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segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

ATÉ QUANDO, CATILINA, ABUSARÁS DA NOSSA PACIÊNCIA?


Abomino a polarização semeada por Lula e seus acólitos, tenho ojeriza a extremistas — tanto de direita quanto de esquerda — e horror à perspectiva de mais um pleito plebiscitário. 

Até quando seremos forçados a apoiar quem não queremos para evitar que quem queremos menos ainda volte a presidir o Brasil? Foi isso que fizemos em 2018, e foi por isso que um incompetente de quatro costados está aboletado no Palácio do Planalto (nos raros momentos em que não está brincando de motoqueiro fantasma, envergonhando o Brasil no exterior ou passando férias em praias paulistas e catarinenses).

Somente um doido de pedra não demite um gerente que está levando sua empresa à falência, seja por incompetência, conivência, corrupção, ladroagem ou tudo isso somado. No caso em tela, o próprio mandatário reconheceu que não nasceu para ser presidente, mas para ser militar, mas nem o Congresso nem o STF tomou providências efetivas para pôr fim a esse descalabro.

Em entrevista à revista Época, o general Ernesto Geisel, penúltimo presidente militar desta banânia, referiu-se a Jair Bolsonaro como “um caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”. Durante o julgamento desse mau militar pelo Superior Tribunal Militar, o coronel Carlos Alfredo Pellegrino disse que o acusado tinha “grave desvio de personalidade” e era incapaz de liderar a soldadesca devido a sua “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação dos argumentos”.

Em 1986, ainda no 8º Grupo de Artilharia de Campanha, o capitão Bolsonaro foi preso por ter publicado em Veja um artigo intitulado “O salário está baixo”. No ano seguinte, de moto próprio, a revista denunciou a “Operação beco sem saída” — que contou com a participação do também capitão Fábio Passos da Silva e visava explodir bombas de baixa potência em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras e em diversos quartéis caso o reajuste do soldo ficasse abaixo de 60%. 

De acordo com o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército à época, os capitães “negaram peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho, qualquer veracidade daquela informação”. Mas provas testemunhais e documentais — entre as quais um croqui desenhado pelo próprio Bolsonaro — levaram o estrelado a apresentar um pedido de expulsão dos envolvidos. Lamentavelmente, o espírito de corpo falou mais alto e o STM entendeu que os réus “eram vítimas de um processo viciado” (volto com mais detalhes acerca desse assunto numa próxima postagem).

Observação: Durante a campanha de 2018, circulou na Web a informação (falsa) de que o então candidato do PSL teria deixado o quartel por “insanidade mental”. Em resposta, a assessoria de imprensa do Exército divulgou uma nota afirmando que ele fora transferido para a reserva automaticamente ao ser eleito vereador no Rio de Janeiro, conforme determina o Estatuto dos Militares. Balela. O capitão-encrenca só não foi expelido da corporação porque a denúncia que o levou às barras da Justiça Militar partiu da revista Veja e os episódios que a embasaram ocorreram durante a ressaca da ditadura, época em que ninguém tinha mais aversão à imprensa do que os militares. Fala-se, inclusive, que o STM teria condicionado a decisão favorável a Bolsonaro a sua reforma.

Em 1988, já desligado do Exército, o ex-capitão que sempre balizou sua atuação política em assuntos caros aos fardados foi eleito vereador com o apoio das Forças Armadas, e levou essa mesma bandeira, dois anos depois, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro para a Câmara Federal. Deputado do baixo clero durante 27 anos, teve apagada atuação parlamentar, focada no atendimento de demandas corporativas dos militares. 

Em 1991, no primeiro de seus sete mandatos como deputado, Bolsonaro defendeu o retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso. Foi dado início a uma ação penal por crime contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Câmara, mas, para surpresa de ninguém, ficou o dito pelo não dito. Em 1994, ele disse que preferia sobreviver no regime militar a morrer naquela democracia. 

Em 1999, a Mesa Diretora da Câmara propôs ao plenário aplicar um mês de suspensão a Bolsonaro por defender o fechamento do Congresso e afirmar que “a situação do país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente” — entre os quais o então presidente Fernando Henrique. Dessa vez, para variar, o boquirroto recebeu uma advertência, mas pau que nasce torto morre torto: meses depois, o indigitado voltou a defender o fuzilamento de FHC. O então líder do governo na Câmara chegou a pedir sua cassação, mas a proposta sequer chegou ao plenário da Casa. Em 2016, ao votar a favor do impeachment da gerentona de araque, o deputado fez uma homenagem ao coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra — e foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara por apologia à tortura. Mais uma vez, nada aconteceu.

Na eleição presidencial passada, que foi a mais conturbada desde a redemocratização, com a população dividida em petistas/lulistas e antipetistas/antilulistas, os 57,8 milhões de votos que elegeram Bolsonaro 38º presidente do Brasil não vieram somente de bolsomínions, simpatizantes e admiradores de suas propostas, mas também de gente que não queria ver o país governado por um presidiário. Isso não teria acontecido se, no primeiro turno, o “esclarecidíssimo” eleitorado apostasse num candidato mais “de centro”, considerando que mesmo entre aquela trupe de show de horrores travestida de lista de postulantes à Presidência havia dois ou três nomes que poderiam ter sido testados. Mas agora é tarde, Inês é morta.

A despeito das cinco ações em que Bolsonaro e Haddad se acusavam mutuamente de abuso de poder econômico na campanha e pediam um a inelegibilidade do outro, a ministra Rosa Weber, então presidente do TSE, disse que as investigações tinham um período de "instrução probatória" e o corregedor iria "perceber necessidade de provas que definiriam maior ou menor necessidade de tempo". 

Observação: Disso não resta a menor sombra de dúvida: basta lembrar que a ação movida pelos tucanos contra a chapa Dilma-Temer, depois da derrota de Aécio em 2014, só foi julgada três anos depois.

Bolsonaro era réu no STF (decisão da 1ª Turma por 4 votos a 1, vencido o ministro Marco Aurélio) pelos crimes de injuria e apologia ao estupro. A ação, que fora aberta em 2016 e estava em fase final, investigava o episódio no qual, em 2014, o então deputado afirmou (na Câmara e em entrevista ao jornal Zero Hora) que a colega petista Maria do Rosário “não merecia ser estuprada porque era muito feia e não fazia seu ‘tipo”. Posteriormente, outra denúncia (dessa vez por crime de racismo) foi submetida ao STF, mas acabou suspensa pelo pedido de vista de Alexandre de Moraes, depois que Marco Aurélio e Luiz Fux votaram pela rejeição e Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, pela aceitação.

Declarações polêmicas sempre foram (e continuam sendo) a marca registrada do ainda presidente, que, a exemplo de Ciro Gomes, não tem papas na língua e diz o que pensa antes de pensar no que vai dizer. Aliás, foi justamente sua postura intempestiva que conquistou dezenas de milhões de votos. 

PT usa a estratégia da vitimização, que sempre funcionou com a patuleia — que não precisa ser convencida de nada, dada sua fidelidade canina a Lula e ao partido. Curiosamente, essa mesma estratégia vem sendo usada peplo Sultão do Bolsonaristão, que “governa” para sua claque e explora sempre que pode o atentado de que foi vítima em setembro de 2018 (mais detalhes nesta postagem).

Continua...

sexta-feira, 20 de maio de 2022

QUER CONHECER O CARÁTER DE UMA PESSOA? DÊ-LHE O PODER! (QUARTA PARTE)



Lula é uma caricatura de si mesmo, uma foto amarelada que insiste em permanecer pendurada na parede do PT, até porque ele e seu espúrio partido são uma coisa só. De acordo com as pesquisas, o ex-presidiário já ganhou (com 171% dos votos) e se prepara alegremente para voltar à cena do crime.

Bolsonaro, que atacou duramente o Centrão durante a campanha e prometeu sepultar a “velha política” do “toma lá, dá cá”, passou por nove partidos, todos do Centrão. Entre 2019 e 2020, tentou criar o Aliança Pelo Brasil, mas não conseguiu reunir o número mínimo de assinaturas e acabou se amancebando com o PL. Na cerimônia de filiação à sigla presidida pelo do ex-mensaleiro e ex-presidiário Valdemar Costa Neto, disse que “estava se sentindo em casa”. Mas vamos por partes, que a desgraça vem de longe.

Bolsonaro iniciou sua trajetória militar em 1973, na Escola de Cadetes de Campinas (SP). No ano seguinte, ingressou na AMAN, onde cumpriu o curso básico de paraquedismo do Exército e foi promovido a aspirante a oficial de artilharia. Em 1986, protestou contra os baixo soldo dos militares num artigo publicado pela revista Veja, que lhe rendeu 15 dias na prisão. Em 1987, Veja denunciou seu plano de explodir bombas em instalações militares como forma de pressionar o comando por melhores salários e condições. Ele e seu comparsa, o também capitão Fábio Passos da Silva, foram condenados por unanimidade. O STM os absolveu por 9 votos a 4, mas suas carreiras militares acabaram ali. 

Desfardado e travestido de defensor dos interesses corporativistas dos fardados, Bolsonaro conquistou uma cadeira na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Dois anos depois, elegeu-se deputado federal. Ao longo de 7 mandatos, aprovou 2 projetos e colecionou mais de 30 processos. Em 2018, graças a uma improvável conjunção de fatores, foi despachado para o Palácio do Planalto, onde permanece até hoje graças à leniência do Legislativo e do Judiciário.

Para se escudar de mais de 140 pedidos de impeachment — um recorde, considerando o escore de seus predecessores (Collor, 29; Itamar, 4, FHC, 24; Lula, 37; Dilma, 68; e Temer, 31) —, o ex-capitão usou o "orçamento secreto" para ter um cúmplice na presidência da Câmara; para se imunizar contra investigações por crimes comuns, nomeou esbirro procurador-geral (ao arrepio da lista tríplice do MPF) e o mantém na rédea curta mediante a promessa de guindá-lo ao STF.

Observação: Em 1993, o ex-presidente-general Ernesto Geisel se referiu ao então capitão como “um caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”. A quem interessar possa, a carreira militar do “mito” é narrada em detalhes no livro “O Cadete e o Capitão: A Vida de Jair Bolsonaro no Quartel” (Todavia), publicado em 2019 pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho.

A carreira política se confunde com a vida pessoal do mau militar e parlamentar medíocre. Sua primeira esposa, Rogéria Bolsonaro, foi eleita vereadora no Rio de Janeiro em 1996. Em 2000, durante a separação do casal, ela concorreu à reeleição e foi derrotada pelo filho 02 — que se tornou o vereador eleito mais jovem da História do país. 

Os filhos 01 e 03 também seguiram os passos do pai na política: Flávio, o devoto das rachadinhas foi eleito deputado estadual pelo Rio de Janeiro em 2002 (e reeleito três vezes antes de conquistar uma vaga Senado Federal). Eduardo, o fritador de hambúrguer que quase virou embaixador, foi eleito deputado estadual por São Paulo em 2014 e reeleito em 2018. 

Observação: Afora o célebre caso de Zero Um e as rachadinhas, a PF e o Ministério Público apuram suspeitas contra Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Renan Bolsonaro por tráfico de influência, contratação de funcionários fantasmas e envolvimento na organização de manifestações que pediram o fechamento de instituições como o Congresso e o Supremo. Tutti buona gente!


Abro um parêntese para dizer que a decisão do TJ-RJ que fez de 01 o mais novo "inocente entre aspas" (mais detalhes na próxima postagem) foi "mais do que justa", sobretudo num país democrático onde uma decisão estrambótica chancelada em supremo plenário por 8 votos a 3 transformou um ex-presidente presidiário em "ex-corrupto" e apto a voltar à cena do crime. 

Isso me faz lembrar de uma anedota dos tempos da ditadura, segundo a qual o general-presidente da vez, em visita oficial à Bolívia, mal disfarçou o riso quando lhe foi apresentado o ministro da Marinha do país vizinho... e foi prontamente lembrado de que seu colega boliviano não riu quando, em vista ao Brasil, lhe foi apresentado o ministro da Justiça tupiniquim.

Continua... 

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

NO TEMPO EM QUE A TERRA AINDA ERA REDONDA...

 
No tempo em que a Terra ainda era redonda, os valores pareciam mais nítidos. Na hierarquia militar, o presidente da República, comandante-em-chefe das Forças Armadas, era superior a tenente-coronel, e ajudante de ordens cumpria ordens. 

Na Presidência da Terra plana, Bolsonaro — que o general Ernesto Geisel definiu como "um mau militar" — disse que o tenente Mauro Cid "tinha autonomia", contrapondo-se ao fator da subordinação alegado pela defesa. O acordo de colaboração do ex-esbirro está sob sigilo, mas as investigações apontam o ex-amo como mentor e beneficiário de um esquema internacional de venda de joias e o ex-vassalo e seu papai como os principais operadores. 

Em privado, o imbrochável diz que não contava com a "deserção" do ajudante, mas seu abatimento — comparável ao da derrota nas urnas — surpreendeu apoiadores. Em meio a esse breu, o PL encomendou uma pesquisa para estimar os danos, e o "mito", que que sempre falou dez vezes antes de pensar, passou a medir as palavras, como se tivesse uma régua no lugar da língua. O problema é que a língua de Cid se desprendeu da coleira.

Em algum momento, Bolsonaro terá que decidir se quer ser um capitãozinho-poodle ou o velho pitbull de sempre. Quando da prisão de Cid, ele afirmou que cada um deveria seguir a sua vida. Quando a PF escancarou o comércio das joias, disse que o ex-auxiliar tinha autonomia. Agora, com os dois pés na ficção, afirma não ver a hora de abraçá-lo — mas não esclarece se será um abraço de urso ou de tamanduá.

Quem ouve dizer que o 8 de Janeiro não foi uma tentativa de golpe fica com a sensação de um passageiro que sobrevoa a história sabendo que sua bagagem viaja em outro avião. Com as sentenças draconianas impostas aos três primeiros condenados pelos atos terroristas, o STF como que unificou o voo da história, colocando os brasileiros e a carga radioativa do governo anterior na mesma aeronave. Para nove das 11 togas, o objetivo da turba era reverter o resultado das urnas mediante um golpe de Estado (foram empurrados para a borda da Terra plana os ministros bolsonaristas Nunes Marques e André Mendonça).

Foi fácil militarizar a política; difícil, agora, é desbolsonarizar os militares. Segundo o Datafolha, 6 em cada dez brasileiros acreditam que as Forças Armadas meteram-se em irregularidades, e a reversão de uma urucubaca tão disseminada exige mandinga mais forte do que o lero-lero de "separar o joio do trigo". Os resultado da pesquisa faz sentido, pois os fardados se deixaram cavalgar por um capitão que o general-ditador que começou a desmontar a ditadura definiu como "um mau militar". 

Hoje, a vida pública se reduz novamente a uma dimensão de caserna. Altas nomeações políticas dependem da confiança num antigo companheiro de guarnição. Sob Bolsonaro, o Estado tornou-se quartel, e o pedaço que viu no mandatário de fancaria a chance de "salvar a sociedade do comunismo" conferiu péssima fama à ala da Caserna que manteve os pés na democracia. 

O 8 de Janeiro entra para os compêndios de história como o golpe que falhou porque o candidato a tiranete não conseguiu o apoio de "seu Exército" e de "suas Forças Armadas." Mas há mãos fardadas em todas as cumbucas — da trama golpista ao comércio de joias; da pazuellização da Saúde à falsificação de cartões de vacina; do ataque sistemático ao sistema eleitoral às visitas do picareta de Araraquara à pasta da Defesa. Ao testemunhar em silêncio as extravagâncias de Bolsonaro, a banda muda do Alto-Comando das FFAA como que se aliou às multidões que acamparam na porta dos quartéis para pedir intervenção militar. 
 
É natural que o brasileiro tenha dificuldade para distinguir general de generalidades. Especula-se que as desculpas esfarrapadas das Forças Armadas não conseguirão vestir nem 5% dos segredos que o tenente-coronel Mauro Cid deve incluir em sua delação. 

Aos olhos da população, os milicos ficaram muito parecidos com um típico político brasileiro .

Com Josias de Souza

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

COISAS QUE SÓ ACONTECEM NO BRASIL


Dizem que a jabuticaba (fruta) e a saudade (palavra) são exclusividades tupiniquins, mas não é verdade. Apesar de ser nativa da Mata Atlântica, a jabuticabeira está presente em outros países da américa latina, como México e Argentina. E o vocábulo "saudade" tem similares em espanhol (soledad), no catalão (soledat) e em várias outras línguas neolatinas.

A originalidade portuguesa foi a extensão do termo a situações que não a "solidão devida à falta do lar". Para nós, "saudade" é algo como "a dor de uma ausência que temos prazer em sentir" — ou, na definição dos dicionaristas, um "sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas". Aliás, quem tem prazer em sentir dor é masoquista.

Não restam dúvidas de que o Brasil está longe de ser um país sério. A propósito, quem proferiu a célebre frase "le Brésil n’est pas un pays serieux", frequentemente atribuída ao general francês Charles de Gaulle, foi na verdade o diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho, genro do presidente Artur Bernardes. E quem disse que "O Brasil não é para principiantes" (ou para "amadores", conforme a versão dessa história) foi mesmo o saudoso maestro Tom Jobim (brasileiro até no nome).

Saudosistas não raro idolatram um passado que nunca existiu. No Brasil, alguns vão mais além: gente que nem sequer era nascida quando a eleição de Tancredo Neves pôs termo à ditadura militar diz "sentir saudades dos anos de chumbo" e (pasmem!) apoia o desgoverno do inquilino de turno do Planalto — uma aberração que apoiamos para evitar a volta do lulopetismo corrupto, sem imaginar, àquela altura, que estávamos removendo o pino de uma granada de efeito retardado, desarrolhando a garrafa que prendia um efrite (ou ifrit) megalômano, abrindo a caixa de Pandora, enfim, deixo por conta do freguês a escolha da melhor analogia.

Desde a posse, esse mau militar e parlamentar medíocre nada fez senão articular sua reeleição. Quanto aos inúmeros problemas que o país enfrenta (em parte pela incompetência chapada de seu mandatário de fancaria), sua excelência vem fazendo o que continuará a fazer se não for impedido — ou seja, o que ele disse ter feito para a CPI do Genocídio. E assim, de cagada em cagada, o cagão vai esmerdeando o lema chauvinista e enjoadinho que associou à sua campanha: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".

Conhecimentos não-empíricos, de segunda-mão, obtidos através de inexatos livros de História não autorizam quem quer que seja a pleitear volta dos fardados ao poder. A ditadura militar, instituída em março de 1964 com a deposição do então presidente João Goulart e a posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco se estendeu por intermináveis 21 anos, ao longo dos quais ocuparam o Palácio do Planalto os generais Costa e SilvaMédici, Geisel e Figueiredo, nessa ordem. 

Em 1968, o “linha-dura” Costa e Silva decretou o AI-5, produzindo um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros que prevaleceram durante o período mais repressivo do governo militar. Em 1974, Geisel deu início ao lento processo de abertura que poria fim, 11 anos depois, ao regime de exceção com a eleição (indireta) de Tancredo Neves — o primeiro presidente civil em mais de duas décadas (que baixou ao hospital 12 horas antes da cerimônia de posse e morreu 38 dias e 7 cirurgias depois).

O fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” de Geisel e Figueiredo nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. Aliás, o processo de abertura só foi concluído devido a manifestações populares pró-diretas que reuniram, em 1983, cerca de 1,5 milhão de pessoas na Candelária (na Cidade Maravilhosa) e 1 milhão no vale do Anhangabaú (em Sampa). A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé (também na capital paulista), em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE”.

Observação: Os manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes como Ulysses Guimarães, Tancredo NevesLeonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Lula e outros políticos, além de artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone. Em meados dos anos 1980, a Internet ainda era uma ilustre desconhecida e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

A “Revolução de 1964” — cuja data comemorativa é 31 de março — foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril, quando líderes civis e militares conservadores derrubaram Jango — a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo. Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas, que havia sido suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada — em outras palavras, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que, infelizmente, é um mal necessário.

O desgaste do governo propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves, que venceu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral (por 480 votos a 180), depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal, formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar. Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra o pedessista Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos e, consequentemente, a volta dos militares às casernas. Mas o que deveria ser a festa da democracia se transformou em luto nacional: Tancredo foi internado 12 horas antes da cerimônia de posse morreu 38 dias e 7 cirurgias depois. O sepultamento do político — em São João Del Rey (MG) — produziu um dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país: o féretro foi seguido por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho da cidade natal daquele que foi, sem jamais ter sido, o maior presidente do Brasil.

Após algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara dos Deputados (Ulysses Guimarães) ser guindado ao Palácio do Planalto, prevaleceu o entendimento de que o rebotalho do coronelismo nordestino José Sarney, vice na chapa de Tancredo, deveria assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Sem embargo, há por estas bandas gente que — repito — sequer era nascida quando a eleição de Tancredo marcou o fim da ditadura, mas se diz saudosa dos "anos de chumbo". E tudo indica que essa escumalha comparecerá em peso às manifestações pró-governo marcadas para o próximo dia 7. Quem viver verá que haverá, então, mais jovens rinchando bestagens do que sessentões — que cresceram e adolesceram em meio à ditadura — defendendo o fechamento do Congresso e a prisão dos ministros do STF, entre outras sandices.

Longe de mim passar a impressão de que, em minha desvaliosa opinião, nossos parlamentares façam jus a rasgados elogios. E o mesmo se aplica a atual composição da mais alta corte de Justiça tupiniquim. Como instituições, tanto a Presidência da República quanto o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal merecem nosso mais profundo respeito. Mas daí a dizer que o atual chefe do Executivo (assim como os que o precederam desde a "redemocratização"), os 513 deputados federais, os 81 senadores e os 10 togados supremos (seriam 11 se alguém já tivesse ocupado a vaga aberta com a aposentadoria do primo de Collor) merecem o mesmo tratamento é confundir alhos com bugalhos.

Observação: Confundir alhos com bugalhos é o mesmo que trocar as bolas, ou, por extensão, meter os pés pelas mãos. O que muita gente não sabe é que bugalhos são bulbos comestíveis de textura semelhante à do alho, cujo formato de pênis inspirou um fado que os marujos lusitanos cantavam nos tempos de Cabral: “Não confundas alhos com bugalhos / Nem tampouco bugalhos com caralhos”.

Retomando o fio da meada, ou melhor, remetendo ao título desta postagem — que tomei emprestado do artigo publicado por Ricardo Rangel em Veja — e que transcrevo mais adiante —, há coisa que parecem acontecer somente no Brasil (e ainda dizem que Deus é brasileiro!).

Ao contrário do que escreveu Karl Marx, a história nem sempre se repete como tragédia ou farsa. Às vezes — para o bem ou para o mal — ela reproduz fielmente o passado.

A julgar pelo exercício de futurologia que institutos como Datafolha, Ibope, Vox Populi, Paraná Pesquisas e assemelhados chamam de pesquisas de intenções de voto, o ex-presidiário travestido de "ex-corrupto" e o maníaco que (ainda) ocupa o Palácio do Planalto abrilhantarão o segundo turno do pleito presidencial de 2022. E a menos que o imprevisto tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, o picareta dos picaretas fará picadinho do capitão despirocado. Ao que parece, tudo depende do que acontecer no próximo dia 7 (vide postagem anterior). Enfim, quem viver verá. Enquanto isso, passo a palavra a Rangel.  

O presidente da República declarou que o Supremo não tem direito de abrir inquérito de ofício. O governo federal entrou com ação no Supremo pedindo ao Supremo que revogue o artigo do regimento interno do Supremo que permite ao Supremo que abra inquérito de ofício.

O advogado do presidente da República cantou uma mulher casada e fugiu correndo quando o marido da mulher o perseguiu com uma faca.

O presidente da República convocou para o golpe (que ele chama de “contragolpe”). Quando a convocação vazou, irritou-se.

Um cantor convocou para o golpe. Quando a convocação vazou, declarou-se magoado, triste, depressivo e chorou em entrevista. Ao sofrer busca e apreensão, declarou que não tem medo de ir para a cadeia, que não é frouxo, não é mulher. E novamente pediu desculpas em nova entrevista, desta vez na cama.

Um deputado aventou a hipótese de que o cantor tenha usado dinheiro público para comprar uma prótese peniana. O líder da associação dos produtores de soja desmentiu o cantor, que havia citado seu nome como participante do golpe, e deu como explicação a hipótese de ele ter “tomado umas pingas”. Após sofrer busca e apreensão, o líder desfilou com tratores na porta da Polícia Federal.

O presidente da República entrou com ação de impeachment contra ministro do Supremo.

Um comediante fez ameaças aos ministros do Supremo e pediu o fechamento do tribunal e do Congresso.

Vários coronéis da PM, inclusive um da ativa, comandante de cinco mil homens, convocaram para o golpe — que tem data, hora e local marcados com um mês de antecedência e conhecidas pelo público.

Os militares avisaram que não vão poder comparecer.

EM TEMPO: Na manhã do último sábado, durante o 1° Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás, nosso indômito capitão compartilhou com a récua de muares que vão ao Nirvana com suas bolsonarices a seguinte profecia: "Eu tenho três alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter certeza de que a primeira alternativa não existe. Estou fazendo a coisa certa e não devo nada a ninguém. Sempre onde o povo esteve, eu estive". Esqueceu-se sua excelência de uma quarta possibilidade, que, pelo andar da carruagem, tende a ser a mais provável: a derrota.

No âmbito judicial, Bolsonaro é investigado em cinco inquéritos. O assim chamado inquérito das fake news, que tramita no STF, investiga um esquema de disseminação sistemática e organizada de informações falsas com o objetivo de fragilizar as instituições e a democracia. Outro inquérito, no TSE, investiga o mandatário por ataques sem provas às urnas eletrônicas e tentativa de deslegitimar o sistema eleitoral brasileiro. Além disso, nos últimos dias, aliados do presidente foram alvo de operações contra atos ofensivos à democracia e às instituições do Estado.

Bolsonaro também enfrenta desgaste nos campos político e econômico, com inflação, desemprego e pobreza em alta, e o risco de apagão no fornecimento de energia elétrica, diante do baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas. Em Goiânia, ao lado de líderes evangélicos, o presidente discursou por cerca de 20 minutos. No fim, disse: "Deus me colocou aqui, e somente Deus me tira daqui", repetindo uma frase já comum em declarações do presidente. Já do lado de fora da igreja, tirou fotos com apoiadores e tomou caldo de cana. Depois de falar com o público, ele se encontrou com políticos e empresários de Goiás em um local onde foram colocadas tendas e montado um palco. 

Alea jacta est.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

ALEA JACTA EST


Dizem que o grande responsável pelos mais de 400 mil mortos pela Covid dá expediente no gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto e discursa todas as tardes, para uma claque de toupeiras amestradas, num chiqueirinho armado diante do Alvorada.

Para quem ainda não fez a devida associação, acrescento tratar-se de um ex-capitão do Exército que o general Ernesto Geisel definiu como um “caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”, que o coronel Carlos Alfredo Pellegrino disse que não conseguia liderar a soldadesca devido a “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação dos argumentos”, e que foi acusado, durante seu julgamento no STM, de ter “grave desvio de personalidade”.

Observação: Comissão criada pela OAB concluiu que Jair Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade e contra a humanidade ao fundar uma "República da Morte" no País. Segundo o colegiado, o capitão agiu deliberadamente contra medidas de proteção à Covid e se omitiu em diversas situações que poderiam reduzir o número de óbitos causados pela doença. “A questão que se põe no presente momento é a seguinte: pode-se provar com segurança, e de acordo com as leis da natureza, que centenas de milhares de vidas teriam sido salvas, caso o presidente e outras autoridades tivessem cumprido com o seu dever constitucional de zelar pela saúde pública? A resposta é um retumbante sim”, apontou o relatório dos juristas.

Em 1991, no primeiro de seus sete mandatos de deputado, o mau militar em questão defendeu o retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso. “Muitas leis atrapalham o exercício do poder”, asseverou o dito-cujo. “Num regime de exceção, o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando”, complementou, levando o corregedor do Congresso à época — deputado Vital do  Rego — a solicitar à Procuradoria Geral da República a abertura de uma ação penal por crime contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Casa.

Em 28 anos no baixo clero da Câmara, o ex-capitão promovido a deputado aprovou dois projetos de lei e colecionou mais de 30 processos — a maioria por ação de parlamentares de esquerda, notadamente do PT, mas isso é outra conversa. Em 2018, graças a uma récua de muares legalmente capacitados a votar, a parcela pensante do eleitorado se viu obrigada apoiar o bolsonarismo boçal para evitar o retorno do lulopetismo corrupto.

Como ensinou o oncologista Nelson Teich em seu pronunciamento de despedida do ministério da Saúde (que comandou por míseros 28 dias), “a vida é feita de escolhas”. A questão é que escolhas implicam consequências, e como bem assinalou o Conselheiro Acácio (personagem do romance O Primo Basílio, do escritor português Eça de Queiroz), o problema com as consequências é que “elas sempre vêm depois.” Duas frases singelas, mas que explicam muita coisa.  

Bolsonaro nunca foi o candidato a presidente com que a maioria de nós sonhava (como tampouco o foram Dilma, Lula, FHC e Collor). Por outro lado, era impossível imaginar que sua passagem pelo Palácio do Planalto seria tão funesta. Agora sabemos que o capitão jamais se converterá à democracia nem exercerá de forma republicana o cargo para o qual foi eleito em 2018 — e aqui peço perdão pela insistência, mas não há como não repetir mais uma vez que isso decorreu de absoluta falta de opção.

Águas passadas não movem moinhos, mas o diabo é que o brasileiro tem vocação inata para repetir os mesmos erros esperando que um dia sua perseverança seja recompensada com um acerto. Prova disso é que um terço da população apoia Bolsonaro (pelo menos é o que atestam as nem sempre confiáveis pesquisas de intenção de voto), embora ele deixe mais claro a cada dia seu absoluto descompromisso com o Estado Democrático de Direito e repita ad nauseam suas abjetas ameaças golpistas.

Se, em plena pandemia, Bolsonaro — “eleito” pelo jornal americano The Washington Post o pior líder mundial no enfrentamento da Covid — segue solapando as instituições, como esperar que venha a desempenhar um papel construtivo de ações conjuntas entre as várias correntes políticas? Além de ser determinante para a recuperação econômica, a vacinação em massa é a única solução para pôr termo ao crescimento da pilha de cadáveres produzidos pelo vírus maldito em parceria com o negacionismo atávico do mito de fancaria e das toupeiras que o veneram.

A despeito das dezenas de ações e omissões que podem caracterizar crime de responsabilidade e dos quase 120 pedidos de impeachment que dormitam em alguma gaveta do presidente da Câmara, as oposições reagem timidamente. E quanto mais tempo passa, tanto pior a situação do país. Mesmo assim os “representantes do povo” dão de ombros para as urgências sociais, de saúde pública, econômicas e institucionais, pois interessa-lhes obter cargos e verbas em troca da blindagem do chefe do Executivo contra um impeachment ou uma investigação no STF.

Como em 2018, as principais siglas mostram-se incapazes de projetar nos médio e longo prazos as consequências de suas ações e/ou inações. Entrementes, Bolsonaro esbanja dinheiro público e abusa de artimanhas abjetas (fake news, discursos de ódio etc.) para sustentar seu projeto de poder — ou de permanecer no poder, melhor dizendo.

DEM, PSDB, PSD e MDB empurram com a barriga a possibilidade (cada vez mais remota) de construírem uma frente alternativa ao bolsonarismo para 2022. Presos ao imediatismo de cargos e emendas, os nobres parlamentares parecem não enxergar o óbvio: se a pandemia não for controlada e a economia não se recuperar, o Orçamento em frangalhos não comportará todos os ministérios e emendas prometidos em troca do apoio para as eleições de Lira na Câmara e Pacheco no Senado. E o Centrão não tem pruridos de fazer a cobrança em alto e bom som — e na forma de votações.

Bolsonaro reclamava de Rodrigo Maia, mas vai sentir falta do compromisso que o deputado fluminense sempre teve com o ajuste fiscal. Sob a batuta do rei do Centrão, o teto de gastos é apenas um obstáculo ao cumprimento das promessas de campanha e os cento e tantos pedidos de impeachment, um alerta: se o capitão mijar fora do penico e não entregar tudo o que prometeu, será rifado pelo presidente da Câmara que ajudou a eleger.

Da mesma forma que nações não têm amigos, mas sim interesses, na política o aliado de hoje pode ser o adversário de amanhã. E vice-versa. Não há, portanto, que falar em fidelidade: nem o capitão hesitará em culpar o Centrão pelo fracasso de seu governo, nem o Centrão em rifar o presidente caso sua popularidade faça como a vaca do ditado e afunde de vez no brejo da pandemia. É como na fábula do sapo e o escorpião, com a diferença de que, no caso específico de Bolsonaro e o Centrão, os dois companheiros de travessia têm ferrão.

Acuado pelos relatos que estão surgindo na CPI, Bolsonaro recorre (mais uma vez) à estratégia da ameaça e do extremismo. Para acirrar os ânimos de seus apoiadores mais radicais, ele ameaça (mais uma vez) confrontar o STF para testar a sua força popular — uma jogada arriscada, dado o risco de transpor a linha que separa o legal do ilegal. As Forças Armadas já deixaram claro que querem distância de seus arroubos antidemocráticos, mas o capitão volta a falar (mais uma vez) em “meu Exército” e chama os militares para a confrontação. Suas ameaças cheiram a bazófia, mas podem se tornar realidade se as apurações da CPI deflagrarem um processo de impeachment (pedidos não faltam).  

As manifestações populares foram coibidas pela pandemia, embora não faltem fanáticos dispostos a sair às ruas em protestos contra e a favor do presidente. Se o caldo entornar, as instituições terão de funcionar, inclusive o Exército, que terá de descer do muro e mostrar claramente se apoia a democracia ou um mandatário claramente desequilibrado, que faz de tudo para criar um ambiente político que dê azo ao autoritarismo. Resta saber se o capitão está mesmo disposto a esticar a corda até o final e testar as ruas.

Bolsonaro é um extremista. Sua política é a de combate às instituições e desqualificação dos adversários (que ele vê como inimigos). Tentar combatê-lo da forma tradicional tem levado à paralisia institucional. Mesmo à sombra da pilha de corpos produzida pela Covid e com uma economia em frangalhos, o capitão tem se equilibrado no cargo graças a preceitos constitucionais que ele próprio despreza. Aliás, ainda não ter sido penabundado, na atual conjuntura, já é uma vitória. Mas a situação pode mudar com a CPI da Covid.

Enfim, alea jacta est (não para ele, mas para nós).

quarta-feira, 24 de março de 2021

O PACTO QUE REÚNE BOLSONARO, CONCILIAÇÃO E ENTENDIMENTO

Em entrevista à Estação Nêumanne, Merval Pereira se disse surpreso e decepcionado com o apoio dos militares ao desgoverno federal. Na visão do jornalista, os fardados deveriam controlar o lunático que se tornou seu comandante-em-chefe, mas foram seduzidos por cargos, salários e poder.

A mim me surpreende a surpresa do jornalista global, já que ele próprio lembrou, em artigo recente, que a biografia de Bolsonaro feita pelo CEPEDOC da Fundação Getúlio Vargas é uma sucessão de fatos que pavimentaram o caminho trilhado pelo capitão insubmisso rumo à presidência da República com a leniência que lhe foi dispensada tanto pelo Exército quanto pelo Parlamento. 

Em 1986, quando era capitão no 8º Grupo de Artilharia de Campanha, o hoje despresidente foi preso por ter publicado na revista Veja um artigo intitulado “O salário está baixo”. No ano seguinte, a própria Veja denunciou a “Operação beco sem saída” — um protesto urdido em pareceria com o também capitão Fábio Passos da Silva, com o objetivo de explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras e em diversos quartéis, caso o reajuste do soldo ficasse abaixo de 60%. 

Segundo declaração do general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército, os capitães negaram peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho, qualquer veracidade daquela informação. Mais adiante, depoimentos de testemunhas e provas documentais — como um croqui desenhado por Bolsonaro — levaram o general a apresentar um pedido de expulsão dos dois, mas Superior Tribunal Militar decidiu, por maioria, acatar a tese da defesa, segundo a qual os réus “eram vítimas de um processo viciado”. 

Durante a campanha presidencial que culminou com a vitória de Bolsonaro, circulou na Web a informação — falsa — de que o então candidato teria deixado o quartel por “insanidade mental”. Em resposta, a assessoria de imprensa do Exército divulgou uma nota dizendo que o capitão fora transferido para a reserva automaticamente ao ser eleito vereador no Rio de Janeiro, conforme determina o Estatuto dos Militares. Balela. Foi a aversão dos fardados à imprensa a grande responsável pela absolvição de Bolsonaro (fala-se, inclusive, que o STM teria condicionado a decisão favorável ao capitão à sua reforma).

Em 1988, Bolsonaro foi eleito vereador com o apoio dos militares — ele sempre balizou sua atuação política em assuntos caros aos fardados, como melhorias nas condições de trabalho de soldados e cabos (o baixo clero da caserna), e levou essa bandeira da Câmara de Municipal do Rio de Janeiro para a Câmara Federal, que atravessou com uma apagada atuação parlamentar, focada no atendimento de demandas corporativas das Forças Armadas.

Em entrevista concedida à revista Época, o general Ernesto Geisel qualificou  de “caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”. Segundo o coronel Carlos Alfredo Pellegrino, o capitão Bolsonaro tentava liderar oficiais subalternos, mas não conseguia pela “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”. No julgamento do STM, o insurreto foi acusado de ter “grave desvio de personalidade”. Em 1991, no primeiro de seus sete mandatos de deputado federal, Bolsonaro defendeu o retorno do regime de exceção e o fechamento temporário do Congresso. Segundo ele, muitas leis atrapalham o exercício do poder e “num regime de exceção o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando”. O pronunciamento levou o corregedor do Congresso, deputado Vital do  Rego, a solicitar ao então PGR, Aristides Junqueira, o início de uma ação penal contra o parlamentar por crime contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Câmara.

Em1994, Bolsonaro afirmou disse que preferia “sobreviver no regime militar a morrer nesta democracia”; em 1999, a Mesa Diretora da Câmara propôs ao plenário sua suspensão por um mês, por ter defendido o fechamento do Congresso e afirmado que “a situação do país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente”, incluindo o então presidente Fernando Henrique, mas recebeu apenas uma advertência. Em dezembro, o deputado voltou a defender o fuzilamento de FHC. O líder do governo na Câmara, Artur Virgílio, chegou a pedir sua cassação, mas a proposta nunca chegou ao plenário da Casa. Ao votar em abril de 2016 a favor do impeachment de Dilma, o capitão fez uma homenagem ao coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara por apologia à tortura, mas nada aconteceu.

Desde o início da pandemia que o presidente relativiza (para dizer o mínimo) a importância das medidas de segurança, como o isolamento e o uso de máscaras. Já usou palavras como histeria e fantasia para classificar a reação da população e da imprensa ao vírus. “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades, mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?” disse sua excelência, depois de afirmar (no início do ano, quando os números indicavam o recrudescimento de internações e mortes) que o Brasil estava vivendo “um finalzinho de pandemia”.

Observação: ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta diz que o Brasil já vive o caos no sistema de saúde, com mortes por desassistência — e está a um milímetro do colapso, que é quando mesmo quem está dentro de hospitais não consegue ser socorrido.

Bolsonaro defende o uso da Cloroquina e tratamentos precoces não avalizados pela comunidade científica. Incentiva aglomerações, obstrui a compra de vacinas, dissemina informações falsas sobre a Covid, faz campanhas de desobediência a medidas de proteção (confira a lista de asneiras que ele já disse sobre a “gripezinha”) e ataca governadores. Já comparou toque de recolher de gestores estaduais em pânico com a lotação das UTIs a um estado de sítio baixado por “tiranetes” e “tiranos”. Avisou que “o caos vem aí”. Ameaçou chamar “o meu exército" se continuarem “esticando a corda”. Declarou que o general Eduardo Pesadelo fez “um trabalho extraordinário no Ministério da Saúde”. E agora, vendo sua popularidade entrar em parafuso, defende conciliação e entendimento. Quer envolver as cúpulas dos três Poderes na guerra contra a Covid.

Arrisca-se a fazer papel de bobo quem acreditar na teatralidade de uma articulação que reúne num mesmo pacote Bolsonaro e os vocábulos conciliação e entendimento. São coisas inconciliáveis. O teatro da concórdia está marcado para hoje, no Palácio da Alvorada. Encabeçam a lista de convidados Luiz Fux, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira. Os convites foram formulados na semana passada, nas pegadas da queda de Bolsonaro no Datafolha. Desde então, o presidente dedicou-se em tempo integral ao único setor do seu governo que funciona com perfeição: a usina de crises.

Nesta segunda-feira, antevéspera da sessão de teatro no Alvorada, Bolsonaro disse que o Brasil “dá exemplo” na pandemia, que o governo faz um “trabalho excepcional” na distribuição de vacinas e que não tem a mais remota intenção de se reposicionar em cena. “Devo mudar o meu discurso, me tornar mais maleável?”, ele perguntou. “Se me convencerem do contrário, eu faço. Mas não me convenceram ainda. Devemos lutar contra o vírus, não contra o presidente.”

Ou seja: o pacto ensaiado pelo Planalto é mais ou menos como o diálogo travado entre um cego e um grupo de surdos, na solidão de uma gruta chamada impasse. A hipotética tentativa de entendimento surtirá sobre a “gripezinha” que está prestes a matar 300 mil brasileiros o mesmo efeito da cloroquina na cura da Covid.

Ninguém se lembra, mas a primeira vez que Bolsonaro falou em "pacto" foi no discurso de posse, pronunciado no Congresso em 1º de janeiro de 2019. Em timbre genérico, ele propôs um "pacto nacional entre a sociedade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de novos caminhos para o Brasil" e reafirmou seu "compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão".

O apreço de Bolsonaro pelo pacto durou a distância que separa o prédio do Congresso e a sede do Executivo. Minutos depois, em novo discurso, dessa vez no Parlatório do Planalto, sua excelência fez uma proclamação belicosa: "O Brasil começa a se libertar do socialismo e do politicamente correto", ele afirmou, inaugurando uma mania que caracteriza a sua Presidência: a mania de criar fantasmas e depois se assustar com eles. O pacto de que Bolsonaro precisa já existe. E não depende dos chefes de outros poderes para ser executado. Chama-se Constituição Federal. O trecho que se aplica à pandemia está escrito no artigo 196. Diz o seguinte: "A saúde é direito de todos e dever do Estado..."

Na guerra contra o vírus, Bolsonaro fez o pior o melhor que pôde. Seu negacionismo crônico retarda o único encontro que interessa no momento: o da seringa com o braço dos brasileiros. Fora disso, qualquer ideia de pacto ou conciliação não resiste a meia dúzia de posts nas redes sociais ou de declarações de Bolsonaro no cercadinho dos devotos. Todos já sabem o que ele precisa fazer: presidir a crise sanitária. Mas o presidente avisa que não está convencido de que deva alterar seus pontos de vista. É como se o intimasse o Brasil a decidir que país deseja ser.

Se o teatro do Alvorada não resultar numa reação efetiva à desconversa de Bolsonaro, bastará a qualquer parlamentar ou autoridade permanecer de cócoras em Brasília para ser considerada uma pessoa de grande altivez.

Com Josias de Souza

quinta-feira, 15 de abril de 2021

SOBRE A FICHA SUJA DE LULA, A CPI DA COVID E OUTRAS QUESTÕES

 

O plenário do STF ficou de discutir na tarde de ontem a decisão monocrática do ministro-relator da Lava-Jato, que agasalhou a tese esposada pela defesa do ex-presidiário Lula sobre a incompetência da 13ª Vara Federal do Paraná para julgar os processos sobre o tríplex no Guarujá e o sítio em Atibaia — além outras duas ações que estavam em fase de instrução quando o ministro Luís Edson Fachin anulou todos os atos processuais e determinou a remessa dos autos para a Justiça Federal do DF. Considerando a relevância do tema, a grandiloquência de alguns togados supremos (casos clássicos de irremediável paixão pelo som da própria voz), e o fato de o julgamento sobre o caso ser precedido pela discussão sobre a abertura da CPI da Covid no Senado (por decisão monocrática do ministro Luís Roberto Barroso), é possível que o julgamento não seja concluído numa única sessão — note o leitor que estou redigindo este texto na manhã de quarta-feira, e a abertura dos trabalhos no plenário virtual está prevista para as 14h.

Atualização (quarta, 16h45): Por maioria, o plenário manteve a decisão do ministro Barroso, que proferiu brevemente seu voto. Depois disso, o presidente da Corte, ministro Luiz Fux, perguntou aos pares se eles concordavam com a decisão. Apenas o decano divergiu da forma como foi procedido o julgamento e preferiu não se manifestar sobre o mérito; os demais acompanharam a posição do relator. Neste momento a corte se encontra em recesso. (Quinta, 7h00): Quanto ao agravo contra a decisão de Fachin que anulou as condenações de Lula, o presidente Luiz Fux fatiou o julgamento em três partes e, graças à parlapatice de alguns magistrados (notadamente Gilmar Mendes, o “rei do Judiciário”, Marco Aurélio, o “novo decano”, e Lewandowski, o “militante petista que vestiu a toga por cima da farda”), discutiu-se apenas se o caso deveria ser levado ao plenário e decidiu-se por 9 votos a 2 (vencidos Lewandowski e Marco Aurélio) que o julgamento cabe ao colegiado. A sessão foi longa e cansativa, sobretudo por conta das repetições desnecessárias do professor Lewandowski, que lecionou sobre como deve proceder um militante petista, e Mendes, que ensinou como deve agir quem quer cometer o pecado da "soberba" — que deixou de figurar na lista dos pecados mortais devido a mudanças promovidas pelo papa Bento XVI, mas enfim... Por outro lado, valeu a pena ver Fux se esforçar para manter o controle diante das patacoadas de Lewandowski e Marco Aurélio e ouvir os votos de Barroso e (surpreendentemente) da nem sempre corrente Rosa Weber. As demais fatias da pizza serão degustadas na tarde de hoje, digo, as demais etapas do julgamento serão vencidas na tarde de hoje (caso o imprevisto não tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, naturalmente).

No caso específico do ex-presidente corrupto, os ministros julgarão um agravo regimental interposto pela PGR contra a decisão monocrática de Fachin no pedido de habeas corpus apresentado pela defesa de Lula. Se o apelo for rejeitado, as duas condenações permanecerão anuladas, e o ex-presidiário, de olho na disputa presidencial de 2022, continuará vendendo aos eleitores menos esclarecidos a narrativa estapafúrdia em que posa de vítima da “maior mentira jurídica já contada na história deste país” e gritando aos quatro ventos que a Justiça finalmente reconheceu o que seus advogados vinham dizendo desde sempre: “o presidente Lula é inocente”. Demais disso, o plenário se deburçará sobre e aquestão da suspeição de Sergio Moro no caso do tríplex, que foi reconhecida pela 2ª Turma no final do mês passado (se restar confirmado que Moro não era o juiz competente para julgar Lula, o habeas corpus que questiona sua imparcialidade no caso do tríplex perde o objeto, ou seja, deixa de fazer sentido).

Se a maioria vote derrubar a liminar concedida por Fachin, três dos quatro processos de Lula voltarão à situação anterior — entre eles o do sítio, que já teve a condenação confirmada em segunda instância. Caso isso ocorra, o petralha volta a ser ficha-suja e estará impedido de disputar pessoalmente a presidência em 2022 (para o gáudio de Bolsonaro, que, em tese, teria mais chances se reeleger se enfrentasse novamente o patético bonifrate do sumo pontífice da seita do inferno).   

Vale ressaltar que a anulação do processo do tríplex decorreu da decisão da 2ª Turma, que reconheceu a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro (por 4 votos a 1, vencido o ministro Fachin). Se a decisão de Fachin sobre a incompetência da JF do Paraná for anulada pelo plenário, o processo do tríplex volta à fase de instrução, mas em Curitiba, sob a pena do juiz Luiz Antônio Bonat. No entanto, ainda que reste confirmada a competência da JF do DF, a ficha momentaneamente limpa de Lula voltaria a ser suja caso o juiz que ficar responsável pelo processo sítio em Atibaia receber a ação já na etapa de proferir a sentença — isso não se aplica ao caso do tríplex porque o processo terá de ser retomado desde o início, a menos que a decisão sobre a parcialidade de Moro seja revista. Como se vê, são como os elos de uma corrente, diferentes entre si, mas interligados uns com os outros.

Observação: Segundo Fachin, sua decisão se deveu ao fato de o STF ter decidido que só devem ser julgados em Curitiba processos oriundos da Lava-Jato que tenham a ver diretamente com o Petrolão. Na decisão de março, Fachin disse que a conduta criminosa atribuída a Lulanão era restrita à Petrobras, mas a extensa gama de órgãos públicos em que era possível o alcance dos objetivos políticos e financeiros espúrios”, razão pela qual “o caso não se amolda ao que veio sendo construído e já decidido no âmbito do Plenário e da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal a respeito da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, delimitada, como visto, exclusivamente aos ilícitos praticados em detrimento da Petrobras”.

Mudando de um ponto a outro, a criação de narrativas estapafúrdias com o intuito de acirrar uma militância radical, cega pelo fanatismo político-ideológico, não é uma exclusividade do deus pai da Petelândia. O candidato que apoiamos para evitar a volta do lulopetismo corrupto em 2018 nunca foi o presidente com que sonhávamos, mas jamais imaginamos o pesadelo kafkiano que se tornaria esta banânia sob a égide do bolsonarismo boçal. Em seu estelionato eleitoral, o dublê de mau militar e parlamentar medíocre desmanchou-se em promessas de campanha que jamais pretendeu cumprir ou que não pode cumprir devido a circunstâncias adversas. Propor uma PEC para elidir da Constituição o nefando instituto da reeleição presidencial é um bom exemplo das falácias de palanque que se encaixam no primeiro grupo. Aliás, Bolsonaro jamais desceu do palanque; tudo que ele fez ou deixou de fazer desde a posse teve como objetivo tornar realidade o sonho da reeleição, a despeito de ter afirmado mais de uma vez que “não nasceu para ser presidente, nasceu para ser militar”.

Observação: Ao contrário do que muitos afirmam, Bolsonaro não foi expulso do Exército, embora tenha sido excluído dos quadros da Escola de Oficiais por indisciplina e insubordinação.  Segundo o coronel Carlos Alfredo Pellegrino, o hoje presidente tentava liderar oficiais subalternos, mas não conseguia pela “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”. No julgamento do STM, foi acusado de ter “grave desvio de personalidade”, mas a aversão dos fardados pela imprensa contribuiu de maneira decisiva para sua absolvição das acusações.  qualificado de “caso completamente fora do normal, inclusive mau militar” pelo general Ernesto Geisel (o penúltimo presidente-ditador dos 21 anos de ditadura militar).

Bolsonaro travestiu-se de defensor incondicional da Lava-Jato e escalou Sergio Moro para avalizar essa falácia. Só que ninguém sobrevive durante 28 anos no baixo clero da Câmara sem esconder sabe Deus quantos esqueletos no armário do gabinete parlamentar, e eguns mal despachados têm o mau hábito de voltar para assombrar... Enfim, bastou virem a lume os indícios de rachadinha no gabinete do filho Zero Um na Alerj e as movimentações financeiras suspeitas de seu ex-chefe de gabinete, Fabrício Queiroz. O mesmo Queiroz que era unha e carne com o ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega, suposto chefe do grupo de assassinos profissionais Escritório do Crime e de uma milícia no Rio, denunciado na Operação Intocáveis e fuzilado por policiais militares da Bahia em fevereiro do ano passado (maldade sua achar que foi queima de arquivo). O mesmo Queiroz que ficou desaparecido durante mais de um ano até ser preso num imóvel em Atibaia (o fato de se tratar do mesmo município onde fica o folclórico sítio de Lula é mera coincidência) pertencente a Frederick Wassef, dublê de mafioso de comédia e advogado de Zero Um no inquérito das rachadinhas. Fred se jactava de ser consultor jurídico da Famiglia Bolsonaro e de ser próximo do Presidente. Com a prisão de Queiroz, tornou-se suspeito de ser o “Anjo” que vinha protegendo tanto o ex-assessor quanto a esposa e outros familiares do dito-cujo, todos partícipes de um esquema cujas peças iam aos poucos se encaixando, mas aí a tropa de choque do Planalto entrou em cena e... Amanhã eu conto o resto — ou não sobra tempo nem espaço para tecer mais alguns comentários sobre o assunto do dia, da semana e, quiçá, do mês.

A folclórica, prosaica e quase inacreditável tropa de choque de JB (falo não do famoso scotch, mas sim do não menos famoso despresidente segundo o qual o Brasil “tem que deixar de ser um país de maricas e enfrentar o vírus de peito aberto”) ultrapassou todos os limites da desfaçatez ao argumentar que a CPI da Covid não pode funcionar senão depois que todos estiverem vacinados. Não é gozação, não. Essa torrente de cinismo brotou ao vivo e em cores da boca do líder de Bolsonaro no Congresso, no bojo de uma questão de ordem que esse senador apresentou durante a sessão virtual da última terça-feira. “Enquanto não tiver condição de funcionar com pessoas imunizadas, peço que a CPI não possa funcionar presencialmente”, declarou o obelisco da desfaçatez. O senador Randolfe Rodrigues, autor do pedido de CPI, devolveu de bate-pronto: “Na velocidade que a vacinação está hoje no Brasil, só teremos pessoas adultas imunizadas, em uma hipótese otimista, até dezembro ou janeiro do ano que vem.”

A esse ponto o governo chegou, pontua Josias de Souza com o humor ácido que se tornou sua marca registrada. Num instante em que o brasileiro morre nas filas de UTI, diz o jornalista, a escassez de vacinas, flagelo a ser investigado pela CPI, virou pretexto da tropa do capitão para matar o tempo. Em minoria na comissão, o governismo adere à política do isolamento social para tentar se reposicionar em cena.

Futuro integrante da CPI, o senador amazonense Omar Azis fez uma intervenção cirúrgica: “Os senadores que não querem que instale a CPI agora, querem aguardar o momento adequado. No momento adequado, teremos 500 mil mortes, 600 mil mortes no Brasil, porque o que estou vendo é que estão querendo protelar.”

Hoje, a pilha de cadáveres, monumento que o vírus ergueu para imortalizar a inépcia, a incompetência e a mais absoluta falta de absolutamente do desgoverno Bolsonaro, roça a marca de 360 mil. Se fosse um presidente lógico, sua alteza irreal chamaria sua tropa para repetir uma de suas célebres frases: “O vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque.”

Ou Bolsonaro reage, ou a estratégia do governo no Senado vai acabar transformando sua tragicômica gestão numa espécie de paródia de si mesma — uma pantomina estrelada pelos “maricas” da turma do 'fique em casa'.”