terça-feira, 2 de abril de 2024

60º ANIVERSÁRIO DO GOLPE DE `64

 

O golpe de Estado que prefaciou a ditadura militar — aquela que Bolsonaro sempre negou, mas tentou ressuscitar em 2022, e que seu vice classificou de "ditamole" — completou 60 anos no último domingo. O senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República em 1º de abril de 1964, mas episódio entrou para a História com data anterior para evitar associações jocosas com o "dia da mentira". 

Resumindo a ópera em poucas palavras, a renúncia de Jânio e a aversão dos militares a Jango pavimentaram o caminho do golpe, e os subsequentes 21 anos de ditadura deram azo ao surgimento do lulopetismo corrupto e do bolsonarismo boçal (mais detalhes na sequência O desempregado que deu certo). 

Para quem gazeteou as aulas de História, relembro que a Guerra Fria e a Revolução Cubana levaram o sistema político brasileiro do pluralismo moderado ao pluralismo extremamente polarizado, e a situação se agravou com a vitória chapa Jan-Jan (de Jânio e Jango) em 1960. Jânio se elegeu com a promessa de resolver miraculosamente todos os problemas ligados à corrupção e inflação no país, mas, alegando que "forças terríveis" se levantaram contra ele — e apostando que seria reconduzido ao cargo pelo "clamor popular" — despachou Jango para uma missão na China, apresentou sua carta-renúncia e voou para São Paulo levando a faixa presidencial.

Depois de esperar horas na base aérea de Cumbica pelas multidões não apareceram — talvez porque um arranjo urdido nos bastidores impediu que o povo soubesse onde ele estava, ou talvez porque o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista se seu líder tivesse permitido sua existência — o populista cachaceiro embarcou para Europa, e o Brasil mergulhou na crise provocada pelo veto à promoção do "vice comunista" a titular.

Na qualidade de presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli assumiu a chefia do Executivo, mas uma junta provisória formada pelos três ministros militares governou o país até 8 de setembro, quando foi implantado o sistema parlamentarista. Com os poderes limitados e tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, Jango foi autorizado a assumir a presidência como chefe de Estado. 

Curiosidades1) Dali a 24 anos, o primeiro-ministro de Jango se tornaria o primeiro presidente civil pós-ditadura militar. 2) Em 1962, Jânio concorreu ao governo de São Paulo, mas foi derrotado por seu velho desafeto Adhemar de Barros e só voltou a disputar um cargo público em 1985, quando derrotou o tucano Fernando Henrique e o petista Eduardo Suplicy e se elegeu prefeito da capital paulista.

Jango só assumiu o posto a que tinha direito desde a renúncia de Jânio depois que o referendo de 6 de janeiro de 1963 restabeleceu o presidencialismo, mas as tensões se intensificaram quando ele declarou que a reforma agrária era uma questão de honra em seu mandato. Embora não houvesse a menor possibilidade de uma vitória comunista — nem pela via reformista, nem pela luta armada —, parte da elite brasileira bateu às portas dos quartéis, e os militares atenderam prontamente (até porque a doutrina que aprendiam na caserna era a do Ocidente x Pacto de Varsóvia).

Quando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade escancarou o apoio civil ao golpe, o Congresso, ameaçado de fechamento, chancelou a derrubada de Jango e a "eleição" do então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas — o marechal Castello Branco —, que deixou o Planalto em 15 de março de 1967 e morreu quatro meses depois, vítima de um acidente de avião no Ceará. Outros quatro generais-ditadores — Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo , se revezaram no poder até 1985, num jogo um jogo de cartas marcadas em que o partido de oposição (MDB) era meramente figurativo. 

Observação: Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe achando que os militares voltariam para os quartéis em 1965, quando haveria novas eleições e Juscelino (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador liberal, democrata) disputariam a Presidência. Mas eles não demoram a perceber que os militares, picados pela mosca azul, tencionavam se perpetuar no poder. 
 
A dança das cadeiras dos fardados terminou com a eleição indireta de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, que reascendeu a chama da esperança no coração de 130 milhões de brasileiros. Mas a alegria durou pouco: por uma trapaça do destino, o presidente eleito baixou ao hospital horas antes da cerimônia de posse e bateu as botas 38 dias e 7 cirurgias depois, deixando de herança um neto que envergonhou o país e um vice que se tornou pai e avô do Centrão
O resto é história recente. 
 
Em 1989, já sob a égide da Constituição Cidadã, os brasileiros voltaram às urnas (depois de um jejum de 29 anos) para escolher seu presidente. Entre os 22 postulantes havia políticos do quilate de Ulysses Guimarães, Mario Covas, Leonel Brizola e Ciro Gomes e aberrações como Enéas Carneiro, Livia Maria Pio e Sílvio Santos, mas o eleitor tupiniquim, sempre pronto a fazer as piores escolhas, escalou Collor (com 30,5% dos votos) e Lula (com 17,2%) para disputar o segundo turno, quando então o pseudo caçador de marajás derrotou o desempregado que deu certo por 53% a 47%.
 
Durante a campanha, Collor prometeu alvejar o "tigre da inflação" com uma "bala de prata". Eleito, apertou o gatilho um dia antes da posse ao pedir a Sarney que decretasse feriado bancário para que o mercado se adequasse ao conjunto de medidas econômicas mais radical que o país já amargou. Além de congelar preços e salários — a exemplo dos planos Cruzado, Cruzado II e Verão, editados durante o governo Sarney—, o Plano Collor bloqueou todo o dinheiro depositado nos bancos e aplicado no mercado financeiro até o limite de Cr$ 50 mil. Como resultado, o PIB encolheu 4,5% e o número de falências, infartos e suicídios teve um aumento significativo.
 
Plano Collor II aumentou tarifas públicas, decretou o fim do overnight e criou a FAF (Fundo de Aplicações Financeiras) e a TR (Taxa de Referência de Juros), mas a inflação voltou a subir, o desemprego cresceu, estatais foram vendidas a preço de banana e houve um desmonte das ferrovias e cortes de investimentos federais em infraestrutura. Entre o fim do Plano Marcílio e o início do Plano Real a inflação baixou dos 2.000% a.a. para "apenas" 1119,91% a.a. — índice registrado no final de 1992, quando o
 Rei-Sol, autoritário como poucos e corrupto como muitos, foi chutado do Planalto pela porta dos fundos
 
Observação: Ciente de que sua deposição eram favas contadas, Collor renunciou às vésperas do julgamento de seu impeachment — que teve como estopim uma entrevista concedida por Pedro Collor à revista VEJA —, mas o Senado seguiu adiante e o condenou (por 76 votos a 3) à perda do cargo e suspendeu seus direitos políticos por 8 anos.   
 
Com a deposição do "Roxinho", o vice Itamar Franco passou a titular e nomeou Fernando Henrique ministro da Fazenda. Impulsionado pelo sucesso do Plano Real, o tucano se elegeu presidente em 1994, comprou a PEC da reeleição em 1997 e se reelegeu 1998. Como não lhe restavam novos coelhos para tirar da velha cartola, FHC não conseguiu eleger José Serra seu sucessor.A
 vitória de Lula em 2002 marcou o início à era lulopetista, que só foi interrompida em 2016, com o impeachment de Dilma

Com a deposição da gerentona de araque, seu vice foi promovido a titular e se mudou para a residência oficial da Presidência, mas voltou semanas depois para o Jaburu, porque, segundo ele, o Palácio da Alvorada é assombrado. Assim, Michel Temer se tornou o primeiro e único caso documentado de vampiro que tem medo de fantasma. 
 
A troca de comando foi como uma lufada de ar fresco numa catacumba: após 13 anos de garranchos verbais de um semianalfabeto e frases desconexas de uma anormal incapaz de juntar sujeito e predicado numa frase que fizesse sentido, um presidente que não só sabia falar como até usava mesóclises pareceu um refrigério. Demais disso, o vampiro do Jaburu
 conseguiu reduzir a inflação (que rodava pelos 10% quando ele assumiu), baixar a Selic e aprovar a PEC do Teto dos Gastos e a Reforma Trabalhista, mas o ministério de notáveis que prometeu se revelou uma notável agremiação de corruptos, e quando sua conversa de alcova com Joesley Batista veio a público, o sonho de entrar para a história como "o cara que recolocou o Brasil nos eixos" virou o pesadelo de vir a ser "o primeiro presidente no exercício do mandato denunciado por crime comum". 
 
Observação: A tropa de choque capitaneada por Carlos Marun contratou um coral de 251 marafonas para entoar a marcha fúnebre enquanto a segunda "flechada de Janot" era sepultada na Câmara, mas Temer terminou seu mandato-tampão como um "pato manco" — que é como os americanos se referem a políticos que chegam tão desgastados ao final do mandato que até os garçons lhes servem o café frio. 
 
Em 2018, uma extraordinária conjunção de fatores empurrou para o Planalto um combo de mau militar e parlamentar medíocre que atribuiu a vitória a uma "cagada do bem". Quatro anos depois, derrotado nas urnas, ele exortou seus paus-mandatos a "virar a mesa". Investigado em sete inquéritos, inelegível até 2030 e na bica de ver o sol nascer quadrado, esse dejeto da escória da raça humana aguarda a primeira condenação posando de perseguido. 
 
A retomada democrática instituída em 1985 com a eleição do presidente "Viúva Porcina" (que foi sem nunca ter sido) e sacramentada em 1988 pela promulgação da Constituição Cidadã não exorcizou os fantasmas da ditadura. No último dia 29, o STF começou a julgar em plenário virtual os limites da atuação das FFAA estabelecidos no Art. 142 da CF (o ministro Luiz Fux, relator da encrenca, já votou pelo sepultamento da tese de que os fardados são o "poder moderador" da República).

Para evitar atritos com as Forças Armadas, Lula vetou qualquer ação alusiva ao golpe de '64, mas sete dos 38 ministros foram às redes sociais prestar homenagens aos "desaparecidos" dos anos de chumbo
Lobotomizados pela polarização semeada pelo "nós contra eles" do xamã petista e estrumada pela extrema-direita radical que saiu do armário durante a campanha de 2018, os devotos do bolsonarismo, vítimas da pior espécie de cegueira, consideram seu "mito" um ex-presidente de mostruário perseguido injustamente por "Xandão", como deixou claro a manifestação de 25 de fevereiro passado.

Observação: Claro que muita gente reza (ou finge rezar) por essa cartilha devido a interesses escusos, da mesma forma e pelos mesmos motivos que muita gente finge acreditar que Lula é a alma viva mais honesta do Universo e que sua prisão "foi uma armação, um dos maiores erros judiciários da história do país". Mas isso é outra conversa. 
 
Em face de todo o exposto, não há o que celebrar em 31 de março (nem em 1 de abril, a não ser o "dia da mentira"). Comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é permitir que ódios do passado envenenem (ainda mais) o presente e destruam o futuro.