Dizem que a fé move montanhas, mas, pelo visto, não remove
maus mandatários da Presidência. Não nesta banânia.
Na última terça-feira, 12, dia
da Padroeira do Brasil e nonagésimo aniversário do Cristo Redentor (braços
abertos sobre a Guanabara), o arcebispo de Aparecida, Dom Orlando Brandes, fez
duras críticas a Bolsonaro. Sem mencionar nominalmente o verdugo do Planalto, o batina
beliscou seus calcanhares de vidro ao mencionar os 600 mil mortos por Covid
e enaltecer as vacinas e a ciência. Foi como se quisesse realçar que a retórica
e a prática do capitão não ornam com as sagradas escrituras.
Horas depois da
homilia, operou-se um pequeno milagre. Bolsonaro chegou à Basílica
usando máscara, e foi recebido com vaias e aplausos. O ex-militar que não
nasceu para ser presidente — mas tem feito o diabo para se reeleger —
aproveitou o feriadão para descansar
no Guarujá (SP). Trabalhar que é bom, néris de pitibiriba, mas fazer
campanha antecipada também cansa. E ele começou sua em 1º de janeiro de 2019, dia
em que assumiu a Presidência.
Hospedado no Forte dos Andradas, Bolsonaro
passeou de moto por outras cidades litorâneas, lamentou não ter podido assistir
à partida entre Santos e Grêmio pelo Campeonato Brasileiro porque
não quis se vacinar contra a Covid. Cobrado pela pilha de cadáveres
produzida pela pandemia, o presidente reclamou: “Não vim aqui para me
aborrecer”.
A aversão do mandatário de festim ao trabalho vem ganhando
espaço justamente no terreno em que o bolsonarismo pratica a narrativa
política: as redes sociais e os aplicativos de mensagens. Sua alteza irreal até
pode fechar os olhos e os ouvidos para os aborrecimentos durante o feriadão,
mas eles têm data para bater à porta: a CPI do Genocídio concluirá na
próxima semana um relatório recheado de imputações de crimes a ele e a boa
parte de sua equipe — tanto da atual quanto a da já defenestrada. "O
memorial às vítimas que Bolsonaro insiste em ignorar como um estorvo a sua diversão
será uma lembrança perene dos descalabros cometidos em nome do negacionismo em
sua administração, sob seu comando falastrão", escreveu a jornalista
e âncora do Roda Viva, Vera Magalhães, em sua coluna no Globo.
A CPI desistiu (novamente) de ouvir (novamente) o
ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que já depôs duas vezes à CPI.
Os senadores avaliaram que o
novo depoimento pouco acrescentaria aos trabalhos da comissão e poderia ‘dar
palanque’ ao ministro, mas asseguraram que ele será incluído no relatório
final. Na próxima segunda-feira, será ouvido o médico Carlos Carvalho,
coordenador do estudo que elaborou um parecer contrário ao uso de medicamentos
comprovadamente ineficazes contra a Covid. Pelo visto, escutar as
mentiras da versão com diploma e avental do general Pesadelo também
cansa.
Mudando de mosca, a revista Istoé publicou que a offshore
de Paulo Guedes tem precedente: Henrique Meirelles foi blindado e
deu em nada. A convocação para dar explicações sobre ao Congresso pode até
desgastar o superministro de mentirinha (como se já não bastasse a condução
inepta e claudicante da economia), diz a reportagem, mas Guedes
deve passar incólume e continuar sendo o "Posto Ipiranga"
do capitão-negação até o mais amargo fim.
"A maior distância do universo para um gestor
público começa nos erros cometidos durante a gestão que já passou e termina nas
promessas de acertos futuros insuscetíveis de checagem", anotou Josias
de Souza sobre o superministro de festim, que voou para os Estados Unidos e
aterrissou no mundo da Lua. Nas entrevistas concedias à CNN Internacional
e à Bloomberg, o grande economista liberal falou sobre um Brasil
desconhecido dos brasileiros e, alheio aos 600 mil mortos por Covid, afirmou
que o governo não errou na pandemia.
No Brasil de Guedes, 90% dos cidadãos já receberam
uma dose de vacina e 60% estão totalmente imunizados. No país real, apenas 70%
encontram-se parcialmente vacinados e 46,7% receberam duas doses de vacina. Na
realidade alternativa, a tragédia sanitária é "ruído político". Vem
aí, segundo o Posto Ipiranga sem combustível, um plano bilionário para o
meio ambiente e um programa de renda mínima capaz de livrar os brasileiros
pobres dos efeitos corrosivos da inflação dos alimentos e da conta de luz.
Guedes prometeu zerar o déficit orçamentário no
primeiro ano de governo, e agora pedala
dívidas judiciais. Acenou com desenvolvimento, mas só entregou carestia. Por
mais que ele doure a pílula ao discursar para a imprensa americana, a inflação
corrói não só o poder de compra dos brasileiros, cuja paciência com o
incompetente de plantão e sua equipe econômica mal ajambrada está por um fio. Sempre
que Guedes fala sobre o futuro radioso de 2022, as pessoas se perguntam que fim
levou 2019, futuro da campanha de 2018; ou 2021, futuro de 2019 e 2020. É difícil ouvi-lo perorar sobre a
pujança canarinha sem reprimir uma espécie de sorriso interior, como se uma voz
no fundo da consciência dos brasileiros avisasse: "Cuidado, trata-se de
um farsante com milhões protegidos num paraíso fiscal."
O guichê da política não está menos tumultuado. Enquanto o
motoqueiro-fantasma canarinho empinava soa moto, o Centrão e os evangélicos —
duas seitas diabólicas que ainda lhe dão alguma sustentação — batiam boca por
causa da malparada discussão a respeito da indicação de André Mendonça
para o STF. O próprio Bolsonaro acusou o ex-presidente do Senado e atual
presidente da CCJ, Davi Alcolumbre, de cozinhar
em óleo frio a indicação do pastor que ele escolheu para ocupar a suprema poltrona que vagou
com a aposentadoria de Marco Aurélio
Mello, o ex-ministro das causas perdidas.
"Isso
não se faz”, disse o sultão do Bolsonaristão. "Ele [Alcolumbre]
pediu apoio para eleger o [Rodrigo] Pacheco, eu dei. Teve tudo que foi possível
durante 2 anos comigo e de repente ele não quer o André Mendonça. Quem pode não
querer é o plenário do Senado, não é ele. Ele pode votar contra, mas o que ele
está fazendo não se faz, a indicação é minha", emendou o despresidente,
evidenciando o vergonhoso compadrio que havia entre ele o senador amapaense.
Os sinais dados por Bolsonaro e sua trupe em relação a Mendonça são contraditórios, e muita gente os vê como um ensaio de mudança
de planos nos arredores do Planalto. Ver tisnado seu apoio na cúpula do
neopentecostalismo, com
Silas Malafaia vociferando contra ministros no Twitter, é tudo que um candidato
com rejeição recorde deveria não querer, mas Bolsonaro preferiu pegar
uma praia a se aborrecer fazendo articulação política — prática que ele condenou
durante a campanha e no início de sua malsinada gestão, para depois não só abraçar como também confundir com compra de apoio — algo sempre volátil e sujeito a
inflação maior que a do gás de cozinha.
A indicação do pastor presbiteriano ao STF deflagrou uma guerra de anões. De um lado, Alcolumbre,
sem estatura política para presidir a CCJ do Senado; do outro, Bolsonaro,
idem na mesma data para presidir a República. No meio, um candidato a togado
que se encolhe para escapar do tiroteio.
Bolsonaro acusou Alcolumbre de torturar um chefe de
família ao postergar a sabatina. A pretexto de defender o apadrinhado, o padrinho transformou um sujeito "terrivelmente evangélico" num personagem
incrivelmente vassalo. Outros mandatários já cobriram com a suprema toga ombros de auxiliares
diretos, mas nenhum foi tão explícito quanto o alienado de turno. A exemplo de Mendonça,
Gilmar Mendes e Dias Toffoli também ocupavam o posto de
advogado-geral da União quando foram indicados para o STF por FHC
e Lula. Alexandre de Moraes, indicado por Michel Temer,
era ministro da Justiça.
Os patronos sempre esperam algum tipo de fidelidade a
posteriori, mas Bolsonaro exige o compromisso prévio de lealdade
e expõe os acertos sob refletores. São muitos os processos judiciais e as
investigações que encostam em Bolsonaro, filhos e aliados. Se prevalecer
sobre a tortura de Alcolumbre, o pastor integrará a 2ª Turma da
corte, onde tramita um recurso do primogênito Flávio "Rachadinha"
Bolsonaro para lhe assegurar foro privilegiado. Presidente da turma, Nunes
Marques — toga de estimação de Bolsonaro — adiou o julgamento. É
como se o primeiro indicado do capitão para o Supremo esperasse pela
chegada do futuro colega terrivelmente vassalo. Em suma, a degradação atingiu
um grau inédito, e o pior é que, segundo o "mito" dos descerebrados, "nada
está tão ruim que não possa piorar".
De acordo com Diogo
Mainardi, Sergio Moro — que ficou de anunciar em
novembro se disputará ou não a eleição presidencial de 2022 — já escalou Paulo Hartung para elaborar seu plano de governo. Trata-se de um bom nome, tanto pelas qualidades que o economista demonstrou ter ao administrar o Espírito Santo quanto por seu potencial de atrair
gente qualificada na área econômica para o entorno do ex-juiz. Hartung é defensor da responsabilidade fiscal e de reformas tributária e administrativa de verdade, não esses remendos que o
governo Bolsonaro anda fazendo com o Centrão, na base do me
engana que eu gosto. E também enxerga na transição ecológica uma enorme
oportunidade para o Brasil.
Todas essas premissas são essenciais para a elaboração de um
plano convincente, que permita a Moro vender o seu peixe a banqueiros, grandes empresários, investidores e aos assalariados, profissionais liberais e pequenos empresários que amargam o desemprego, a inflação de dois dígitos, a quebradeira e, no caso das classes menos favorecidas, a fome. O desafio de Moro e de quem se juntar a
ele será encontrar uma fórmula que combine a imprescindível responsabilidade
fiscal com estímulos urgentes à atividade econômica, mas sem cair na tentação
do populismo que envelopará as campanhas de Lula e Bolsonaro.
Igualmente importante é somar ao grande ativo do
ex-magistrado — o combate à corrupção — um forte caráter econômico que mostre ao eleitorado como os corruptos minam as bases de uma sociedade produtiva e
inviabilizam um estado eficiente. Apesar de a Lava-Jato
ter procurado fazê-lo, boa parte dos brasileiros não ligou os pontos: segundo as pesquisas que vêm sendo publicadas, a corrupção está entre as
principais preocupações de uma minoria bastante reduzida. E de nada adianta vender só futuro a pessoas aprisionadas num eterno e dramático presente, suscetíveis a subornos populistas
e assistencialistas sem porta de saída. Moro precisa ter isso em mente se resolver realmente disputar a Presidência.
Diante desse cenário nada alvissareiro, retomo amanhã a regressão
que interrompi para publicar a presente "atualização". Até porque fica mais difícil a cada dia digerir o angu de caroço que virou o cenário político tupiniquim, e
judiar demais do estômago, na minha idade, não traz benefício algum.