apadrinhados permanecem inamovíveis até sabe Deus quando. O impeachment é previsto na Constituição, e nunca faltaram pedidos, mas nenhum ministro jamais foi penabundado.
 
Continua...