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terça-feira, 23 de agosto de 2022

O IMPEACHMENT QUE NÃO HOUVE (CONTINUAÇÃO)

 

"Impeachment" é uma adaptação anglófona do francês "empêcher" (impedir) que, no âmbito da política, designa o impedimento do exercício do mandato de uma autoridade por má conduta. 

Entre 1990 e 2020, houve pelo menos 272 pedidos de impeachment contra 132 diferentes chefes de Estado em 63 países no mundo.
 
Algumas nações estabelecem bases relativamente subjetivas para o impeachment. Na França, o presidente pode ser afastado por qualquer "violação de seus deveres que seja claramente incompatível com o exercício de seu mandato"; na Tanzânia, caso o mandatário "se comporte de maneira que diminua a estima do cargo". Dezessete países dão a uma "câmara alta" — como o nosso Senado — a palavra final sobre o processo, e 61 concedem-na a tribunais ou conselhos constitucionais.
 
No Brasil, o Congresso decide se o presidente deve ser afastado por crime de responsabilidade, mas é o STF que garante a legitimidade do processo. De acordo com a Constituição Federal e a Lei do Impeachment, são considerados crimes de responsabilidade atentar contra a existência da União; o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do País; a probidade na administração; a lei orçamentária; e o cumprimento das leis e das decisões judiciais. 

Observação: Houve 5 processos de impeachment ao longo de nossa história republicana. O primeiro foi contra Getúlio Vargas. O parlamento rejeitou o pedido, mas a pressão resultou no "suicídio" do caudilho (quem se mata com tiro no peito?). 
 
Além de proporcionar a chance de um "hard reset" a democracias presas em crises de natureza política, o impeachment funciona como freio contra abusos e ameaças de mandatários com vocação para tiranete, mas também defender o país da incapacidade, da traição e da negligência de um presidente. 

Observação: A democracia é um modelo político superior às ditaduras não porque carrega uma fórmula mágica que elege os melhores, mas porque tem instrumentos capazes de impedir que os piores permaneçam no poder. 
 
A melhor resposta para um apologista desqualificado, incompetente, desacreditado e saudoso da ditadura ocupando a presidência da República é a própria democracia. Bolsonaro coleciona 145 pedidos de impeachment — mais que a soma dos 31 de Temer, 68 de Dilma e 37 de Lula

Ao longo da nossa história republicana, ao menos quatro presidentes renunciaram: Deodoro da Fonseca em 1891; Getúlio Vargas em 1945; Jânio Quadros em 1961; e Fernando Collor em 1992. Impeachments, houve dois na era pós-ditadura: o de Collor em 1992, e o de Dilma em 2016.
 
O problema é que não há impeachment sem vontade política, e a vontade política advém da pressão popular. Insatisfação sem protesto nas ruas não derruba presidente. No passado recente, o Brasil venceu a inaptidão de líderes à direita e à esquerda, que foram apeados mediante processos de impeachment, mas sempre com multidões tomando as ruas. 
 
Continua...

segunda-feira, 20 de junho de 2022

PEC DO EQUILÍBRIO ENTRE OS PODERES

 

Durante a cerimônia de promulgação da nossa Carta Magna, Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara Federal, assim se pronunciou: “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma.” 

 

O fato de a Constituição ter sido gestada em meio à ressaca de 21 anos de ditadura militar talvez explique por que a palavra “direito” foi mencionada 76 vezes, “dever”, em quatro oportunidades, e “produtividade” e “eficiência”, duas e uma vez, respectivamente. Talvez explique também por que a competência para decidir sobre a abertura de um processo de impeachment foi atribuída ao presidente da Câmara dos Deputados, e a de processar o mandatário por crimes comuns, ao Procurador Geral da República. 


O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? Na melhor das hipóteses, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real. Nada justifica distribuir direitos a rodo sem apontar a origem dos recursos que devem bancá-los. Ou não haver prazo para o presidente da Câmara e o PGR analisarem as denúncias contra o chefe do Executivo e submetê-las a seus pares ou ao STF, conforme o caso. 

 

Os políticos que elegemos para exercer o poder em nosso nome fazem o que querem, como querem e quando querem, sem prestar contas a ninguém. Não raro, legislam em benefício próprio, seja para aumentar a burocracia que os mantém, para angariar votos para a próxima eleição ou para proteger seus pares. Em tese, cabe ao eleitor decidir o destino de políticos que mijam fora do penico, mas um título de eleitor nas mãos de um descerebrado é tão perigoso quanto uma caixa de fósforos nas mãos de um chimpanzé num paiol de pólvora.

 

Nossas leis são criadas por uma caterva que se elege para roubar e rouba para se reeleger. Quando um desses "representantes do povo" quebra o decoro ou comete algum ato reprovável, seus pares se apressam a mudar a lei para “transformar o errado em certo”. Mas reclamar com quem, se demos à chave do galinheiro à raposas que encarregam outras raposas de investigar o sumiço das galinhas?

 

Não há país que cresça quando a quase totalidade do Orçamento é consumida pela folha de pagamento do funcionalismo e benefícios e vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são contornadas via aumento da carga tributária ou por remédios institucionais cada vez menos eficazes. O atual sistema representativo está falido, com partidos políticos que representam seus membros e mecanismos que favorecem o fisiologismo, o paternalismo e o patrimonialismo, mas nada dizem aos eleitores. O poder econômico quase sempre prevalece sobre o interesse dos cidadãos em geral, atrelando perigosamente a corrupção ao sistema político.

 

Os dias atuais não guardam a menor semelhança com o futuro imaginado pelos constituintes de 1988, que pretenderam assegurar o bem-estar e o desenvolvimento da nação por força de cláusulas pétreas que exaurem o Estado a pretexto de garantir direitos sociais. Direitos de quem, cara pálida? Só se for daqueles que “são mais iguais perante a lei que os outros”.

 

Os ministros do STF são indicados pelo chefe do Executivo. A sabatina no Senado não passa de mera formalidade. Nenhum nome foi rejeitado desde a redemocratização, a despeito da enxurrada de currículos duvidosos. Dias Toffoli, por exemplo, foi reprovado em dois concursos para juiz de primeira instância em São Paulo, mas recebeu a suprema toga de Lula em retribuição aos serviços prestados ao então presidente e a seu espúrio partido.


Para a vaga do ex-decano Celso de Mello, o atual mandatário indicou um desembargador piauiense “com quem tomou muita tubaína”, e para a de Marco Aurélio, um pastor “terrivelmente evangélico”, apadrinhado pela primeira-dama, que comemorou sua posse com pulinhos e gritinhos.

 

Não há limite para a recondução do Procurador-Geral ao cargo, nem tampouco a obrigatoriedade de escolher o chefe do Ministério Público Federal entre a partir da lista tríplice elaborada pelo próprio órgão, que Bolsonaro ignorou quando indicou Augusto Aras em 2019 e quando o reconduziu ao cargo em 2021. 

 

Tramitam na Câmara propostas de emenda à Constituição que mudam esses critérios (PEC 259/16 e apensados). Uma delas (PEC 225/19) prevê que os poderes Legislativo e Judiciário também indiquem ministros (em sistema de rodízio), e que o indicado seja juiz de segunda instância ou advogado com pelo menos 10 anos de prática, com mestrado na área jurídica. Além disso, o mandato dos togados, que se estende até a aposentadoria compulsória, aos 75 anos de vida, passaria a durar 12 anos.

 

Sobre a instável relação entre os Poderes, a penúltima piada pronta teve como protagonista o deputado bolsonarista Domingos Sávio. Apoiado pela liderança do governo na Câmara, ele vem colhendo assinaturas em prol de uma PEC que permitiria ao Legislativo sustar decisões do STF e combater o “ativismo judicial”. 


“É uma proposta que nós estamos chamando de ‘PEC do Equilíbrio entre os Poderes’. Quando o Supremo toma uma decisão inconstitucional a quem você vai recorrer? Só se for a Deus”, afirmou o autor do projeto.

  

A suspensão ocorreria por meio de um decreto legislativo apresentado pela maioria dos deputados e senadores e votado por 3/5 dos congressistas. Ou seja: o Congresso poderia, sem ter unanimidade, derrubar uma decisão não unânime do STF. Trata-se de uma evidente retaliação, mais um capítulo do embate entre os Poderes sustentado por bolsonaristas. 


Líder do Centrão e presidente da Câmara, Arthur Lyra diz não ter nenhuma relação com a proposta e que os deputados têm autonomia para propor mudanças na legislação. Outro líder do Centrão, Marcos Pereira, também negou participação na iniciativa.

 

Vamos acreditar.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

A HORA DO IMPEACHMENT — PARTE II


Tudo é questão de ponto de vista. Os 106.296 pontos de fechamento do Ibovespa, na última sexta, ficaram parecendo uma alta depois de o índice ter atingido 102.854 pontos no pior momento do dia. Ainda assim, trata-se de uma queda de 1,34%.

Para minimizar o estrago causado pelo colapso do teto de gastos do país em prol de medidas populistas, Bolsonaro Guedes tentaram terminar o dia menos pior com uma coletiva de imprensa, e obtiveram sucesso até certo ponto, embora o posto Ipiranga tenha reafirmado que manterá tudo aquilo que disseminou o caos na semana: o Bolsa Família turbo ficará fora do teto de gastos, que agora é retrátil — voltará a ser usado em algum momento — e que haverá ainda o pagamento de R$ 400 aos caminhoneiros, inconformados com a alta nos preços dos combustíveis.

Guedes deixou claro que ficará ao lado do chefe até o fim, diferentemente da sua equipe, que debanda a cada nova medida fiscalmente irresponsável. Foi o único consolo para a Faria Lima — se nem o "superministro" consegue controlar Bolsonaro e a turma do Centrão, é bom nem pensar no que aconteceria se ele pedisse o boné.

"Entendemos que teto é símbolo, mas não deixaremos passarem fome para tirar 10 em fiscal", afirmou Guedes durante a entrevista. O problema é que estão elevando os gastos sem parar, de auxílio em auxílio, sem cortar outras despesas.

No início, a falastrice da dupla até que pegou bem — apesar de todo o caos e das quedas em Nova York, a B3 chegou a sair do vermelho. Mas a alta foi pífia e não se sustentou, e o balanço da semana causaria arrepios até em Stephen King, o mestre do terror: a Bolsa acumulou queda de 7,3%, o dólar fechou a semana com alta de 3,16% e os juros futuros seguiram escalando o Everest chamado risco fiscal brasileiro.

ObservaçãoNoves fora Bolsonaro, ninguém ganha com a permanência de Guedes à frente da Economia. Na verdade, todo mundo perde — como vem perdendo desde quando ele e o capetão assumiram seus cargos. Sob essa parelha, o Brasil caiu de oitava para décima terceira economia, voltando ao mapa da fome com o surgimento de dezenas de milhões de miseráveis. O economista liberal que colocaria o país nos trilhos era uma fraude — a exemplo da fraude que o nomeou. Ambos estão destruindo o Brasil, e agora falam em privatizar a Petrobras o que seria bom, não fosse o fato de a intenção de mimí e cocó ser obter mais recursos para vitaminar o Bolsa Família e torrar na campanha presidencial. Guedes passou de ministro a cabo eleitoral e provável tesoureiro da campanha do capetão. E salve-se quem puder, pois tudo indica que essa junta reeditará o desastre produzido pela gerentona de araque buscando a reeleição a qualquer custo, quebrando o País e depois dizendo “tchau queridos”. Foi constrangedora (para não dizer patética) a coletiva em que Bolsonaro disse que está com Guedes e não abre (faria melhor se não abrisse a boca), enquanto Zero "Rachadinha" Um, da primeira fila, liderava o cordão dos puxa-sacos. Até onde a vista alcança, ao terror das empregadas domésticas resta somente o apoio da Famiglia Bolsonaro (e só Deus sabe até quando). Se serve de consolo para o povão que padece sob o capetão, seu algoz será vítima de Guedes no ano que vem, e não se reelegerá, pelo bem do Brasil.

Impeachment vem do inglês "to impeach" — o ato de incriminar ou acusar, especialmente uma autoridade, de má conduta ou traição. A expressão é uma adaptação anglófona do francês, "empêcher", que em português significa “impedir”. Em sentido literal, é o processo que impossibilita as ações de alguém. Na política, é o impedimento do exercício do mandato de uma autoridade.

Esse conceito foi colocado em prática pela primeira vez no século XIV, no longínquo ano de 1376, quando um britânico chamado Lord Latimer foi alvo de afastamento da Câmara dos Comuns — o Parlamento Inglês —, acusado, entre outras coisas, de corrupção. Os autores da Constituição dos Estados Unidos adaptaram o sistema britânico e ajudaram a espalhar o conceito pelo mundo. Hoje, 94% dos países presidencialistas incluem mecanismos constitucionais capazes de destituir suas autoridades. E não é como se esse fosse um recurso pouco utilizado. De 1990 a 2020, num intervalo de apenas três décadas, houve pelo menos 272 acusações de impeachment contra 132 diferentes chefes de Estado, em 63 países no mundo — só a Noruega apelou para esse dispositivo oito vezes desde 1927.

Embora a saída definitiva do cargo seja algo relativamente raro, isso ocorreu aproximadamente uma vez a cada dois anos nos últimos 30 anos — foram os casos, por exemplo, do filipino Joseph Estrada, em 2001, e da coreana Park Geun-hye, em 2017. Entre 1978 e 2019, a América Latina viu dez presidentes de seis países serem destituídos do cargo por meio do impeachment — ou da renúncia — como tentativa de fugir do impeachment. Isso aconteceu, por exemplo, com o venezuelano Carlos Andrés Pérez, em 1993, e com o peruano Pedro Pablo Kuczynski, em 2018.

O Brasil teve cinco processos de impeachment contra presidentes da República. O primeiro deles em 1954, contra Getúlio Vargas, que acabou rejeitado pelo parlamento, mas a pressão política foi tamanha que Vargas se suicidou dois meses depois, com um improvável tiro no peito. Dada a morte do caudilho, Café Filho, seu vice, herdou seu lugar, mas logo se afastou do cargo por problemas de saúde. A posição mais alta do país foi ocupada pelo então presidente da Câmara, um sujeito de quem a maioria de nós nunca ouviu falar: Carlos Luz.

Luz entrou para a história por dois motivos. Em primeiro lugar, é dele o recorde do mandato presidencial mais curto da República — míseros 3 dias. Em segundo lugar, ele foi o primeiro presidente brasileiro afastado do cargo por um processo de impeachment.

Quando Café Filho recebeu alta médica e tentou reassumir a presidência, ele também acabou afastado — o que significa dizer que tivemos dois processos bem-sucedidos de impeachment em 1955. Para além desses, Fernando Collor, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016, tiveram o mesmo destino.

Muitos países estabelecem bases relativamente subjetivas para o impeachment. Na França, o presidente pode ser afastado por qualquer "violação de seus deveres que seja claramente incompatível com o exercício de seu mandato". Na Tanzânia, o presidente pode ser destituído se ele "se comportar de maneira que diminua a estima do cargo de presidente".

Dezessete países dão a uma câmara alta — o Senado — a palavra final sobre o impeachment; 61 concedem essa palavra a tribunais ou conselhos constitucionais. No Brasil, os senadores decidem se o presidente deve ser afastado, mas é o STF que garante a legitimidade do processo.

Um mandatário tupiniquim sofre impeachment quando comete um crime de responsabilidade, conforme previsto na Constituição Federal e na Lei do Impeachment. São crimes de responsabilidade atentar contra 1) a existência da União; 2) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; 3) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; 4) a segurança interna do País; 5) a probidade na administração; 6) a lei orçamentária; e 7) o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Jair Messias Bolsonaro recebeu cerca de 140 pedidos de impeachment desde que assumiu a presidência. Ao todo, esses pedidos foram assinados por mais de 1.550 pessoas e 550 organizações. Nenhum presidente na história do Brasil recebeu tantos pedidos de impeachment — Dilma teve 68; Lula, 37; Temer, 31; e FHC, 24. Ou seja, é preciso somar o total de pedidos de impeachment dos últimos 20 anos para ombrear com o número alcançado pelo mandatário de turno em 1.000 dias de desgoverno. Entre eles há a lista de dezenas de crimes, em diferentes categorias — incluindo o repetido discurso de ameaça à independência e harmonia entre os Poderes.

O impeachment oferece às democracias presas em crises de natureza política a chance de um "hard reset", além de funcionar como freio contra os abusos e as ameaças de poder, mecanizado para defender o país da incapacidade, da traição e da negligência de um presidente.

A democracia é um modelo político superior às ditaduras não porque carrega uma fórmula mágica que elege os melhores, mas porque tem instrumentos capazes de impedir que os piores permaneçam no poder.

Ao fim e ao cabo, a melhor resposta para um apologista de ditadura ocupando a presidência da República — desqualificado, impotente e desacreditado pelas demais instituições republicanas — é a própria democracia. Mas não há impeachment sem participação popular.

Insatisfação política sem protesto nas ruas não promove afastamento de presidente, mas nota de repúdio. No passado recente, com multidões tomando as ruas, nosso país venceu a inaptidão de líderes à direita e à esquerda, condenados pelo processo de impeachment. É a hora e a vez desse destino alcançar Jair Messias Bolsonaro.

Com Tássia Kastner, Guilherme JaquesRodrigo da Silva

P. S. Retomaremos nossa sequência histórica na próxima quarta-feira.

domingo, 22 de agosto de 2021

O PIOR TIPO DE CEGUEIRA É A CEGUEIRA MENTAL

 

A CEGUEIRA É UMA QUESTÃO PRIVADA ENTRE A PESSOA E OS OLHOS COM QUE NASCEU

Com seu estilo característico de escrever e capacidade única para o uso de metáforas e simbolismos, José Saramago, Nobel de Literatura em 1988, descreveu em ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, publicado em 1995, a situação ocorrida em uma comunidade após o aparecimento de uma infecção com transmissão rápida, que provoca cegueira nas pessoas.

Na obra, além de retratar de forma genérica vários tipos de pessoas que compõem uma sociedade que progressivamente vai ficando cega a tudo que ocorre ao seu redor, o escritor português elencou diversas frases que poderiam descrever nosso surreal cotidiano. Para não me estender demais neste preâmbulo, cito apenas três: "Se queres ser cego, sê-lo-ás"; "A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente"; "A cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu." não há nada que se possa fazer a respeito."

A cegueira pode ser congênita ou adquirida, reversível ou irreversível. Segundo o Censo de 2010, um quarto da população brasileira tem algum tipo de deficiência, sendo a visual a modalidade mais comum (cerca de 20%). Se considerados aqueles que não conseguem ver de forma alguma ou que têm grande dificuldade, o índice cai para 3,4%. De acordo com a OMS, 2,2 bilhões de pessoas têm algum tipo de deficiência visual, sendo 1 bilhão com uma condição que poderia ser prevenida ou tratada, como catarata, opacidade da córnea; tracoma e deslocamento da retina (os dados são de 2019).

Quanto ao cego que não quer enxergar — que o senso comum aponta como "o pior cego" —, trata-se de um problema fácil de solucionar. Considerando que os efeitos tendem a desaparecer quando se lhes suprime a causa, basta anular a motivação — ou substitui-la por outra mais atraente.

Segundo os historiadores, a expressão "pior a emenda que o soneto" surgiu quando Bocage recebeu de um jovem aspirante a poeta um soneto para correção e o devolveu sem nenhuma marcação. Perguntado pelo pupilo se não havia nada a ser corrigido, o mestre respondeu que, dada a quantidade de erros, "a emenda ficaria pior que o soneto".

Dito isso, dou o preâmbulo por encerrado e passo ao mote desta postagem, começando por dizer que a eleição de Bolsonaro é o exemplo pronto e acabado da emenda que ficou pior que o soneto, já que, para evitar a volta do lulopetismo corrupto, abrimos a Caixa de Pandora — na qual, segundo a mitologia grega, Zeus teria trancafiado todos os males do mundo —, e assim demos azo ao bolsonarismo boçal. Mas de nada adiante chorar o leite derramado, ou por outra, mais vale acender a vela do que amaldiçoar a escuridão.

Falando em escuridão, quais seriam os motivos da cegueira do presidente da Câmara e do Procurador-Geral da República? Seria estupidez atribuir à estupidez o fato de um político experiente como o deputado-réu Arthur Lira manter sob o respeitável buzanfã 133 pedidos de impeachment do chefe do Executivo enquanto este último continua cometendo crimes de responsabilidade em escala industrial. Da mesma forma, seria ingenuidade atribuir à ingenuidade o fato de uma raposa velha como o jurista soteropolitano que comanda o Ministério Público Federal não se dar conta dos crimes comuns cometidos por Bolsonaro ao longo dos últimos 32 meses.

O problema, a meu ver, é que a Constituição Cidadã concentrou nas mãos de uma única pessoa — no caso o PGR — o poder de definir o destino de um presidente da República que viesse a cometer crimes comuns. E fez o mesmo no caso de crimes de responsabilidade, já cabe exclusivamente ao presidente da Câmara dos Deputados decidir se dá andamento ou manda para o arquivo eventuais pedidos de impeachment do chefe do Executivo (mais detalhes nesta postagem).

Por alguma razão, os constituintes não estabeleceram um prazo para os ocupantes dos cargos em questão se desincumbirem da missão que lhes seria conferida — o que, mais adiante, se revelaria um erro crasso. Aliás, ao discursar durante a promulgação da nova Carta, o próprio Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, assim se pronunciou: "A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma."

Reza o artigo 5º da Constituição Federal que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes(...)". Mas nenhum de seus parágrafos, incisos ou alíneas dispõe o que se vê na prática, ou seja, alguns serem "mais iguais" que os outros.

Num passado não muito remoto, quando éramos felizes e não sabíamos, o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna estabelecia que "Todo o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido". Ao rascunharem a versão promulgada em 1988, os constituintes promoveram uma alteração sutil na redação do texto, que passou a ser "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

Assim, passamos de suseranos a vassalos de nossos "representantes", que, em tese, exercem o poder em nosso nome, mas, na prática, fazem o que querem, como querem e quando querem, sem prestar contas a ninguém e, não raro, em benefício próprio, seja para aumentar a burocracia que os mantém, para angariar votos para a próxima eleição, para proteger os seus "companheiros representantes", e por aí segue a procissão.

Também em tese, cabe ao povo decidir, nas urnas, o destino dos políticos que mijam fora do penico. Na prática, no entanto, a teoria é outra. A pretexto de tornar as eleições "democráticas", o "direito de voto" é estendido a todos os brasileiros, o que seria louvável se a maioria do eleitorado tupiniquim não fosse composta por analfabetos, ignorantes, apedeutas e desinformados. E um título de eleitor, nas mãos de um descerebrado, é tão perigoso quanto uma caixa de fósforos nas mãos de um chimpanzé num paiol de pólvora.

Num país do futuro que nunca chega, onde até o passado é incerto, é o poste que mija no cachorro. Nesse "samba do crioulo doido", as leis são criadas por políticos que se elegem para roubar e roubam para se reeleger. Quando um "representante do povo" quebra o decoro parlamentar ou comete algum ato reprovável aos olhos de seus "representados", seus pares se apressam em mudar a lei para "transformar o errado em certo". Em suma: demos à chave do galinheiro a raposas que encarregam suas "irmãs" de investigar o sumiço das galinhas. Reclamar com quem?

A única maneira de despertar o "gigante adormecido" e evitar que ele tenha uma síncope ao tomar pé da situação seria devolver o Brasil aos silvícolas, pedir desculpas pelo estrago e começar tudo outra vez. Para limar do Executivo, do Legislativo e do Judiciário os usurpadores travestidos de representantes do povo, só mesmo uma nova Carta Magna, "menos cidadã e mais pé no chão". A que temos há 32 anos foi remendada mais de uma centena de vezes (em comparação, a Constituição dos EUA, promulgada dois séculos antes da nossa, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas ao longo das últimas 23 décadas).

Os constituintes de 1988 distribuíram diretos a rodo, mas jamais apontaram de onde viriam os recursos para bancá-los. No texto promulgado, a palavra "direito" é mencionada 76 vezes; "dever", em quatro oportunidades; "produtividade" e "eficiência" aparecem duas e uma vez, respectivamente. O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? Na melhor das hipóteses, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real.

A atual pandemia sanitária e suas consequências deletérias em nossa já combalida economia, somadas à constante disputa entre os Poderes, à desmoralização do mundo político, à crise de representação e à disfuncionalidade crônica do Estado nascido dos sonhos dos constituintes de 1988, apontam para uma única solução: repensar os alicerces de nosso Estado Democrático de Direito, em especial no que concerne ao sistema político vigente, e adotar as medidas necessárias ao restabelecimento da normalidade e da pacificação institucional pelas quais anseia a sociedade (ou a parcela pensante da sociedade).

Pode-se argumentar que momento atual não seja o mais propício, e não há como discordar desse argumento. Mas é inevitável reconhecer que já passou da hora de considerarmos seriamente a possibilidade de reescrever a Constituição, visto que a atual, por sua ânsia de a tudo regular e prover, trava o desenvolvimento pleno da vida nacional.

Não há país que cresça quando a quase totalidade do Orçamento é consumida pela folha de pagamento do funcionalismo e benefícios e vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são contornadas via aumento da carga tributária — o que atualmente é impensável e impraticável — ou por remédios institucionais cada vez menos eficazes. Para além disso, o atual sistema representativo está falido, com partidos políticos representam-se a si mesmos e mecanismos que favorecem o fisiologismo, o paternalismo e o patrimonialismo, mas nada dizem aos eleitores. O poder econômico quase sempre prevalece sobre o interesse dos cidadãos em geral, atrelando perigosamente a corrupção ao sistema político.

É certo que contexto atual não guarda a menor semelhança com o futuro imaginado pelos constituintes de 1988, que pretenderam assegurar o bem-estar e o desenvolvimento da nação por força de "cláusulas pétreas" que exaurem o Estado a pretexto de garantir direitos sociais. Direitos de quem, cara pálida? Só se for daqueles que "são mais iguais perante a lei que os outros".

Voltando mundo real, temos um presidente da Câmara mancomunado com o chefe do Executivo, que usa os pedidos de impeachment engavetados como a mitológica Espada de Dâmocles. E um procurador-geral que, de olho numa vaga no STF ou, no pior dos cenários, na recondução ao cargo para um segundo mandato, disputa com o antecessor que ocupou sua cadeira de 1995 a 2003 o título maior "engavetador-geral da República".

Diferentemente do têm dito alguns jornalistas e analistas políticos, não há limite para o número de reconduções do PGR ao cargo. Segundo o art. 128 § 1º, "O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução." (O grifo é meu).

Não existe pressuposto legal que obrigue o presidente da República a indicar o PGR a partir da "lista tríplice" do MPF, mas essa "praxe" vinha sendo observada desde 2002 — Bolsonaro ignorou-a em 2019, quando indicou Aras para o cargo, e tornou a ignorá-la este ano, ao indica-lo para um segundo mandato.

Outro absurdo: Pelas regras atuais, as vagas abertas no STF (por morte ou aposentadoria dos ministros) são preenchidas pelo inquilino de turno do Palácio do Planalto. Os requisitos constitucionais são: 1) ser brasileiro nato; 2) ter idade entre 35 e 65 anos; 3) possuir notável saber jurídico e reputação ilibada. O cargo não é exatamente vitalício, já que a aposentadoria dos membros da corte torna-se compulsória aos 75 anos de idade. Uma vez indicado pelo presidente, o felizardo é sabatinado pela CCJ do Senado e, caso seja aprovado (nunca houve reprovação desde a redemocratização), terá de obter pelo menos 41 votos favoráveis (dos 81 possíveis) no plenário do Senado. Após a aprovação, o Presidente da República assina um decreto de nomeação (que é publicado no Diário Oficial da União), habilitando seu protegido a tomar posse no cargo.

Tramitam na Câmara propostas de emenda à Constituição que mudam esses critérios (PEC 259/16 e apensados). Uma delas (PEC 225/19) prevê que os poderes Legislativo e Judiciário também indiquem ministros, em sistema de rodízio; e que o indicado seja juiz de segunda instância ou advogado com pelo menos 10 anos de prática, com mestrado na área jurídica. Além disso, o mandato, que hoje vai até a aposentadoria compulsória aos 75 anos de vida, passaria a durar 12 anos. Resta saber se e quando isso vai ser votado.

Para encerrar, resta dizer que Bolsonaro cumpriu parcialmente, na última sexta-feira (20). a promessa feita no sábado anterior. Parcialmente porque poupou o ministro Luís Roberto Barroso e limitou o escopo de seu pedido de impeachment ao também ministro Alexandre de Moraes, que o incluiu no rol de investigados do inquérito das fake news, mandou prender Roberto Jefferson e foi, digamos assim, o "mentor intelectual" da operação em que a PF cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços do cantor Sérgio Reis e do deputado Otoni de Paula, ambos aliados do capitão. Isso sem mencionar que Moraes será o presidente do TSE por ocasião das eleições de 2022.

Ao longo de toda a semana passada, nosso glorioso mandatário ruminou seu ramerrão de que "o povo brasileiro não aceitará passivamente que direitos e garantias fundamentais [art. 5° da CF], como o da liberdade de expressão, continuem a ser violados e punidos com prisões arbitrárias, justamente por quem deveria defendê-los", deixou no ar a possibilidade de um "bastante provável e necessário contragolpe", falou diversas vezem em "ruptura institucional" e aludiu ao que chama de "poder moderador" das Forças Armadas — respaldando-se numa leitura arrevesada do artigo 142 da Constituição.

Num presidencialismo como o nosso, em que chefe de Estado e chefe de Governo coincidem, não existe poder moderador (já numa República parlamentarista, o chefe de Estado é moderador, e o primeiro-ministro governa). Ocorre que a redação do retrocitado artigo dá margem a mal-entendidos quando diz que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Numa ação impetrada pelo PDT, o ministro Luiz Fux decidiu que "a missão institucional das Forças Armadas (...) não acomoda o exercício do poder moderador entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário". Nessa mesma decisão, Fux disse que o poder das Forças Armadas é "limitado", excluindo "qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes".

Em entrevista concedida à Folha em janeiro, o jurista Ayres Britto, ex-ministro e ex-presidente do STF, disse que "basta ser uma força armada para não ter direito de falar por último; o Judiciário fala por último por seu poder ser proveniente da fundamentação técnica de suas decisões, da sua imparcialidade", mas defendeu a discussão da questão do tal "poder moderador": "Se não houver essa discussão, as próprias Forças Armadas vão pensar que estão autorizadas a fazer o que Bolsonaro tem dito".

Até a última sexta-feira, Bolsonaro não havia confirmado presença na "manifestação gigante em defesa da democracia, liberdade e contra a interferência de alguns ministros na seara de outro Poder" marcada para o próximo dia 7. Todavia, em conversa com apoiadores, disse que discursará em Brasília, pela manhã, e em São Paulo, à tarde. Mas afirmou que "não serão palavras de ameaça a ninguém" e que a manifestação será "fotografia para o mundo".

Não é o que pensa Merval Pereira. Para o escritor, jornalista e analista político da Globo News que desde setembro de 2011 ocupa a cadeira nº 31 da Academia Brasileira de Letras —, Bolsonaro, diante de uma multidão pedindo a saída de ministros do STF, voto impresso e outras coisas, dificilmente conseguirá se controlar. Sobretudo depois da ação da PF contra Sergio Reis e Ottoni de Paula. Seria o cúmulo alguém incentivar revolução, invasão ao STF e quebra-quebra no Congresso sem arcar com as consequências, mas mais inconcebível ainda é o presidente tomar essa atitude, demonstrando total inconsequência, sem avaliar o que pode vir daí (ou avalie e ache que a arruaça irá favorecê-lo).

Quando a democracia está em perigo, é preciso agir. A polarização que tomou conta de uma parte da população brasileira tem sido alimentada por um presidente irresponsável, que se vale do cargo para testar os limitas da nossa democracia. Oxalá a coisa não saia de controle no dia 7 de setembro.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

QUE NÃO SEJA IMORTAL, MAS QUE SEJA INFINITO...

 


A cerimônia de casamento surgiu na Roma antiga, onde se deram as primeiras uniões de direito e, mais adiante, a mulher conquistou a “liberdade” de contrair matrimônio por livre e espontânea vontade.

A despeito de os “ensinamentos” sobre o relacionamento entre Igreja e Estado  remontarem ao século XVII, o Brasil só viria a adotá-los cerca de duzentos anos depois. Durante séculos, a Igreja foi um “poder paralelo” e não raro se sobrepunha à autoridade do Estado (haja vista o Tratado de Tordesilhas).

No Brasil, o casamento civil veio de carona com a República. A Constituição Imperial de 1824 manteve o poder da Igreja sobre o casamento, mas a Constituição Republicana de 1891 reconheceu validade somente ao ato civil. Em 1893, o deputado Érico Marinho apresentou no Parlamento a primeira proposição divorcista. Em 1896 e 1899, renovou-se a tentativa na Câmara e no Senado. Em 1901, o jurista Clóvis Beviláqua apresentou seu projeto de Código Civil, que foi duramente criticado — e aprovado somente em 1916, depois de sofrer um sem-número de alterações, mas não regulamentou o casamento religioso com efeitos civis (matéria tratada posteriormente pela Lei 6.015/73).

A indissolubilidade do casamento tornou-se preceito constitucional na Constituição de 1934, e nem as Cartas Magnas de 1937, 1946 e 1967 nem a emenda de 1969 inovaram sobre o assunto. Durante a ditadura, a emenda à Constituição de 1969 passou a permitir a dissolução do vínculo matrimonial após cinco anos de desquite ou sete de separação de fato. O divórcio foi instituído oficialmente com a emenda constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977, regulamentada pela lei 6515 de 26 de dezembro do mesmo ano.

A inovação permitia extinguir por inteiro os vínculos de um casamento e autorizava que a pessoa contraísse novo matrimônio com outra pessoa, mas apenas uma única vez. A Constituição Cidadã, promulgada em 1988, garantiu aos nubentes o direito a repetir a burrada e desfazê-la quantas vezes quisessem, mas o artigo 226 estabelecia que o casamento civil só poderia ser dissolvido pelo divórcio após um ano de separação judicial ou mais de dois de comprovada separação de fato.

Observação: Até 1977, quem se casava permanecia com um vínculo jurídico para o resto da vida. Caso a convivência fosse insuportável, poderia ser pedido o “desquite”, que suspendia os deveres conjugais e punha fim à sociedade conjugal. Mas pessoas divorciadas não podiam recomeçar suas vidas ao lado de outra pessoa cercados da proteção jurídica do casamento (vale lembrar que naquela época não existiam leis que protegiam a União Estável e resguardavam os direitos daqueles que viviam juntos informalmente).

A Lei 7.841/89 eliminou a restrição à possibilidade de divórcios sucessivos. Em 2007, a Lei 11.441 estabeleceu que a separação consensual poderia ser requerida por via administrativa, bastando às partes comparecerem a um cartório de notas, assistidas por um advogado, e apresentarem o pedido (desde que não houvesse filhos menores de idade ou incapazes). Aprovada em 2010, a PEC do Divórcio alterou o § 6º do art. 226 da Constituição Cidadã, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 anos.

Concluída esta (não tão) breve contextualização, passemos ao que interessa: Deus, em sai imensa sabedoria, criou o amor e a fé, e o diabo, invejoso, o casamento e as religiões. Afinal, se casamento fosse bom, não precisava de testemunhas. Além disso, já foi comprovado cientificamente que o casamento é a principal causa do divórcio. Com a pandemia, então... Vejamos o que diz Walcyr Carrasco a esse respeito.

Um casamento resiste à vida confinada? Hábitos mudaram, o jeito de trabalhar também. Para boa parte das empresas, o home office é mais lucrativo, pois não se gasta com espaço, instalações, cafezinho… As pessoas até trabalham mais!

Ainda que as praias continuem cheias, bares e restaurantes, lotados (e hospitais idem) e festinhas clandestinas comendo solta, a atividade social em si recrudesceu, e os casais se viram obrigados a tomar café da manhã, almoçar e jantar juntos... enfim, a convier. E o fato é que muitos casamentos duradouros só se mantinham porque marido e mulher mal se viam.

Um vizinho, com trinta anos de casado, resumiu: “Tenho uma inimiga dentro de casa. E ela cresce!”. Talvez ele e ela nem percebessem pequenos defeitos um do outro, como pelinhos no nariz. Depois de décadas, que importância tem? Só se viam após uma longa e exaustiva jornada de trabalho. Havia viagens profissionais. Amantes.

A pandemia dificultou a traição. Se ninguém sai de casa sem motivo, como fazer? Dizer que vai às compras? E na volta, ela pergunta: “Amor, tomou banho no supermercado?”. Não, não… Mesmo aquele flerte casual, numa saída… rola com máscara?

Quando a convivência é maior, tudo pode crescer. Há mulheres que até desejam assassinar os maridos que não levantam a tampa do vaso sanitário antes de urinar. Os próprios pais — que, em sua maioria, ainda jogam a educação dos filhos para a mulher — passam a conviver com choros, gritos, teimas… e a rebelião contra aulas on-line. Justo no horário de trabalho! Alguns pensam em trancar as crianças nos armários, mas não confessam.

Quando alguém trabalha em casa, as pessoas têm dificuldade em aceitar que é realmente trabalho. Interrompem, puxam conversa… pedem alguma coisa. O celular é um risco constante, um dia um deles o esquece à vista e o outro descobre uma conversa com um antigo relacionamento. Ou pior, um novo!

Os dois descuidam da aparência. Ele esquece de fazer a barba, ela deixa de fazer as unhas dos pés, depois as das mãos. Os dois engordam. O botão da camisa que estoura na barriga, os novos pés de galinha em torno do olho, tudo conta!

Casais veem filmes pornô para reacender a chama, chegam a usar artifícios — como amarrar e vendar —, partem até para um sexo mais selvagem (se a barriga não atrapalhar). Mas, depois, reclamam: “Ficou marca da mordida”.

Nem todo lar pode se transformar em cenário de filme pornô. Há riscos. No meio do sexo arrasador, o filhinho bate à porta: “Mamãe, você tá gritando? Aí é preciso parar tudo e voltar à formula da família margarina “Mamãe teve um pesadelo. Com um urso.”

Tudo fica tão difícil que alguns casais não se suportam mais e se separam. Ou pensam em romper todo o tempo, só aguardam a libertação que virá com a vacina. Mas… há os que resistem, descobrem novas formas de se relacionar. E ficam mais apegados.

A boa (ou a má) notícia é: se seu casamento sobreviveu à Covid, então você não se separa nunca mais.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

CONSTITUINTE? COM ESSE CONGRESSO?

O MAIOR PROBLEMA DO BRASIL NÃO É A CARTA MAGNA, MAS SIM O EXECUTIVO E O CONGRESSO NACIONAL.

Depois de afirmar que a Constituição deixa o Brasil "ingovernável", o líder do governo na Câmara dos Deputados disse que enviará "imediatamente" um projeto de decreto legislativo para a realização de um plebiscito sobre a elaboração de uma nova Carta Magna. 

Deputado federal do Centrão por seis legislaturas e ex-ministro da Saúde do vampiro do Jaburu, Ricardo Barros já teve o mandato cassado, foi citado na delação da Odebrecht e é alvo de diversas investigações. No penúltimo imbróglio (porque outros certamente virão), o MP do Paraná o acusou ter recebido mais de R$ 5 milhões em propinas entre 2013 e 2014, quando era secretário de Indústria e Comércio.

Fosse o Brasil um país que se desse ao respeito, ninguém com um currículo desses teria mandato parlamentar. Mas numa republiqueta de almanaque em que o próprio cacique da tribo e sua prole são investigados, metade do Senado e um terço da Câmara Federal têm contas a acertar com a Justiça e o vice-líder do governo no Senado é apanhado com R$ 33 mil escondidos nas nádegas, não me espantaria se Ricardo BarrosChico Rodrigues e seus iguais fossem incluídos na próxima lista de beatos canonizáveis a ser enviada ao Vaticano.

A “proposta” de Barros foi prontamente rechaçada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que nasceu no Chile, na época de exílio de seu pai, Cesar Maia, mas foi registrado no consulado do Brasil em Santiago. De acordo com Botafogo, a situação do país vizinho é diferente, pois a última constituição chilena país foi aprovada durante a ditadura de Augusto Pinochet, ao passo que a promulgação da nossa selou o fim da ditadura e marcou o início da redemocratização.

É fato que a Constituição Cidadã foi gestada em 1997, em meio à ressaca resultante de 21 anos de ditadura militar; que os constituintes distribuíram diretos a rodo sem apontar de onde viriam os recursos para bancá-los; que a palavra “direito” é mencionada 76 vezes no texto promulgado, enquanto "dever" parece em quatro oportunidades e "produtividade” e “eficiência”, duas e uma vez; e que para sustentar as novas obrigações do Estado (direitos básicos de cidadania, como educação, previdência social, maternidade e infância) a carga tributária aumentou de 22,4% para 36% do PIB (comparativo entre os percentuais de 1988 e 2017).

O saudoso deputado Ulysses Guimarães, que ocupava a presidência da Câmara quando a Constituição Cidadã foi promulgada, reconheceu que o texto legal não era exatamente de uma “pérola jurídica” — o que ficaria comprovado mais adiante pelas mais de 100 emendas costuradas desde então. Por outro lado, apesar de haver direitos demais e deveres de menos, não há necessidade de plebiscito nem de convocação de constituinte. Basta vontade política para aprovar PECs de interesse público, como a tributária e a administrativa.

Não é a primeira vez — e certamente não será a última — que a ideia de criar uma nova Carta assoma no horizonte político tupiniquim. Muito antes da direita, a esquerda = esgrimiu essa tese em várias ocasiões. Lula, o execrável, defendeu-a por meio da marionete patética que se sujeitou a lhe servir de preposto no pleito presidencial de 2018; Dilma, a inesquecível, durante as manifestações populares de 2013. Mais recentemente, Davi Alcolumbre — presidente do Senado e do Congresso e investigado em dois inquéritos no STF por supostas irregularidades relacionadas à campanha de 2014, quando se elegeu senador — levantou essa hipótese a pretexto de fazer as reformas que o Congresso considerasse necessárias. Felizmente, ninguém lhe deu ouvidos, e a proposta foi fulminada por um comentário de Rodrigo Maia, que disse na ocasião: “Vamos caminhar para o que Chávez fez? Foi por isso que a Venezuela chegou aonde está”.

O Brasil é um país com muitas leis e pouca vergonha na cara, carente de gente proba no Congresso, de políticos que honrem o mandato, respeitem o cidadão e sirvam ao país, em vez de se servir dele benefício próprio e de seus asseclas. Num passado não muito remoto, quando éramos felizes e não sabíamos, o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna estabelecia que “Todo o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. Ao rascunharem a versão promulgada em 1988, os constituintes promoveram uma alteração sutil na redação do texto, que passou a ser “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” E assim tolheram-nos do país que tínhamos e nos transformou em escravos dos nossos “representantes”, já que o poder deixou de ser exercido em nome do povo

As constante disputam entre os Poderes, a desmoralização do mundo político, a crise de representação e a disfuncionalidade crônica do Estado nascido dos sonhos dos constituintes de 1988 apontam para uma única solução: repensar os alicerces de nosso Estado Democrático de Direito, em especial o sistema político vigente, e adotar as medidas necessárias ao restabelecimento da normalidade e da pacificação institucional.

Pode-se argumentar que momento não seja propício, e não há como discordar desse argumento. Mas não há país que cresça quando a quase totalidade do Orçamento é consumida pela folha de pagamento do funcionalismo e benefícios e vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são contornadas via aumento da carga tributária — o que atualmente é impensável e impraticável — ou através remédios institucionais cada vez menos eficazes. Para além disso, o atual sistema representativo está falido, com partidos políticos que representam a si mesmos mediante mecanismos que favorecem o fisiologismo, o paternalismo e o patrimonialismo, e que nada dizem aos eleitores. O poder econômico quase sempre prevalece sobre o interesse dos cidadãos em geral, atrelando perigosamente à corrupção do sistema político.

Voltando a Ricardo Barros, melhor faria o nobre deputado se angariasse votos para uma PEC que limasse da Constituição o "direito" dos parlamentares ao foro privilegiado e lhes instituísse o dever de se dirigirem de mala e cuia à penitenciária sempre que forem condenados em segunda instância. 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

NÃO ERA PARA SER ASSIM

 

Reza o artigo 5º da Constituição Federal que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes(...)”. Mas nenhum de seus parágrafos, incisos ou alíneas dispõe o que se vê na prática, ou seja, que alguns são “mais iguais” que os outros.

Num passado não muito remoto, quando éramos felizes e não sabíamos, o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna estabelecia que “Todo o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. Ao rascunharem a versão promulgada em 1988, os constituintes promoveram uma alteração sutil na redação do texto, que passou a ser “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.Assim, a “Constituição Cidadã” tirou-nos o país que tínhamos e nos transformou em escravos dos nossos “representantes”, pois a partir de então o poder deixou de ser exercido em nome do povo

Em outras palavras, nós elegemos os nossos “representantes”, que, em tese, exercem o poder em nosso nome. Só que eles fazem o que querem, como querem e quando querem, sem prestar contas a ninguém e, não raro, em benefício próprio, seja para aumentar a burocracia que os mantém, seja para angariar votos para a próxima eleição, seja para proteger os seus “companheiros representantes”.

Também em tese, cabe ao povo decidir, nas urnas, o destino dos políticos que mijam fora do penico. Na prática, porém, a teoria é outra, sobretudo se o “direito de voto” é estendido “democraticamente” aos analfabetos, ignorantes, apedeutas e desinformados que, desgraçadamente, compõem a maioria do eleitorado tupiniquim. E um título de eleitor nas mãos de um descerebrado é tão perigoso quanto uma caixa de fósforos nas mãos de um chimpanzé num paiol de pólvora.

Num país onde o futuro é duvidoso e o passado, incerto, é o poste que mija no cachorro, ou por outra, parafraseando o eminente ministro Gilmar Mendes, sobre quem falaremos mais adiante, não é o cachorro que abana o rabo, mas o rabo que abana o cachorro. Nesse “samba do crioulo doido”, as leis são escritas por políticos que se elegem para roubar e roubam para se reeleger. Quando um “representante” faz algo “errado”, ou seja, que contrarie os interesses dos representados, seus pares se apressam em mudar a lei para “transformar o errado em certo”. Em suma: deixamos a raposa tomando conta do galinheiro e damos a chave do berçário a Herodes. E depois reclamamos... de quem?

A única maneira de despertar o “gigante adormecido” sem o risco de ele ter uma síncope assim que tomar pé da situação seria devolver o país aos silvícolas, pedir desculpas pelo estrago e começar tudo outra vez. Para limar do Executivo, do Legislativo e do Judiciário os usurpadores travestidos de representantes do povo, só mesmo uma nova carta magna, mas que fosse “menos cidadã e mais pé no chão”. A que temos há 32 anos foi remendada mais de uma centena de vezes (em comparação, a Constituição dos EUA, promulgada dois séculos antes, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas ao longo das últimas 23 décadas). Os constituintes de 1988 distribuíram diretos a rodo, mas jamais apontaram de onde viriam os recursos para bancá-los. No texto promulgado, a palavra “direito” é mencionada 76 vezes; "dever", em quatro oportunidades; "produtividade” e “eficiência” aparecem duas e uma vez, respectivamente.

O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? Na melhor das hipóteses, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real. A atual pandemia sanitária e suas consequências deletérias em nossa já combalida economia, somadas à constante disputa entre os Poderes, à desmoralização do mundo político, à crise de representação e à disfuncionalidade crônica do Estado nascido dos sonhos dos constituintes de 1988, apontam para uma única solução: repensar os alicerces de nosso Estado Democrático de Direito, em especial no que concerne ao sistema político vigente, e adotar as medidas necessárias ao restabelecimento da normalidade e da pacificação institucional pela qual anseia a sociedade.

Pode-se argumentar que momento atual não seja o mais propício, e não há como discordar desse argumento. Mas é inevitável reconhecer que já passou da hora de considerarmos seriamente a possibilidade de reescrever a Constituição, visto que a atual, por sua ânsia de a tudo regular e prover, trava o desenvolvimento pleno da vida nacional. Afinal, não há país que cresça quando a quase totalidade do Orçamento é consumida pela folha de pagamento do funcionalismo e benefícios e vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são contornadas mediante o aumento da carga tributária — o que atualmente é impensável e impraticável — ou por remédios institucionais cada vez menos eficazes.

Para além disso, o atual sistema representativo está falido, com partidos políticos representam-se a si mesmos com mecanismos que favorecem o fisiologismo, o paternalismo e o patrimonialismo, e que nada dizem aos eleitores. O poder econômico quase sempre prevalece sobre o interesse dos cidadãos em geral, atrelando perigosamente a corrupção ao sistema político.

É possível — e até provável — que o atual cenário não guarda a menor semelhança com aquele almejados pelos constituintes de 1988, que pretendiam assegurar o bem-estar e o desenvolvimento por força de “cláusulas pétreas” que exaurem o Estado a pretexto de cumprir direitos sociais. Resta saber de quem. Talvez daqueles que eu citei nos parágrafos de abertura, que “são mais iguais perante a lei que os demais”.

Triste Brasil.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

ENCRAVADO NAS ESTRELAS


Militares com assento em gabinetes do Planalto e adjacências estão vendo como é difícil fazer parte de governos quando o ato de governar é presidido pela democracia. Panorama visto também por seus pares sem postos no Executivo, a serviço apenas do Estado. Uma boa experiência tanto para os remanescentes do regime autoritário quanto para as novas gerações lotadas no Exército, Marinha e Aeronáutica. Ressalvadas as exceções de praxe, para todos eles tudo indica serem pontos pacíficos a prevalência do poder civil resultante da escolha livre do voto e a normalidade institucional da Constituição de 1988. Nessa condição, depois de 21 anos no comando da nação, enquadraram-se ao ditame familiar à vida nos quartéis: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Nos últimos 35 anos não houve dúvida quanto ao imperativo de obediência devida à Carta Maior. Nesse período não se discutiram coisas como a hipótese de golpe militar.

O problema começou quando quem assumiu o topo da linha de comando mostrou não ter um pingo de juízo. Nessa hora, a de agora, as Forças Armadas passaram de instituição benquista a alvo de suspeições golpistas. E por quê? Grosso modo porque subverteram a ordem dos fatores e altas patentes aceitaram se submeter às ordens de um capitão. Reformado por indisciplina, acrescente-se. Na vigência de um regime de liberdades, garantia dos direitos individuais e submissão aos deveres constitucionais tudo tem um preço. Caríssimo e cobrado com juros da desmoralização quando se avalizam atos e palavras que extrapolam aqueles preceitos. Seja pelo compartilhamento do mesmo espaço, seja por ação e/ou omissão. No caso da junção dessas duas situações, o efeito dificilmente deixa de ser desastroso.

É o risco que correm as Armadas com o desgoverno de Jair Bolsonaro. Versão corrente reza que há resistência à manutenção de Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde a fim de evitar levar ao colo dos militares a crise sanitária. Se verdadeira, a precaução é inútil. Primeiro, porque foi ignorada pelo presidente ao anunciar a permanência do general “por muito tempo” no cargo e pelo próprio ao incorporar mais treze militares à equipe, assumindo o papel de testa de ferro da obsessão presidencial pela cloroquina. Segundo, porque não são só os desacertos no combate à pandemia que lhes pesarão sobre os ombros, mas também toda sorte de atitudes erráticas do governo no qual estão envolvidos para muito além do colo, ultrapassando a linha do pescoço.

Definitivamente não foi um bom negócio para os fardados esse mergulho sem barreiras de proteção. A despeito da compreensão de que generais que dividem mesa de reunião ministerial onde se fala aos palavrões não traduzem o pensamento majoritário no contingente das corporações armadas, aos olhos da sociedade não se estabelece essa separação. Não moderaram, como era a expectativa, os modos do presidente. Resta saber o que farão, além de comunicados oficiais de afirmação democrática, para evitar o alastramento do contágio e, com ele, a perda da indispensável credibilidade.

Texto de Dora Kramer

sexta-feira, 24 de abril de 2020

SOBRE A RENÚNCIA DE MORO E DE VOLTA À RENÚNCIA DE JÂNIO, SUAS CONSEQUÊNCIAS E OUTRAS CURIOSIDADES — PARTE IV


Ontem, após ficar bastante volátil com notícias envolvendo o remédio Remdesivir, o Ibovespa passou a cair mais de 2% com a informação divulgada pela FOLHA, no meio da tarde, de que o ministro Sergio Moro havia pedido demissão após ser informado por Bolsonaro da iminente troca da diretoria-geral da Polícia Federal, atualmente ocupada por Maurício Valeixo. Ainda segundo a notícia, Bolsonaro estaria tentando reverter a situação e os ministros Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) foram escalados para convencer Moro a recuar da decisão.  Cerca de uma hora depois, a GloboNews noticiou que Moro não chegou a pedir demissão, mas ameaçou deixar o cargo caso o presidente realizasse a troca na PF. Oficialmente, o ministério da Justiça disse que o ministro não se demitiu.

ATUALIZAÇÃO: Bolsonaro demitiu Valeixo em plena madrugada. A exoneração foi publicada na manhã desta sexta-feira no D.O.U. Nela, consta que a demissão se deu "a pedido", mas não foi decisão de Valeixo deixar o cargo neste momento. Nos bastidores, comenta-se que dessa forma a demissão evitaria ainda mais desgastes a Sergio Moro, que deve se pronunciar sobre sua permanência ou não no cargo ainda nesta manhã (as 11h desta manhã). Especula-se que Moro tenha ficado extremamente incomodado com a ida de Bolsonaro à manifestação do último domingo e de o presidente abrir as portas de seu gabinete aos líderes do Centrão. A ingerência do capitão na PF foi apenas a gota que fez transbordar o copo. Especula-se também que o ministro ficará no governo caso possa escolher o substituto do agora ex-diretor-geral da PF.

Pelo visto (e pelos filhos), Bolsonaro é capaz de tudo. Até de pôr seu próprio governo em xeque (para o bem do Brasil, tomara que seja xeque-mate). Mas o presidente não terá vida fácil diante da PF depois de demitir seu diretor-geral. Sobretudo porque o verdadeiro motivo, como é público e notória, foi a PF cumprir seu trabalho em vez de proteger a família do presidente de investigações incômodas. A intenção do capitão é nomear um lambe-botas sob medida para seus objetivos. O problema é que, pela tradição da PF, o diretor-geral que sai indica uma série de nomes (em geral seus assessores mais próximos, superintendentes regionais ou adidos no exterior) ao ministro da Justiça, que leva o seu escolhido ao presidente da República, que chancela a indicação. A ideia de subverter esse jogo e a nomeação vir diretamente de Bolsonaro não é só uma humilhação (mais uma) que Moro não parece disposto a aceitar — mas é também algo que a corporação deve rejeitar com vigor.

Internamente, os delegados mais graduados lembram o desastre de uma tentativa recente de mudar a tradição na nomeação do diretor-geral. No início de 2018, Fernando Segóvia foi demitido do comando da PF, pelo recém empossado ministro Raul Jungmann, depois de apenas 99 dias no cargo. Segóvia fora escolhido por Michel Temer, atendendo à indicação de emedebistas enrolados na Lava-Jato e passando por cima da opinião do então ministro da Justiça, Torquato Jardim. Já na cerimônia de posse disse a que veio: botou em dúvida fatos das investigações sobre Rodrigo Rocha Loures, aquele assessor de Temer que foi filmado recebendo uma mala com R$ 500 mil das mãos de um diretor da JBS. A partir daí, foi crise em cima de crise. Segóvia tentou, mas nunca conseguiu liderar a PF nos três meses que esteve à frente dela. Durante o seu tempo como diretor-geral, não conseguiu controlar a PF do jeito que Temer e parte do MDB queriam.

Vamos aguardar para ver que bicho dá.

Quando cursava o primário — como eram denominados os primeiros quatro anos do que hoje se chama ensino fundamental —, aprendi uma forma verbal chamada "condicional", que mais adiante seria rebatizada de "futuro do pretérito", já que expressa tanto uma situação quanto uma condição. Um exemplo do primeiro caso é: “eu compraria aquele carro, se o preço fosse mais baixo”; e do segundo: “anos atrás eu não tinha certeza se compraria o carro que tenho hoje”.

Em ambos os casos o verbo se comporta da mesma forma, mas com sentidos diversos, o que não deixa dúvidas acerca da exatidão das duas designações. Ainda assim, há quem entenda que o condicional não indica uma condição

No primeiro exemplo, temos duas orações, e a condicional não é a primeira, onde está o verbo no modo condicional, mas a segunda, indicada pela conjunção subordinativa condicional ou causal “se”. Na esteira desse raciocínio, parece-me realmente mais apropriado chamar o tempo verbal em questão de “futuro do pretérito”.

Embora o termo pretérito seja usado como sinônimo de passado, ele não remete ao presente em que vivemos, mas a um presente em que viveríamos se, por exemplo, numa encruzilhada do passado, tivéssemos virado à esquerda em vez de à direita, ou retrocedido até a encruzilhada anterior. 

Nessa linha de raciocínio, a pergunta que se impõe é: como seria o Brasil de hoje se Tancredo tivesse tomado posse, governado pelos cinco anos que a Constituição de então lhe garantia e, ao final, passado a faixa para (aí, sim) o primeiro presidente escolhido pelo voto popular desde a eleição de Jânio em 1960 (que seria... ???). The answer, my friends, is blowing in the wind.

Muita coisa poderia dar errado no capítulo final da novela da transição da ditadura militar para a democracia. Em 1984, em conversa com o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, o então presidente-general Figueiredo teria dito que, naquele momento, “as Forças Armadas estavam divididas em dois grupos: um que apoiava fortemente a volta do governo civil e outro que estava disposto a impedir o que via como um avanço da esquerda”. Kissinger questionou se algo poderia acontecer antes ou depois das eleições, em janeiro de 1985. Figueiredo respondeu: “Sim, dependendo do desenrolar dos acontecimentos”, e salientou que “as Forças Armadas não falhariam ao compromisso de impedir, nas palavras dele, que esquerdistas tomassem o país, e que, se os militares tivessem que intervir, o país poderia ser levado a uma guerra civil”. Figueiredo via Tancredo como “uma pessoa capaz e moderada”, mas “cercada e apoiada por muitos radicais de esquerda”, e tinha receio de que, quando assumisse o poder, se eleito fosse, o político mineiro “não conseguisse controlá-los”.

Muito se cogitou da hipótese de Tancredo ser assassinado, mas — eis aí a gargalhada do capeta —, pelo menos até onde eu sei, ninguém previu que ele seria internado 12 horas antes da cerimônia de posse e morresse 38 dias (e sete cirurgias) depois. Mesmo assim, essa ironia do destino deu margem a um sem-número de teorias conspiratórias, a exemplo do ocorrido com o Papa João Paulo I em 1978 — 33 dias depois de ser nomeado papa, o cardeal Albino Luciani foi encontrado morto em seus aposentos, na manhã do dia 28 de setembro daquele ano, depois de ter tomado uma inocente chávena de chá na noite anterior.

A posse de Sarney soou como a “gargalhada do diabo” nos estertores da ditadura militar (na prática, a Nova República só teria início três anos depois, com a promulgação da Constituição Cidadã — criada durante a ressaca dos 21 anos de ditadura; portanto, compreensivelmente apinhada de direitos em seus 250 artigos que são não apenas o obelisco da prolixidade, mas uma colcha de retalhos.

A Carta Magna promulgada em 1988 foi remendada mais de uma centena de vezes (a título de comparação, a constituição norte-americana, promulgada em 1787, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas nos últimos 220 anos), e distribuiu diretos a rodo, mas sem apontar de onde viriam os recursos para bancá-los. A propósito: a palavra “Direito” é mencionada 76 vezes, enquanto "Dever" surge apenas 4 oportunidades e "Produtividade” e “Eficiência” aparecem duas e uma vez, respectivamente. Daí a pergunta: o que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? A resposta: na melhor das hipóteses, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real.

Com a morte de Tancredo, o vice José Sarney — que estava no lugar certo na hora certa — assumiu a presidência, a despeito de Figueiredo se recusar a lhe passar a faixa (por considerar traição ele ter abandonado a ARENA e se filiado ao MDB para integrar a chapa de Tancredo). Como se vê, a mosca azul não perdoa ninguém. Mas o político maranhense jamais imaginou o tamanho da encrenca em que se metera ao assumir a presidência sem ter indicado os ministros ou tido qualquer tipo de ingerência no plano de governo, sem contar com o apoio do Congresso, e (a cereja do bolo) com o país amargando uma inflação galopante de 200% ao ano.

Cinco anos e quatro planos econômicos mais adiante, Sarney passou o cetro e a coroa ao caçador de marajás de araque, juntamente com uma inflação 80% ao mês (quase 1.800% ao ano, considerando os doze meses finais do seu governo). Durante sua desditosa gestão, enfrentou mais de 12 mil greves, foi vítima de pelo menos um atentado e, certa vez, um sequestrador tentou jogar um Boeing sobre o palácio. Mas teve jogo de cintura e sempre manteve diálogo com os militares, o Congresso e a oposição. Em recente entrevista a Veja, declarou: Na história do Brasil, muitos presidentes foram eleitos para ser depostos — e eu não podia ser mais um”.

Tivesse feito essa profecia durante seu governo, Sarney teria se revelado um profeta, pois seu vaticínio se materializaria dali a poucos anos, com impeachment de seu sucessor, Fernando Collor de Mello. Mas isso já é conversa para o próximo capítulo.