Se as regras do jogo não mudarem — como aconteceu em 2015, quando a PEC da Bengala aumentou de 70 para 75 anos a idade com que os ministros dos tribunais são aposentados compulsoriamente —, o ministro Marco Aurélio Mello deixará o STF em julho de 2021. Na reta final de sua, digamos, bem sucedida mas pouco expressiva carreira, sua excelência parece disposto a queimar os últimos cartuchos buscando alguma notoriedade, algo que vá além dos votos sonolentos, nas sessões plenárias da Corte, que ele tartamudeia com voz de animador de velório.
Em 19 de dezembro passado, por exemplo, Mello esperou os primeiros minutos do recesso de final de ano para publicar
uma estapafúrdia liminar que só não
libertou Lula e outros 170 mil
condenados em segunda instância que aguardam presos o julgamento de seus
recursos às instâncias superiores porque foi prontamente cassada pelo presidente
da Corte (reedição revista, atualizada e abrilhantada com requintes de suprema-toga
do igualmente lamentável “caso Favreto”). Dias atrás, o
ministro supremo criticou Toffoli por
estreitar relações com os presidentes da República, da Câmara e do Senado e
participar de um “pacto institucional” sem o aval do STF, e acusou Sérgio Moro — indicado “antecipadamente”
para assumir a vaga do decano Celso de
Mello, que se aposenta no ano que vem — de ter virado as costas para a carreira
de juiz ao assumir a pasta da Justiça e Segurança Pública, demonstrando não ter
vocação para a Magistratura.
Toffoli merece
críticas por participar do tal “pacto institucional” sem o aval dos demais
ministros supremos, até porque a negociata envolve temas que podem ser
futuramente julgados como controversos pelo colegiado do tribunal. E mais ainda
por sua nomeação se ter sido mais uma demonstração cabal de falta de noção de Lula sobre a dimensão do
cargo de ministro do STF. A propósito,
nunca é demais lembrar que, além da reprovação em dois concursos para juiz de primeira instância, o brilhante currículo do indicado contava apenas com serviços
prestados ao PT nas campanhas
de Lula em 1998, 2002 e 2006, depois
como subchefe para assuntos jurídicos na Casa Civil da Presidência (sob o
comando de José Dirceu) e
advogado-geral da União, cargo que exerceu até 2009, quando vestiu a toga
suprema por cima da farda de militante petista (clique aqui e aqui para mais detalhes).
É possível que o ciúme e o despeito tenham levado Marco Aurélio a destilar seu veneno, já
que jamais conseguiu, em quase 30 anos no STF, uma fração do protagonismo e aprovação
popular que Moro granjeou à frente da
13ª Vara Federal do Paraná. Demais disso,
todos têm direito a suas opiniões, mas fala-se muita bobagem hoje em dia. Prova disso é a sugestão estapafúrdia de Bolsonaro em sua recente viagem à Argentina, de que as duas maiores economias da América do Sul possam ter uma moeda única, semelhante ao euro (de tão estapafúrdia, a ideia pode até dar certo, mas eu ainda acho que isso é o tipo de notícia que causa um tremendo alvoroço num dia e é esquecido no dia seguinte). E também se critica demais — sobretudo nos tribunais virtuais das redes sociais —, mas não raro a contundência
da crítica se dilui diante da postura e da vida pregressa do crítico.
Talvez Marco Aurélio tenha razão em reprovar o aumento da interferência política na definição da pauta de julgamentos do STF. É fato que nas últimas semanas, depois de se reunir com Bolsonaro, Maia, Alcolumbre e parlamentares da bancada evangélica, Toffoli tirou da pauta temas delicados, como a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio e legalização do aborto em casos da infecção da gestante pelo vírus da zika. Mas isso é conversa para outra hora. Vamos ao que interessa, lembrando inicialmente uma velha modinha popular que encerra um mundo de sabedoria:
Talvez Marco Aurélio tenha razão em reprovar o aumento da interferência política na definição da pauta de julgamentos do STF. É fato que nas últimas semanas, depois de se reunir com Bolsonaro, Maia, Alcolumbre e parlamentares da bancada evangélica, Toffoli tirou da pauta temas delicados, como a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio e legalização do aborto em casos da infecção da gestante pelo vírus da zika. Mas isso é conversa para outra hora. Vamos ao que interessa, lembrando inicialmente uma velha modinha popular que encerra um mundo de sabedoria:
A trajetória de Marco
Aurélio é um exemplo lapidar de como o patrimonialismo não só atravessou
incólume todas as tentativas de superá-lo, mas acentuou suas imperfeições e
demoliu a reputação de seus agentes. Depois de se formar em Direito pela UFRJ, em
1973, o dito-cujo ingressou na vida pública, em 1981, como procurador
na Justiça do Trabalho — excrescência gestada e parida por Getúlio Vargas, nos anos 1930, para funcionar como elo no aparelho
de poder do “trabalhismo”. O cargo foi obtido não por concurso, mas por
nomeação patrocinada pelo pai, Plínio
Affonso de Farias Mello, que até hoje é reverenciado no ambiente do
sindicalismo patronal como uma espécie de benemérito — seu prestígio era tal
que o general João Baptista de Oliveira
Figueiredo, último presidente do regime militar, manteve aberta uma vaga no
TRT-RJ para que Marco Aurélio a assumisse tão logo completasse 35 anos. Foi
também o prestígio paterno que guindou o pimpolho de Plínio ao TST, em
Brasília, onde, anos mais tarde, o primo Fernando
Affonso Collor de Mello o encontraria e cobriria com uma
toga suprema.
Observação: Entrelaçam-se nesse caso parentela,
compadrio e interesses corporativos, e o ex-presidente Collor merece citação especial. Seu avô materno, Lindolfo Collor, revolucionário de
1930, foi ministro do Trabalho; seu pai, Arnon,
irmão de Plínio e tio de Marco Aurélio, atirou em Silvestre Péricles de Góes Monteiro,
seu desafeto no plenário do Senado, e matou com um tiro no peito o acreano José Kairala, que entrou na tragédia
como J. Pinto Fernandes, citado no
último verso do poema Quadrilha, de Carlos
Drummond de Andrade: “que não tinha entrado na história”. Uma tragédia, mas
também um caso comum na era dos “pistolões” e pistoleiros.
Marco Aurélio, na
brilhante definição do jornalista, poeta e escritor José Nêumanne Pinto, é um misto de Hidra de Lerna — com corpo
de dragão, hálito venenoso e nove cabeças de serpente capazes de se regenerar —
com o deus romano Jano — retratado
com duas faces, uma olhando para a frente e a outra, para trás. No mítico Raso da Catarina do sertão de místicos
e cangaceiros, Marco Aurélio surge
como um misto do beato Antônio
Conselheiro e do cabra Corisco,
com o cajado da Constituição numa das mãos e o martelo de juiz outra, e se alia a Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Celso e Mello — e Toffoli, antes de este assumir a presidência do Tribunal — na soltura de presidiários de colarinho-branco. Mais do que contrariar a jurisprudência que autoriza a prisão de condenados
em segunda instância, o escrete togado sobrepõe, com sua arrogância, às decisões
majoritárias do tribunal as próprias convicções ou seus interesses pessoais,
sejam eles quais forem, corroborando, em última análise, o veredicto pouco
lisonjeiro (sobre a mais alta instância judiciária) do especialista Joaquim Falcão, da FGV, de que não há um STF
uno, mas um conjunto desarmonioso de 11 cabeças — daí a conjunção da Hidra de Lerna com o deus romano Jano.
“Processo, para mim,
não tem capa. Processo, para mim, tem unicamente conteúdo. Eu não concebo,
tendo em conta minha formação jurídica, tendo em conta a minha experiência
judicante, eu não concebo essa espécie de execução”, afirma o supremo togado,
referindo-se ao início do cumprimento da pena após a condenação em segunda
instância. Sua frase dá eco ao discurso dos arautos do profeta da Vila Euclides, segundo os quais Lula e outros presos sem que a condenação
tenha transitado em julgado (coisa que no Brasil, onde há quatro instâncias e espaço
para uma miríade de apelos, recursos, embargos e chicanas de todo tipo, só
acontece no dia de São Nunca), são vítimas de uma perseguição contumaz de
elites exploradoras que controlam a polícia, o Ministério Público e o próprio
Poder Judiciário.
Se ainda lhe sobrar tempo — e você tiver estômago forte —,
leia a
entrevista que o nobre ministro concedeu dias atrás a BBC NEWS BRASIL.