Fala-se muito no “Estado Democrático de Direito”, mas pouco se diz (e menos ainda se faz) acerca da incompatibilidade de seus princípios com o pensamento (e as ações) do nosso presidente-palanque, que desde o início do mandato opera como uma usina de crises institucionais. A penúltima que emergiu do esgoto palaciano foi uma resposta (contra-ataque?) à condenação do deputado-troglodita-bolsonarista Daniel Silveira pelo plenário do STF, por 10 votos a 1, vencido o ministro cuja maior virtude foi tomar muita tubaína com o responsável por sua indicação.Vale relembrar que Bolsonaro descumpriu a promessa feita a sua caterva de apoiadores — de indicar um nome “terrivelmente evangélico” para a vaga do ministro Celso de Mello — ao sacar da cartola o dono de um currículo de dar inveja ao professor, oficial da reserva da Marinha e evangélico Carlos Alberto Decotelli, que teria se tornado o primeiro negro a ocupar um cargo na Esplanada dos Ministérios se não fosse tão mestre, doutor e pós-doutor quanto eu sou comendador.
Observação: Depois que piada a colombiana perdeu a graça — falo de Ricardo Vélez Rodríguez, que chefiou o MEC por 3 meses e 18 dias —, Bolsonaro trocou o humor negro pela tragédia polonesa e só se conformou em defenestrar Weintraub, o obelisco da grosseria, porque sofreu pressão de todos os lados. Como a Educação no Brasil parece ter sido amaldiçoada com uma praga de madrinha, não houve ninguém minimamente competente para comandar a pasta ao longo desta igualmente incompetente gestão. A troca (de seis por meia dúzia) mais recente ocorreu há algumas semanas, depois que a imprensa descobriu que o ministro-pastor estaria envolvido num “suposto escândalo de corrupção”. E isso sob os olhos aquilinos do mandatário que prometeu pegar em lanças contra a corrupção, mas acabou com a Lava-Jato porque, em suas próprias palavras, “não tem mais corrupção no governo”.
Voltando à pior composição da história recente do STF (que pode piorar com as próximas substituições, a depender ocupar o Planalto a partir do ano que vem), Nunes Marques foi empossado em meio a suspeitas, com uma trajetória acadêmica questionável e companhias no mínimo duvidosas. Seu nome foi colocado na mesa do capetão pelo mafioso de comédia Frederick Wassef, com a aprovação de Flávio “Rachadinha” Bolsonaro e de Ciro Nogueira, que se referiu ao indicado como "nosso Kássio".
Em sua estreia na 2ª Turma do STF, o recém-chegado votou pela confirmação da liminar de Gilmar Mendes que soltou o promotor Flávio Bonazza — acusado de receber mais de R$ 1 milhão da máfia dos transportes no Rio — e retirou o caso dele da Lava-Jato fluminense. No julgamento sobre a possibilidade de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia serem reeleitos presidente do Senado e da Câmara, respectivamente, o ministro-vassalo deu voto favorável ao primeiro e contrário ao segundo, em sintonia com os desejos do presidente-suserano. Mais adiante, votou a favor de Lula no caso envolvendo o depoimento de Antonio Palocci e atendeu a um pedido do PDT para suspender trecho da Lei da Ficha Limpa que determina que o prazo de inelegibilidade de oito anos para condenados terá efeito após o cumprimento da pena.
No julgamento do deputado bolsonarista, Nunes Marques foi voto vencido. Nem o ministro-pastor André Mendonça — esse, sim, terrivelmente evangélico —, que também teve os ombros recobertos pela suprema toga pelo “mito” dos apalermados, ousou divergir da maioria, que acompanhou o voto do relator — embora tenha defendido a redução da pena. Detalhe: como sua decisão não agradou à caterva bolsonarista (nem a líderes evangélicos como Malafaia e companhia), Mendonça justificou seu voto pelas redes sociais, tornando ainda mais burlesca uma situação já bastante patética.
Voltando ao dueto Silveira-Bolsonaro, não faria sentido prolongar esta postagem elencando os despautérios do parlamentar ou enumerando bandeiras eleitoreiras que o então candidato à Presidência pelo PSL agitou durante a campanha e enfiou em local incerto e não sabido depois de subir a rampa palaciana. Mas vale relembrar a propositura do fim da reeleição, que dispensa maiores considerações, e da questão do indulto presidencial, cujo detalhamento ora se impõe.
Um mês após ser eleito, Bolsonaro disse: “Se houver indulto para criminosos neste ano, certamente será o último”. Fiel a sua palavra — como o grande estadista que é —, nosso mandatário concedeu indultos a agentes de segurança condenados por crimes considerados culposos no final de 2019, 2020 e 2021. Na tarde da última quinta-feira, talvez por conta das festividades carnavalescas extemporâneas que pipocaram cá e acolá, Bolsonaro pensou que bem poderia ser Natal. E como Natal combina com indulto presidencial (aquele que deixaria de existir no seu governo), concedeu a graça do indulto individual a seu valoroso escudeiro antes mesmo que a condenação transitasse em julgado, o que não é comum em situações que tais.
Na avaliação de especialistas, a medida presidencial não livra Silveira da inelegibilidade e será analisada pelo próprio Supremo, dada a clareza meridiana com que o desvio de finalidade fere os princípios da impessoalidade e da moralidade. Em tese, o indulto livra o condenado da pena privativa de liberdade, mas não da inelegibilidade. Parlamentares da oposição já avaliam as medidas cabíveis, que podem ser desde um novo pedido de impeachment do mandatário até uma ação questionado a graça presidencial no STF. À luz da lei penal, o decreto presidencial pode ser interpretado como desvio de finalidade por ferir os princípios da impessoalidade e da moralidade — sobretudo por se tratar de um agente político aliado do presidente e amigo do clã presidencial — o que o torna inconstitucional.
Silveira é ex-PM. Antes de entrar para a polícia, trabalhou como cobrador de ônibus e se valia de atestados médicos falsos para faltar ao serviço. Durante os seis anos que passou na corporação, puxou 26 dias de xadrez e colecionou 14 repreensões e duas advertências. Um sujeito assim podia ser enviado para muitos lugares, exceto para o Congresso. Ao condenar o parlamentar, diz Josias de Souza, o Supremo fez um risco no chão. Usou o caso para cientificar seus semelhantes, inclusive ao presidente da República, de que o bolsonarismo petulante, quando descamba para o ódio e passa a ameaçar a democracia, dá cadeia. E o aviso foi extensivo ao Legislativo.
O Conselho de Ética da Câmara já havia aprovado a suspensão do parlamentar por seis meses. O castigo mixuruca dependia apenas do aval do plenário, mas o réu que preside a Câmara, movido a orçamento secreto e rendido às conveniências de Bolsonaro, não incluiu a encrenca na pauta de votação. Com sua decisão, os togados informaram a Lira e seus cúmplices que aqueles que dizem que alguma coisa não pode ser feita são geralmente surpreendidos por alguém fazendo a coisa. A cassação do mandato transformou em piada a ideia de premiar Silveira com uma folga hipertrofiada de seis meses. Lira encaminhou ao STF uma petição sustentando que a última palavra sobre a cassação cabe à Câmara, não à Corte. Um detalhe adiciona escárnio no teatro: réu, Lira manobra para proteger um condenado que avilta o Legislativo cada vez que cospe na democracia que alimentou suas pretensões políticas.
Bolsonaro e seus devotos apostavam que o ministro André Mendonça apresentaria um pedido de vista, engavetando o processo por tempo suficiente para que o réu chegasse até as urnas de outubro. Deu errado. Além de não travar o julgamento, o ministro "terrivelmente evangélico” compôs a maioria, isolando-se apenas quanto à dosimetria da pena. Já Nunes Marques, descrito por Bolsonaro como "10% de mim dentro do Supremo", votou pela absolvição. Na sua visão, Silveira teria pronunciado "bravatas" sem "credibilidade". Coisas "incapazes de intimidar quem quer que seja". Cármen Lúcia ironizou o voto do colega. Disse que, se o Supremo aguardasse pela concretização das ameaças, o julgamento de Silveira não ocorreria, pois o deputado arguiu a suspeição de nove dos 11 ministros da Corte. Se prevalecesse o entendimento de Nunes Marques, o réu seria apenas um inofensivo neurótico que constrói castelos no ar.
Em análise preliminar, as togas concluíram que decreto (leia a íntegra) não elimina todas as aflições do aliado. O perdão pode livrá-lo da pena de prisão por oito anos e nove meses e da multa de cerca de R$ 212 mil, mas não anula a cassação do mandato e a inelegibilidade que o impedirá de concorrer ao Senado. Fontes dão conta de que o presidente da Corte e o relator da ação que resultou na condenação de Silveira avaliam que, a despeito do decreto, está mantida a perda do mandato e dos direitos políticos do condenado.
PDT, Rede e Cidadania protocolaram ações no Supremo, e parlamentares de partidos como PSOL, MDB, PT e da própria Rede entraram com Projetos de Decreto Legislativo para anular o ato de Bolsonaro no Senado e na Câmara. Resta saber como o plenário se pronunciará. A intenção da Corte é a de deliberar rapidamente sobre a matéria.
Bolsonaro se valeu de um voto proferido por Alexandre de Moraes para torpedear a condenação imposta pelo STF a seu esbirro a partir de outro voto do mesmo Moraes. “Tudo aqui tem jurisprudência do senhor Alexandre de Moraes”, disse ele, ao anunciar a edição do decreto. A decisão a que Bolsonaro se refere foi tomada em maio de 2019. Por 7 votos a 4, o STF validou o indulto que Michel Temer assinou no Natal de 2017. Relator do caso, o ministro Barroso suspendeu os efeitos de trechos do decreto que considerou demasiadamente concessivos com criminosos. Submetida ao plenário, a liminar foi derrubada e prevaleceu o voto divergente de Alexandre de Moraes (indicado para a toga pelo vampiro do Jaburu), que sustentou a tese segundo a qual o Supremo não tem poderes para reescrever decretos de indulto editados pelo presidente. Bolsonaro sustenta que o mesmo raciocínio se aplica ao decreto que editou dois dias atrás. Ele afirma que Moraes e seus pares terão de lhe conceder o mesmo tratamento dispensado a Temer. Do contrário, promete reagir.
Ironicamente, Bolsonaro havia usado a decisão do Supremo a favor de seu antecessor para assegurar que em seu governo não haveria refresco para condenados. O decreto de então concedia perdão para quem tivesse cometido crimes sem violência ou grave ameaça, depois de o preso cumprir um quinto da pena. Antes, era preciso cumprir tempo maior, um quarto. Perdoava condenados a penas mais elevadas, sem limite. Antes, só os presos condenados a até 12 anos podiam se beneficiar do indulto. Também favorecia presos independentemente dos crimes que haviam cometido. Temer brindou com o perdão presidencial até os condenados por crimes de colarinho branco (como lavagem de dinheiro e corrupção).
O resto fica para uma próxima postagem. Até lá, certamente teremos novidades. Triste Brasil.