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quarta-feira, 12 de maio de 2021

SÓ O GADO MAIS TONTO VOTA NO PRÓPRIO AÇOUGUEIRO

 



Em depoimento  à CPI da Covid nesta terça-feira, o diretor-presidente da Anvisa disse que tanto a sua posição quanto a da Agencia são contrárias às do presidente Bolsonaro em relação ao “tratamento precoce”, políticas de vacinação e uso da cloroquina. Disse também divergir sobre “termo de responsabilidade” e o folclórico “se você virar um jacaré, é problema seu” — , e que não acha razoável negar a importância da vacinação. Barra Torres confirmou o depoimento de Mandetta sobre reunião no Palácio do Planalto da qual participaram o ministro Braga Netto e a médica Nise Yamaguchi, e que foi a médica quem defendeu a (descabida) mudança na bula da cloroquina para incluir no texto sua eficiência no tratamento da Covid (para mais detalhes, clique aqui).

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Segundo reportagem publicada no jornal O Estado de S.Paulo, o governo federal montou, no final do ano passado, um esquema para ampliar sua base de apoio político no Congresso através de um “orçamento paralelo” — uma anomalia dentro do Orçamento da União que distribuiu secretamente pelo menos R$ 3 bilhões em verbas públicas para 37 parlamentares governistas.

Nada a ver com as tradicionais emendas orçamentárias que deputados e senadores têm o direito de pendurar no Orçamento para enviar verbas aos seus redutos eleitorais. Trata-se de dinheiro extra, liberado no escurinho, longe dos olhares dos órgãos de controle. Uma parcela substancial desse recurso foi destinada à compra de tratores e equipamentos agrícolas por preços superfaturados em até 259% (com base nos valores de referência estabelecidos pelo próprio governo).

Em três meses, 101 ofícios foram enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e a órgãos vinculados com o objetivo de indicar à pasta como os parlamentares desejavam utilizar o dinheiro. Uma vez que os acordos para montar esse orçamento paralelo não são regidos por uma legislação específica, não há qualquer obrigação de dividir o bolo de forma igualitária e, consequentemente, acabam beneficiando “os amigos do rei”.

Ironicamente, Bolsonaro vetou a tentativa do Congresso de impor os recursos de emendas RP9 por considerar que isso “contraria o interesse público” e estimula o “personalismo”, mas ele próprio passou a ignorar o veto quando se amancebou com o Centrão e moveu mundo e fundos (principalmente fundos) para entregar a presidência da Câmara a Arthur Lira e a do Senado a Rodrigo Pacheco

Quando o STF negou a Alcolumbre a possibilidade de se reeleger presidente do Senado, o parlamentar — um dos principais aliados de Bolsonaro no Congresso —  buscou o apoio do PT para eleger Pacheco. Segundo a reportagem, seriam necessários 34 anos para o senador demista manejar os R$ 277 milhões do Ministério do Desenvolvimento Regional por meio das emendas parlamentares individuais que garantem a cada congressista R$ 8 milhões ao ano.  

A reportagem traz ofícios dos parlamentares para o MDR indicando a destinação da verba. Neles, os parlamentares tratam a verba pública como se fosse dinheiro grátis. É a “minha cota”, anotou um dos beneficiários. “Eu fui contemplado”, escreveu outro felizardo. Esses são “recursos a mim destinados”, lê-se em outro documento. Foi dessa última forma que a deputada Flávia Arruda, atual ministra da Secretaria de Governo, dirigiu-se à a Codevasf para definir o destino de R$ 5 milhões. “Não me lembro. Codevasf?”, perguntou a parlamentar ao Estadão. Ao ler o documento, Flávia desconversou: “É tanta coisa que a gente faz que não sei exatamente do que se trata”. Nem tudo, porém, é registrado. O senador Rodrigo Cunha admitiu que “ditou” para o ministro Marinho onde R$ 7 milhões deveriam ser aplicados.

O ex-presidente do Senado informou por meio de sua assessoria que não existe nenhum documento oficial tratando de recursos ou emendas em nome de qualquer parlamentar, e que não vai comentar sobre planilhas não oficiais. De todos os parlamentares listados em documento do governo obtido pelo EstadãoAlcolumbre foi o único a negar a indicação. O deputado Lúcio Mosquini disse que apenas garantiu a verba e que, “daí em diante, é com a prefeitura e o governo”.  Por meio da Lei de Acesso à Informação, o Ministério do Desenvolvimento Regional reconheceu que os parlamentares definiram como e onde aplicar R$ 3 bilhões de verbas próprias da pasta: “Os recursos oriundos de emenda do relator-geral foram executados conforme definição do Congresso Nacional”.

O caso pede investigação, diz Josias de Souza, pois lembra episódios antigos, como o escândalo dos anões do Orçamento e a Máfia dos sanguessugas, que superfaturava a compra de ambulâncias destinadas a prefeituras. O brasileiro que sonha com uma transformação dos costumes políticos fica com a impressão de que está novamente diante de uma velha praga nacional: a Síndrome do Quase. A higienização da política quase foi alcançada quando as ruas forçaram o Congresso a escorraçar Collor do poder. A assepsia quase foi obtida quando foram cassados os mandatos de meia dúzia de anões do Orçamento. A purificação quase chegou quando o STF mandou para a cadeia a cúpula do PT e os empresários enrolados no mensalão. A nova investida contra o Orçamento indica que o impeachment de Dilma e as prisões da Lava-Jato, agora em fase de relaxamento, não eliminaram a maldição do quase. Infelizmente, a democracia brasileira não consegue se livrar do código de barras.

Criada à época da ditadura com vistas à transposição do Velho Chico, a Codevasf se tornou a preferida de deputados e senadores, principalmente do Centrão, pela capacidade de executar obras e entregar máquinas aos municípios e Estados mais rapidamente do que o governo — sendo uma estatal, a entidade tem regras de contratação mais flexíveis do que um ministério; neste ano, conseguiu um orçamento recorde de R$ 2,73 bi, composto principalmente por emendas. Na prática, o governo transformou a “estatal do Centrão” num duto de recursos para atender interesses eleitorais.

Como mostrou o Estadão, boa parte dos recursos do orçamento secreto é destinada à compra de tratores e equipamentos agrícolas com valor acima da tabela de referência. Documentos obtidos pelo jornal revelam que um grupo de aliados do governo determinou o que comprar, por quanto e indicou a Codevasf como o órgão que deveria fazer a operação, o que contraria leis orçamentárias. A agilidade na “entrega” é essencial para o prestígio eleitoral dos parlamentares em suas bases. Mas, se a transposição das águas do São Francisco ainda é um sonho para moradores da bacia hidrográfica do rio, a distribuição dos recursos da Codevasf já está sendo ampliada. 

Na sua criação, em 1974, a empresa atendia 504 municípios, o que representava 7,4% do território brasileiro. Sua área original incluía apenas Alagoas, Bahia, um pedaço de Goiás e de Minas, Pernambuco e Sergipe — por onde correm o rio, seus afluentes e subafluentes —, além de Brasília, sede da companhia. Por decisão de Bolsonaro, ela se estende agora ao Amapá, reduto do senador Davi Alcolumbre, ao Rio Grande do Norte, base do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e à Paraíba, do deputado Wellington Roberto, líder do PL na Câmara.

Desde que o capitão assumiu a Presidência, a área de atuação da Codevasf cresceu de 27,05% para 36,59% do território nacional. Chegou ao Sul da Bahia, passou a cobrir quase todo o Ceará, o litoral de Pernambuco, o Sul de Goiás e grandes trechos do Pará e de Minas, atingindo a divisa de São Paulo. A empresa atende hoje 2.675 municípios em 15 Estados, além do Distrito Federal. A ampliação não tem freio. O Senado já aprovou proposta para a estatal atuar no Amazonas, em Roraima e no Sul de Minas. A companhia também passou a operar no clima equatorial úmido da floresta do Amapá.

A sede da Codevasf em Macapá foi inaugurada no dia 16 de abril, com a presença de Alcolumbre. Em uma empresa que não gera receitas próprias, o ex-presidente do Senado foi responsável por determinar o capital inicial de R$ 81 milhões para projetos no Amapá, com aval do Palácio do Planalto. Enquanto isso, a diretoria executiva da estatal, composta por quatro indicados do Centrão, aprovava a criação de mais quatro Superintendências Regionais, além das oito já existentes. As novas SRs ficarão em Macapá, Goiânia, Palmas e Natal — as duas últimas, aliás, são as bases do líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes, e do ministro Rogério Marinho, que estuda concorrer ao governo do Rio Grande do Norte.

O diretor-presidente da Codevasf é o engenheiro baiano Marcelo Moreira, ex-funcionário da Odebrecht, indicado em 2019 pelo deputado Elmar Nascimento com respaldo do então ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, hoje chefe da Casa Civil. À época, Ramos disse ao Estadão que Elmar fez a indicação porque era líder do DEM, partido que votava “com o governo”.

O Progressistas, por sua vez, tem dois nomes na diretoria executiva da Codevasf. O primeiro é Luís Napoleão Casado Arnaud Neto, homem da confiança de Arthur Lira e diretor da Área de Gestão dos Empreendimentos de Irrigação. Já o diretor da Área de Revitalização de Bacias Hidrográficas é Davidson Tolentino de Almeida, ligado ao presidente do partido, senador Ciro Nogueira. O diretor de Desenvolvimento Integrado e Infraestrutura da CodevasfAntônio Rosendo Neto Júnior, também tem um padrinho, o senador governista Roberto Rocha

ObservaçãoProcurada, a Codevasf disse que as “nomeações atendem as disposições legais e os normativos internos”. O Palácio do Planalto não se manifestou. 

Na prática, a origem do novo esquema está no discurso de Bolsonaro de não distribuir cargos, sob o argumento de não lotear o primeiro escalão do governo. De um jeito ou de outro, a moeda de troca se deu por meio da transferência do controle de bilhões de reais do orçamento ao Congresso. Tudo a portas fechadas, longe do olhar dos eleitores. 

Em atenção aos que têm memória curta (ou seletiva), relembro que o então candidato Jair Bolsonaro fez elogios rasgados à Lava-Jato e chamou Sergio Moro para comandar seu ministério da Justiça e Segurança Pública (edulcorando o convite com a promessa de indicar o então juiz federal para a vaga que se abriria no STF com a aposentadoria do decano Celso de Mello). Cansado de engolir sapos e beber a água da lagoa, Moro desembarcou do governo e afirmou que a gota d’água que o fez regurgitar foi a insistência do presidente em interferir politicamente na Polícia Federal.

inquérito aberto no STF para apurar as declarações de ambos avançou rapidamente, mas perdeu o ímpeto em outubro do ano passado, depois que Celso de Mello se aposentou e a relatoria passou para Alexandre de Moraes. A última informação que se tem a respeito é a de que o togado prorrogou o prazo da investigação por mais 90 dias, visto que ainda haverá o que apurar após a oitiva de Bolsonaro, mas ainda não se decidiu sequer se o chefe do Executivo deverá depor presencialmente ou poderá fazê-lo por escrito.

Passados cinco meses da demissão de Moro, o presidente afirmou candidamente que acabou com a operação Lava-Jato porque não havia mais corrupção no governo. “Eu desconheço um lobby para criar dificuldade para vender facilidade. Não existe. É um orgulho, é uma satisfação que eu tenho, dizer a essa imprensa maravilhosa que eu não quero acabar com a Lava-Jato. Eu acabei com a Lava-Jato porque não tem mais corrupção no governo. Eu sei que isso não é virtude, é obrigaçãoNós fazemos um governo de peito aberto. Quando eu indico qualquer pessoa pra qualquer local, eu sei que é uma boa pessoa, tendo em vista a quantidade de críticas que ela recebe em grande parte da mídia”, disse o “mito”. 

Sobre essa fala do presidente, mas sem citá-la expressamente, Moro tuitou que as tentativas de acabar com a Lava-Jato representam a volta da corrupção, o triunfo da velha política e dos esquemas que destroem o Brasil e fragilizam a economia e a democracia. “Valerá a pena se transformar em uma criatura do pântano pelo poder?”, escreveu o ex-ministro.

Diante do exposto, encerro relembrando a frase que usei como título da postagem publicada em 30 de outubro de 2019: NÃO HÁ ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL; O BRASIL É UMA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA!

segunda-feira, 25 de abril de 2022

A VIDA É FEITA DE ESCOLHAS... (PARTE 3)

Ainda sobre a tensão entre o chefe do Executivo e a cúpula do Judiciário, o "mito" dos apatetados havia dito que não "assistiria calado” à condenação de seu apaniguado, daí o perdão ter sido um ato premeditado de provocação. Questionamentos jurídicos estão em andamento, mas o efeito político da afronta que ultrapassou o STF e atingiu o instituto sagrado da independência e do equilíbrio entre os Poderes.


Há quem veja no gesto de Bolsonaro uma vitória política qualquer que seja o desfecho jurídico da questão, mas nada garante que a maioria da sociedade vá apoiar uma atitude com a qual o presidente se associou ao cometimento de crimes claramente apontados pela Corte SupremaPara além disso, o intrujão deu um recado inequívoco sobre suas pretensões ditatoriais — que não se coadunam com as demandas de um Brasil perfeitamente adaptado ao regime de liberdades e garantias chamado democracia. 


A pergunta que se impõe é: o que os demais poderes estão esperando para tomar uma atitude mais assertiva? Cachorro louco não se prende na coleira — sacrifica-se. Pelo andar da carruagem, ou não teremos eleições, ou ao eleito não lhe será permitido presidir. Triste Brasil.


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Como juiz, Sergio Moro enquadrou poderosos; no governo, foi traído por Bolsonaro; na política, filiou-se ao Podemos de Renata Abreu, migrou para o União Brasil de Luciano Bivar, foi sabotado pelo neto de Toninho Malvadeza e teve a pré-candidatura à Presidência sepultada quando o UB decidiu lançar Bivar como representante da sigla na disputa presidencial. Rebaixado por seu novo partido, o ex-juiz declarou que não quer ser deputado, contrariando mais uma vez seus “correligionários” a participação das legendas nos fundos partidário e eleitoral é diretamente proporcional ao tamanho de suas bancadas, e o sistema proporcional transformaria Moro em puxador de votos.

Ao ser boicotado pelo Podemos e enredado no União Brasil, o quase candidato perdeu a chance de participar dos debates e emparedar Lula com todas as provas que foram anuladas pelo STF e, por tabela, desconstruir a narrativa de que não existe corrupção no governo Bolsonaro (vale lembrar que o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira e o PL de Valdemar Costa Neto, que ora apoiam a reeleição do capitão, foram aliados do PT no escândalo do Mensalão).

Nada é mais perigoso em Brasília do que assumir um “superministério”. Dos dois superministros que havia em 2019, um, carbonizado, deixou a pasta da Justiça pela saída de incêndio; do outro, que atendia por “Posto Ipiranga”, sobrou apenas uma lojinha de conveniências eleitorais que desvirtuam as prioridades econômicas. Depois que Bolsonaro escolheu entregar o governo e a chave do cofre ao Centrão, passou a haver dois tipos de ministro: Ciro Nogueira e os demais. O cacique do PP ainda não desembarcou do governo, mas a maldição do superministério desembarcou na Casa Civil.

Segundo relatório enviado pela PF ao STF no último dia 8, Nogueira, que despacha a um lanço de escadas do gabinete presidencial, teria embolsado R$ 5 milhões do grupo J&S em troca de apoio à reeleição de Dilma e outros R$ 8 milhões para adiar uma reunião do PP que decidiria se o partido continuaria ou não a apoiar o governo da petista. Mesmo com Augusto Aras na PGR e o aparelhamento de parte da PF, a notícia causou constrangimento no Planalto. E o mal-estar aumentou com o depoimento de Marcelo Ponte, que admitiu ter ouvido insinuações desabonadoras de Arilton Moura, um dos pastores acusados de cobrar propina de prefeitos para apressar a liberação de verbas de um cofre de R$ 55 bi situado no organograma do Ministério da Educação. 

A proliferação de denúncias expondo a digital do chefe da Casa Civil não só transformou o FNDE no epicentro do incêndio que arde no MEC como atrai as chamas para o gabinete presidencial. Ciro deixou de lado a aparente fidalguia com que costumava desfilar nos salões palacianos e já se comporta como a bola da vez. Nas redes sociais, tem postado fotos ao lado de Bolsonaro.

Nada mais flagrantemente explícito do que um político que se sente na corda bamba do que ter de mostrar que tem o presidente como seu fiel aliado. Vale lembrar que Abraham Weintraub, de tanto defender a ala ultraconservadora da gestão Bolsonaro, acabou expelido porque o figurino que exibia não servia mais à conjuntura do governo que se amancebou com o Centrão.

O superministro da vez vem adotando a postura de um “Cirinho do estilingue”. Ao mirar em Lula, ele joga pedra no inimigo que já foi seu próprio aliado — uma heresia nas hostes do Centrão, que um dia pode ser petista de coração e, no outro, bolsonarista desde criancinha. Ao dizer que a corrupção no governo é virtual, tentar sufocar a instalação da CPI do MEC e mandar apagar fotos de uma reunião com o pastor Arilton Moura ocorrida em setembro do ano passado, o bambambã do Centrão atrai as chamas para o gabinete presidencial.

Para quem foi nomeado ministro-chefe da Casa Civil com o propósito de funcionar como um “amortecedor de crises”, Ciro Nogueira tem causado muita trepidação.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

O FEMEAPÁ E O PRÊMIO PINÓQUIO DE OURO


Na terça, o ministro da boiada foi elogiado pelo chefe; na quarta, foi exonerado (e já se vai tarde). Mas vale lembrar que Salles era apenas o executor da política do presidente para o meio ambiente. E que de nada adianta trocar a roda da carroça quando o verdadeiro problema é o burro.

Dado não comparecimento de Francisco Maximiano — sócio da empresa Precisa Medicamentos, que intermediou a negociação bilionária do Ministério da Saúde para a compra da vacina indiana Covaxin — e sem tempo hábil para agendar um novo depoimento, a CPI da Pandemia dedicou a sessão desta quarta-feira à análise de 58 requerimentos (entre pedidos de informação, quebras de sigilo, convites e convocações). Dito isso, passemos ao post do dia.

Sérgio Marcus Rangel Porto
, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, concebeu uma enciclopédia das estultices que pinçou do cotidiano tupiniquim durante a ditadura militar e batizou-a (a enciclopédia, não a ditadura) de FEBEAPÁ. Se ainda caminhasse entre os vivos, o festejado cronista, escritor, radialista, comentarista, teatrólogo, jornalista, humorista, ex-funcionário do Banco do Brasil e compositor carioca certamente nos brindaria com uma edição revista e atualizada de seu Festival de Besteiras que Assola o País, e muito provavelmente dedicaria um volume exclusivo ao FEMEAPÁ — falo do festival de mentiras que assola o país em tempos de CPI do Genocídio.

Seria difícil escolher entre tantos desempenhos magistrais o ator a ser laureado com a estatueta do Pinóquio de Ouro. Eu apostaria minhas fichas no general pesadelo, mas a performance do médico e deputado gaúcho que supostamente comandava o suposto gabinete paralelo que supostamente balizava as supostas ações do suposto presidente desta republiqueta de bananas me fez pensar duas vezes.

Sem sequer a decência de corar, Osmar Terra informou à CPI que não existe trabalho científico demonstrando a eficácia da quarentena. Se o isolamento social funcionasse, afirmou o deponente não-ajuramentado, não teríamos a maior parte da mortalidade de 2020 dentro de asilos. E disse ainda que “todas as pandemias tiveram um curso com medidas não farmacêuticas que não foram a de trancar as pessoas dentro de casa; nunca houve isso na história”.

O nobre deputado parece ter esquecido — mui convenientemente — que o fato de os velhinhos não saírem dos asilos não significa que não tenham contato indireto com o “mundo exterior” (através dos médicos, enfermeiros e outros funcionários das instituições). Quando ao trabalho científico, um artigo publicado no próprio site da Biblioteca Nacional (do governo federal) aponta o isolamento social como uma das medidas utilizadas diversas vezes, ao longo da história, para controlar a disseminação de doenças infectocontagiosas (para saber o que é fato ou fake nas declarações do esculápio, siga este link).

Cheio de rompantes quando fala da suspeição alheia, Bolsonaro é condescendente com as suspeitas que explodem debaixo de seu nariz. A procuradora Luciana Loureiro farejou indícios de crimes e risco temerário no contrato de compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin pelo ministério da Saúde, sob o comando do general Pesadelo. O imunizante foi o mais caro entre todos os que o Brasil comprou e o processo de aquisição, o mais célere, a despeito dos alertas sobre “dúvidas” em relação à eficácia, à segurança e ao preço, conforme mostrou O GLOBO.

O total gasto na compra da vacina indiana foi de R$ 1,6 bilhão, e até agora o Brasil não recebeu uma única dose. O silêncio do presidente diante dessa transação enferruja um pouco mais sua retórica — já bem oxidada — e torna sem sentido seu discurso teatral de que “acabou com a Lava-Jato porque não tem mais corrupção no governo e que governo sem corrupção não é uma virtude, mas uma obrigação”.

Em janeiro último, enquanto manauaras morriam asfixiados, o luminar da logística que comandava a pasta da Saúde negou que o governo financiasse, divulgasse ou orientasse o uso de cloroquina e afins no tratamento da Covid. Mas num documento do Exército obtido via Lei de Acesso à Informação consta o seguinte despacho: “Em 17 de junho de 2020 foram expedidas novas Orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19, a respeito da prescrição de medicamentos, incluindo novamente a Cloroquina, em pacientes adultos, que apresentem sintomas leves, moderados ou graves da doença.” Ou seja, os militares apenas cumpriram a decisão do ministério da Saúde (no sentido de fabricar e distribuir a cloroquina), ao contrário do que afirmou o ex-ministro-interventor.

Não se trata apenas do obscurantismo anticientífico. Empresários apoiadores do governo faturaram alto com o medicamento que tem Bolsonaro como garoto-propaganda. No ano passado, o comércio do “kit Covid” cresceu surpreendentes 550% e movimentou mais de 500 milhões de reais. Até novembro, o governo federal havia distribuído 5,8 milhões de comprimidos produzidos no laboratório do Exército. A EMS informou à CPI que deve faturar R$ 31 milhões com a venda de hidroxicloroquina em 2021, ou seja, cerca de R$ 10 milhões a mais do que no ano anterior.

Uma denúncia feita pelo PDT aponta que ao menos cinco ministérios, mais o Exército, foram mobilizados para a tarefa de produzir e distribuir o “kit Covid”. “Estamos pedindo a responsabilização criminal, pois essa política agravou os efeitos da pandemia. Enquanto o mundo inteiro compra vacina e dissemina o uso de máscara, aqui Bolsonaro elege a cloroquina como solução”, afirmou Carlos Lupi, presidente nacional do partido e um dos autores da petição que resultou na notícia-crime enviada pela ministra Rosa Weber, do STF, à PGR.

Voltando à Covaxin, a procuradora que investiga a transação salienta a intermediação da Precisa Medicamentos, que tem um longo histórico de irregularidades. A empresa é associada da Global Saúde, que vendeu medicamentos ao ministério da Saúde há três anos e jamais entregou (mais R$ 20 milhões de dinheiro público que desceram pelo ralo da corrupção). Aliás, foi exatamente essa transação que rendeu ao deputado Ricardo Barros — líder do autodeclarado presidente em cujo governo não existe corrupção — um processo por improbidade.

Observação: Descobriu-se que o parlamentar escamoteou em uma medida provisória do governo federal a emenda que azeitou a entrada da Covaxin no mercado brasileiro ao autorizar a “importação e distribuição de quaisquer vacinas” sem registro na Anvisa, desde que aprovadas pela autoridade sanitária em outros países. Nessa jaboti, Barros incluiu a agência sanitária da Índia no rol das entidades cujos selos de qualidade seriam levados em conta no Brasil. Os técnicos da Anvisa torceram o nariz, mas o líder de Bolsonaro ameaçou “enquadrar” a agência.

No documento entregue à CPI, a procuradora anotou que “a omissão de atitudes corretivas da execução do contrato, somada ao histórico de irregularidades que pesa sobre os sócios da empresa Precisa e ao preço elevado pago pelas doses contratadas, em comparação com as demais, torna a situação carecedora de apuração aprofundada, sob duplo aspecto cível e criminal uma vez que, a princípio, não se justifica a temeridade do risco assumido pelo Ministério da Saúde com essa contratação, a não ser para atender a interesses divorciados do interesse público”.

Sete dias antes de assinar o contrato para o fornecimento da Covaxin, a Precisa, que também representa a companhia Cupid Limited em um contrato para a aquisição de preservativos femininos, acrescentou aditivo contratual neste processo que dobrou o valor da licitação junto ao Ministério da Saúde. A CNN analisou dados do Portal da Transparência e constatou que a empresa assinou o contrato para fornecimento de cinco milhões de preservativos femininos no dia 13 de novembro. O valor inicial era de R$ 15,7 milhões e passou para R$ 31,5 milhões no dia 18 de fevereiro. A justificativa foi uma correção na cotação do dólar.

Depois que o deputado federal Luis Miranda revelou ter levado pessoalmente ao presidente Jair Bolsonaro “provas contundentes” de irregularidades nas negociações para a compra da vacina Covaxin, o senador Alessandro Vieira afirmou que há “indícios gravíssimos” do cometimento de crime no âmbito do Ministério da Saúde. Embora o parlamentar entenda prematuro afirmar que Bolsonaro cometeu crime, ficou evidente que o chefe do Executivo teve acesso às informações citadas pelo deputado Miranda e não determinou a adoção das medidas cabíveis. 

Ainda segundo o senador, o caso é “gravíssimo” e a CPI já o vinha monitorando a partir do depoimento de Luis Ricardo Fernandes Miranda, chefe de importação do Departamento de Logística do Ministério da Saúde — e irmão do deputado Luiz Miranda —, que sofreu pressões dos superiores para aprovação do contrato de compra da Covaxin através da Precisa Medicamentos. Nesse contexto, a reconvocação de Pazuello — que já foi aprovada — se tornou indispensável, afirmou Vieira em entrevista à CNN Brasil. “A gente está falando de contratos que são milionários, e não se tem notícia de nenhuma solicitação de providência junto á Polícia Federal e ao Ministério Público Federal”.

O divórcio entre a compra da Covaxin e o interesse público transforma a honestidade do governo Bolsonaro um atributo sem comprovação científica.

terça-feira, 22 de junho de 2021

ACREDITE... SE PUDER


De acordo com o Estadão, a TV Brasil — a “emissora traço” que Bolsonaro prometeu extinguir durante a campanha — planeja incluir na sua grade de programação um telejornal que irá exibir apenas “boas notícias. O Antagonista atribuiu a paternidade dessa ideia extraordinária ao “ministro da Propaganda” Fábio Faria, que negou ter participado da reunião e acusou o Estadão de propagar fake news (de fake news os bolsonaristas entendem).

Na última terça-feira, em cerimônia no Palácio do Planalto, Fábio Faria defendeu o uso da TV pública para combater “narrativas erradas”. “Que a verdade possa chegar onde o povo quer ouvir. A gente, infelizmente, muitas vezes, é obrigado a ficar combatendo fake news, perdendo tempo, deixando de trabalhar, deixando de fazer os nossos deveres aqui para desmistificar as notícias enganosas. Vamos levar a verdadeira comunicação para o restante do País”, disse o genro do Homem do Baú.  

Resumo da ópera: enquanto o número de vítimas fatais da Covid ultrapassa meio milhão, os luminares palacianos querem levar ao telespectador fatos “leves” sobres saúde, comportamento e entretenimento. O nome do folhetim já está definido — “Bom de Ver”. As gravações do piloto já foram feitas, embora a data da estreia ainda não tenha sido definida.

Bolsonaro e sua trupe são críticos da cobertura da imprensa sobre a pandemia e defendem um noticiário que se concentre no número de curados. Mortes pela doença, inflação, desemprego, aumento da pobreza, nada disso é pauta. O general-chefe da Casa Civil costuma reclamar que “só tem caixão” na TV, interpretando à sua maneira o papel daquele que mata o mensageiro portador de más notícias.

Observação: Em 1707, quando voltava triunfante para a Grã-Bretanha após derrotar os franceses no Mediterrâneo, a frota comandada pelo almirante britânico Clowdisley Shovell adentrou denso nevoeiro. O imediato garantiu que estavam numa rota segura rumo à Península Britânica, mas outro marujo disse que, segundo seus cálculos, eles estavam em rota de colisão com um arquipélago de 150 minúsculas ilhas a sudoeste da Inglaterra. Shovell não só rejeitou a informação do marinheiro como mandou enforcá-lo. Resultado: os navios se espatifaram nas ilhas encobertas pelo nevoeiro e cerca de dois mil homens se afogaram.

A divulgação de fake news — prática contra a qual o ministro das Comunicações ora se insurge — tem sido o norte, o sul, o leste e o oeste deste espúrio desgoverno. O próprio presidente teve vídeos retirados do ar pelo Facebook e pelo Google sob a alegação de que propagava informações falsas ou sem comprovação — e por conta disso o governo prepara um decreto para limitar a atuação das redes sociais no Brasil.

No STF, um inquérito investiga a disseminação de fake news por parte da récua bolsonarista. No Congresso, uma CPI apurara a participação de nomes ligados ao Palácio do Planalto na produção desse tipo de conteúdo. Na última terça-feira, a Associação Brasileira de Imprensa pediu ao MPF que investigue o uso do canal público para divulgação pessoal do presidente — o motivo foi a transmissão de um culto religioso que teve a participação do Messias que não faz milagres.

O plano de investir na TV pública como um contraponto ao noticiário da pandemia contraria a promessa de campanha de Bolsonaro de privatizar a “emissora traço” (*), passando a EBC para a iniciativa privada. A estatal chegou a ser incluída no Programa de Parcerias de Investimentos, mas a ideia nunca saiu do papel.

Mudando da emissora traço (*) para a CNN Brasil, o jornalista Rafael Colombo pediu para deixar o quadro “Liberdade de Opinião  após atritos com o comentarista Alexandre Garcia. Segundo a Folha, o apresentador, que já havia tido divergências de opinião ao vivo com Garcia, pedira para não interagir mais com o bolsonarista, mas foi convencido a ficar. A gota d’água foi a divulgação da notícia de que Garcia lucrou com fake news sobre a pandemia. A CNN Brasil informou que a saída de Colombo do programa é “uma das novidades programadas pela emissora e que em breve, divulgará mais informações”.

(*) Em fevereiro, de acordo com o relatório nacional da Kantar Ibope Media, a TV Brasil registrou 0,17 ponto de audiência na faixa das 6h às 5h59. Não contente em ficar (bem) atrás de Globo, Record, SBT, Band e RedeTV!, a deficitária rede estatal conseguiu perder para Viva (0,25), Multishow (0,2), SporTV (0,18), Discovery Kids (0,18) e Cartoon Network (0,18). Com a exibição da tal novela bíblica, a emissora registrou picos históricos de audiência (para quem beira o traço desde sua fundação, em 2007). O site da EBC festeja “patamar recorde de audiência em São Paulo”.

Duas pesquisas recentes mostram que a impopularidade de Bolsonaro se consolidou: o levantamento feito pela Exame/Ideia indica que 49% dos entrevistados desaprovam o governo; na pesquisa XP/Ipespe, esse índice foi um ponto percentual maior. Ambas mostram que a desaprovação do governo vem crescendo de forma consistente e ininterrupta desde outubro do ano passado, quando estava em 31%.

As razões são óbvias. Além dos mais de 500 mil mortos em razão da pandemia, o que por si só deveria bastar para arruinar a imagem de qualquer presidente, há uma aflitiva lentidão na vacinação, fruto da incompetência criminosa do governo, como vem mostrando com clareza a CPI do Genocídio. A pesquisa XP/Ipespe apurou que apenas 5% dos entrevistados dizem que “com certeza” não vão se vacinar, enquanto 88% disseram que ou já se vacinaram ou pretendem se vacinar. Esse é seguramente um dos aspectos que minam a popularidade de Bolsonaro, mas decerto não é o único.

Outro tema sensível abordado na pesquisa XP/Ipespe foi a corrupção, que Bolsonaro se jacta de ter liquidado em seu governo. O levantamento mostra que, em novembro de 2018, após a vitória eleitoral de Bolsonaro, 56% dos entrevistados, confiando nas ruidosas promessas do presidente eleito, esperavam que a corrupção fosse diminuir nos seis meses seguintes, enquanto apenas 17% imaginavam que fosse aumentar. Já na mais recente pesquisa, 46% disseram crer que a corrupção vai aumentar, enquanto apenas 16% entendem que vai diminuir.

Isso significa que a percepção de corrupção no País cresceu junto com a impopularidade do presidente, e não parece ser mera coincidência. As inúmeras suspeitas envolvendo a primeira-família, de rachadinhas ao uso da máquina pública para fins privados, contradizem frontalmente o discurso saneador do capetão. Hoje, quem está com Bolsonaro corre o risco de ser visto como corrupto.

Tal percepção é implacável, mesmo para os que têm boa imagem nacional. A pesquisa XP/Ipespe mostra que as Forças Armadas — de longe a instituição que inspira maior respeito entre os brasileiros — vêm perdendo a confiança dos cidadãos desde que se permitiram envolver com um governo tão nocivo para o País. O levantamento mostra que, em dezembro de 2018, pouco antes da posse de Bolsonaro, 70% dos brasileiros diziam confiar nas Forças Armadas; hoje, essa confiança caiu para 58%.

Se a má companhia bolsonarista prejudica uma instituição tão respeitada, o estrago para os já desmoralizados partidos e políticos que dão sustentação ao pior governo da história é muito maior. E o preço desse apoio será cada vez mais salgado: a pesquisa Exame/Ideia mostra que 52% dos entrevistados concordam com a realização de manifestações contra o governo.

Coube a Bolsonaro o duvidoso mérito de demonstrar que o atual sistema de governo não funciona. O perigo do desenho de um sistema que opõe o vencedor de uma eleição plebiscitária (portanto, uma figura forte) a um Parlamento fracionado e com baixa representatividade (o sistema proporcional de voto brasileiro garante a desproporção) já vinha sendo apontado há anos. Nem era preciso esperar a chegada de uma caricatura de homem de Estado como o atual presidente.

Caricaturas às vezes ilustram um argumento, e a maneira como Bolsonaro, em busca da reeleição, está negociando com uma agremiação política de aluguel (das quais existem dezenas) serviu também para reiterar a falência do sistema de partidos. A combinação do mau funcionamento de ambos — sistema de governo e sistema político-partidário — é, ao mesmo tempo, causa e consequência da profunda crise atual.

A amplitude da crise está levando elites pensantes no mundo político, intelectual e empresarial à convicção de que as próximas eleições não trarão uma solução, nem mesmo uma saída provisória — sequer com uma candidatura viável de terceira via. Esse “não dá mais de jeito nenhum” é o grande cenário de fundo para o que se discute no momento na Câmara em termos de reforma política.

Desse cenário surgiu também a proposta do semipresidencialismo, que vem da intersecção entre o mundo acadêmico do Direito e o da política e envolve também ministros do STF. Na sua essência, significa manter a atual figura do presidente da República como chefe de Estado com a prerrogativa de nomear um primeiro-ministro (que não precisa ser parlamentar nem eleito) que, por sua vez, teria de montar um gabinete de ministros dependendo de maioria no Legislativo. O modelo é o que já existe na França e em Portugal: sem maioria no Parlamento cai o governo chefiado pelo primeiro-ministro, mas o presidente eleito diretamente permanece no posto.

A ideia do semipresidencialismo agora lançada em debate público embute duas constatações realistas e uma forte dose de esperança. Ela assume, corretamente, que nunca funcionará o atual sistema presidencialista pelo qual o chefe do Executivo começa o governo buscando maioria no Legislativo num sistema político-partidário fracionado e pouco representativo. E assume ainda, corretamente, que a “cultura política” brasileira precisa da figura forte do presidente (que continuaria chefe das Forças Armadas e da diplomacia) e não comportaria um parlamentarismo puro.

A esperança é a de que a necessária redução do número de partidos — elemento essencial em qualquer reforma política — se daria na medida em que surgissem dois grandes blocos no Legislativo: o da “situação” e o da “oposição”. Alteração como a introdução do voto distrital misto ajudaria, mas não seria precondição para o semipresidencialismo.

A ideia em debate assume também, realisticamente, que não há perspectiva de ampla reforma política com as atuais forças em jogo no Legislativo e, de qualquer maneira, só valeria a partir de 2026. Mas não seria — e aí há um involuntário componente de ironia política — tão radical diante do que já acontece.

De fato, Bolsonaro divide a chefia de governo não com um, mas com dois primeiros-ministros, os presidentes da Câmara e do Senado. Já o Centrão pode ser descrito como uma “federação” de partidos de situação com uma notável diferença em relação à proposta do semipresidencialismo: no sistema de governo atual o presidente é seu refém. Ou seja, no semipresidencialismo, Bolsonaro não precisaria ter medo de impeachment. Sem embargo dos defeitos ou vantagens desse tipo de ideia, o principal mérito político no momento está em forçar um debate para além dos sistemas de governo e político-partidário atuais, dentro dos quais não se vislumbra saída para a crise permanente.

Para muitos, a discussão em torno de normas futuras pode parecer perda de tempo, utopia acadêmica ou impossibilidade política (ou a soma disso tudo). Cabe então lembrar que só há duas resoluções de crises como a que o Brasil enfrenta: a saída pela negociação, compromisso e algum tipo de consenso, ou a saída pelo conflito. Bolsonaro aposta no conflito

O assassinato em público da Lava-Jato, a maior e mais bem sucedida operação de combate à corrupção jamais vista na história da justiça penal brasileira, é o pior crime contra o respeito às leis, o regime democrático e as instituições que está sendo cometido no Brasil dos nossos dias. O STF, os chefes da vida política e as elites, com a participação ativa da esquerda e o apoio da mídia, escandalizam-se todos os dias contra os “atos antidemocráticos”, os riscos de “ditadura” e todos os demais fantasmas do gênero; fazem até processos e jogam gente na cadeia por conta disso. Mas não dizem uma sílaba diante da licença praticamente oficial para roubar o erário público que foi dada pelo próprio STF e as camadas seguintes do Judiciário.

É isso, em português claro, que resultou da liquidação da Lava-Jato. E isso — a decisão superior da justiça estabelecendo que as leis não valem para os casos de corrupção — é a própria negação da ideia de democracia. Não existe Estado de Direito onde o crime seja aceito, aprovado e incentivado, como acontece hoje no Brasil por determinação da própria Justiça. E fim de conversa.

Foi uma ilusão, ou um momento de estupidez, achar que a decisão do STF que anulou todas as ações penais contra Lula — e sua condenação em três instâncias pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro — iria parar nele. Como na história da árvore envenenada, que só pode produzir frutos venenosos, o presente dado ao ex-presidente, ex-presidiário e agora “ex-corrupto” contaminou imediatamente os processos de ladroagem que existem debaixo dele. Resultado: condenações obtidas com base em provas materiais, confissões dos criminosos, delações de comparsas e outros elementos óbvios de culpa, estão sendo anulados para se adaptarem à decisão do STF que desobrigou Lula de pagar pelos delitos que cometeu, segundo a Justiça brasileira.

O STJ — e o resto do mecanismo Judiciário que se pendura embaixo do STF — acaba de dar ao País um exemplo perfeito deste processo de degeneração. Em setembro último, antes da supressão da Lava-Jato pela ação combinada dos ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes, executivos da empreiteira de obras Queiroz Galvão foram condenados na 13ª Vara Federal de Curitiba por corrupção, lavagem de dinheiro, cartel, fraude e organização criminosa, no assalto em massa contra a Petrobras. Não houve como escapar: a empresa tinha dado mais de R$ 5 milhões a políticos nomeados pelo doleiro Alberto Youssef, figura central da Lava-Jato. Mas a exemplo de Lula, que teve seus processos anulados porque o STF decidiu que ele tinha sido julgado no lugar errado — Curitiba, em vez de São Paulo, segundo descobriu o ministro Fachin — a Queiroz Galvão se safou porque o STJ decidiu que seu caso deveria ser julgado na Justiça Eleitoral, e não na Justiça Penal de Curitiba. Pronto: zera tudo.

É óbvio que continuará havendo histórias assim. A mensagem não poderia ser mais clara: seja lá qual for o governo, ou quem estiver na Presidência da República, contrate um time de advogados caros, separe uns bons milhões para os honorários (e outras despesas) e roube à vontade. Não tem a menor importância o fato de existir uma montanha de provas contra o ladrão. É só dizer à Justiça, depois da condenação, que você deveria ter sido processado na vara “A”, em vez da vara “B”, e correr para o abraço. 

O melhor de tudo é que os militantes das instituições democráticas não acham absolutamente nada de errado com isso.

Com Willian Waak e J.R. Guzzo

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

O BRASIL DO “NOVO RENAN”. E COM LULA LÁ.


Embora eu tenha tuitado e publicado no Face a notícia minutos após o acidente de helicóptero ocorrido no início da tarde de ontem ter resultado na morte de Ricardo Boechat, registro também aqui meu pesar pela perda de um dos maiores ícones (se não o maior) do jornalismo tupiniquim. Com quase 50 anos de carreira e uma coleção de prêmios no currículo, Boechat atuava como apresentador do Jornal da Band e âncora da BandNews FM e era tido pelos colegas como um grande sujeito. Lamento não o ter conhecido pessoalmente e, mais ainda, sua partida prematura. O carequinha era uma ilha de lucidez num oceano midiático que se divide basicamente em duas categorias: a dos que têm merda na cabeça e a dos que tomaram purgante.
E Lula lá...

Remover o entulho e se livrar de tralhas que drenam a energia boa e contaminam o ambiente é fundamental. Mas mesmo depois da reciclagem que os eleitores fizeram no Congresso, ainda há muita podridão encalacrada por lá. Um bom exemplo é o Cangaceiro das Alagoas, que mais uma vez se reelegeu senador — o que não chega a surpreender, visto que nesse mesmo estado o Caçador de Marajás de araque conseguiu a mesma proeza assim que seus direitos políticos, cassados juntamente com o mandato presidencial em dezembro de 1992, foram restabelecidos.

Renan Calheiros é um tipo de craca de difícil remoção. Ele ingressou na vida pública nos anos 1970; em 1989, já deputado federal, articulou articulou a eleição de Collor, mas rompeu com o governo e chegou a depor contra o marajá corrupto na CPI que investigou o esquema PC Farias. Em 2002, então promovido a senador da República, apostou em José Serra contra Lula, mas acabou apoiando a adesão do então PMDB ao governo petista, acumulando poder para se eleger presidente do Senado em 2005. Foi aliado do PT até a véspera do impeachment de Dilma, quando pulou para o barco de Michel Temer — com quem rompeu no ano seguinte para se aliar ao PT em prol de sua reeleição nas Alagoas, estado afinado com o lulismo. Abrilhanta seu currículo o fato de ter sido o primeiro presidente do Senado a se tornar réu no exercício do mandato, além de ser alvo de outros 11 inquéritos no STF — 8 dizem respeito à Lava-Jato, um à Zelotes, um a desvios em Belo Monte e outro sobre o caso Monica Veloso. Passada a campanha eleitoral, o camaleão alagoano reatou com Temer e se realinhou ao novo eixo de poder para se aproximar de Bolsonaro. Ao tentar reconquistar a presidência do Senado, porém, foi derrotado por Davi Alcolumbre numa eleição conturbada, eivada por tentativas de fraude e requintes de briga de cortiço.

Até duas semanas atrás, Renan Calheiros era tido como invencível por 10 entre 10 analistas políticos deste país, que pareciam não ver que o político vinha sendo mastigado e cuspido, dia sim, outro também, pelas redes sociais — as mesmas que calaram a pretensão do Congresso em “negociar pesado” na formação do ministério — os políticos, que iriam “dobrar o governo”, tiveram de engolir com casca e tudo o primeiro escalão que está aí, inclusive com uma dúzia de generais dentro —, e que anularam qualquer possibilidade de soltar Lula no tapetão, com jogadinhas de advogado “garantista”. Segundo mais de 100% dos doutores em ciência política deste país, a chance de qualquer outro senador a raposa alagoana era a mesma de alguém mudar os 90 graus do ângulo reto. A horrenda rejeição popular a seu nome era tratada, nos mesmos meios, como uma fantasia de amadores; “pressão de rua” não existe nesses casos, garantiam os entendidos. “Política de verdade”, em seu livro, não tem nada a ver com redes sociais, etc. Esse Bolsonaro, os vinte generais do seu primeiro escalão, o ministro Sergio Moro, etc., iriam aprender, enfim, que é impossível governar o Brasil sem “ceder aos políticos”, e o sinônimo de política no Brasil era Renan Calheiros. Só que deu zebra — mais uma vez ao contrário, aliás, como tem dado dia após dia.

O jornalista J.R. Guzzo, uma das poucas cabeças pensantes que restaram no elenco da revista Veja, escreveu recentemente em sua coluna que os ministros supremos deveriam começar a pensar nos seus próprios couros. Desde que acabou o regime militar, suas excelências se transformaram numa espécie de orixás que nenhuma força do mundo é capaz de tirar do emprego; dois presidentes da República já foram para o saco, mas os toffolis, e gilmares, lewandowskis e distinta companhia continuam agarrados ao osso, mais firmes que o Pico da Bandeira na Serra do Caparaó. Mas e daqui para frente, com esse temporal que está ficando cada vez mais bravo — vão continuar fora da lei?

Coisas que nunca aconteceram antes sempre podem acontecer uma primeira vez. As redes sociais, que estão construindo realidades brutalmente inéditas neste país, podem muito bem ir para cima de qualquer sultão do STF e cobrar o seu impeachment de um Congresso com pouca estamina para enfrentar o ronco da rua. Era impossível. Não é mais. A Receita Federal abriu um trabalho para identificar “focos de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência” do ministro Gilmar Mendes e de sua mulher, Guiomar — o relatório, de maio de 2018, aponta uma variação patrimonial sem explicação de R$ 696.396 do ministro em 2015 e conclui que Guiomar “possui indícios de lavagem de dinheiro”. O jurista Modesto Carvalhosa vai protocolar novamente os pedidos de impeachment de Gilmar e Lewandowski, que vão se juntar ao novo pedido de impeachment de Toffoli. Pelo visto, a Operação Lava-Toga vai começar.

Continuamos vivendo no Brasil, mas o país em que vivemos é cada vez menos o mesmo. O Brasil dos renans, dos “profissionais” da política e das “realidades de Brasília” está sumindo aos olhos de todo mundo; não existe mais como existia seis meses atrás, e menos ainda como há um, dois ou cinco anos. Não é isso que dizem para você, tanto que, vale reforçar, há pouco mais de uma semana a vitória de Renan para a presidência do Senado era dada como uma verdade científica. No mundo dos fatos, que é o único que conta, revelou-se uma raposa cega, surda e aleijada, com prazo de validade vencido e incapaz de notar que estava desfilando nua no meio da rua. Em vez de olhar para a realidade, ela preferiu acreditar nos especialistas, e acabou virando estopa.

É sempre mais fácil dizer o resultado do jogo depois que o juiz deu o último apito, claro. Mas no caso de Renan daria pelo menos para desconfiar, com trinta minutos corridos do segundo tempo e 3 a 0 no placar para o outro time, que a coisa tinha se complicado horrivelmente. Encantados em medir o tamanho do problema que iriam criar para o governo, Renan e os profissionais que sempre veem tudo, menos o que está acontecendo, não perceberam o tamanho descomunal da resistência ao seu nome. Esse erro de avaliação pode ser fatal hoje em dia: o político brasileiro padrão está gostando cada vez menos de ficar do lado contrário ao da opinião pública, tal como ela se manifesta na internet ou na rua. Está sendo assim desde o impeachment de Dilma, a partir de quando a palavra “rejeição” se tornou a preocupação número 1 de quem pretende sobreviver na política. O desfecho das eleições de outubro, com o massacre geral das candidaturas que caíram em desgraça na boca do povo, está aí para provar.

Diante de tudo isso, Renan nem deveria ter lançado sua candidatura. Tendo lançado, deveria tê-la retirado. Não tendo retirado, deveria ao menos deduzir que a maioria dos senadores lhe dera um aviso sério de que sua candidatura estava liquidada, na prática, quando decidiram que a eleição deveria ser feita com voto aberto. Mas não. A raposa agonizante resolveu pedir proteção ao Supremo e conseguiu, de fato, preservar o voto secreto — acreditava, junto com os ases da observação política nacional, que, podendo esconder seus votos, os senadores que não queriam votar nele passariam a querer. Não adiantou nada, é óbvio. Se os eleitores têm vergonha de votar em você, não há mais nada a fazer nos dias atuais: peça para sair, porque a sua candidatura foi para o saco. Mas a vida real anulou em dois minutos a decisão do STF. Os adversários anunciaram que iriam declarar em voz alta em quem votariam e, com isso, forçaram todos a fazer o mesmo. Fim do jogo. Renan acabou tendo uma soma de cinco votos, derrotado por um senador principiante do Amapá do qual ninguém jamais tinha ouvido falar.

O que interessa, uma vez terminada essa comédia, não são os finíssimos cálculos de engenharia política em torno da eleição, as desculpas miseráveis dos autores das previsões erradas ou os habituais atos de delinquência praticados nessas ocasiões, como o delito de furto cometido pela senadora dilmo-renanzista Katia Abreu, que achava que roubando um documento da mesa iria “virar o jogo” para Renan. O que interessa é que o Renan Calheiros que podia tudo não existe mais. Acabou-se para ele o conforto de ignorar dez anos de acusações de peculato, uso de notas frias, corrupção passiva, criação de boiadas mágicas e por aí afora, em uma dúzia de processos no STF — o melhor que pode lhe acontecer, agora, é não ir para a cadeia.

Sumiu do mapa, em suma, o Renan todo-poderoso de Fernando Henrique, de Lula e de Dilma. Continua aí, claro, e os mesmos que previam sua vitória profetizam agora que ele será um “problemaço” para o governo — revoltado com a derrota, vai se vingar melando “as reformas”. Mas é apenas outra ilusão. Renan nunca mais vai presidir coisa nenhuma. Não manda em nada. Não tem a caneta de presidente do Senado e, portanto, não pode distribuir verbas, empregos e outros negócios em troca de poder. Sem caneta, vira um eunuco político — e isso faz diferença, sim, para o país.

A derrocada de Renan Calheiros oferece mais uma oportunidade para entender outra realidade deste Brasil que está mudando — a agonia, morte e enterro, como força política, da esquerda nacional e do seu líder nos últimos trinta anos. É uma realidade normalmente ignorada, mas ignorar que 2 mais 2 são 4 não faz nenhuma diferença; a soma continua sendo 4. Nada combina tão bem essas duas decadências quanto a mais recente quimera cultivada pelo Complexo Lula-PT-PSOL-MST-etc. Acredite se quiser, eles achavam que Renan, hoje seu principal amigo de fé, irmão e camarada, iria formar ao redor de si um fortíssimo “polo de poder alternativo” no Brasil, e que esse prodígio seria capaz de enfrentar o “governo fascista” e dar, afinal, os músculos políticos de que a “resistência” tanto precisa.

Como Lula e seu sistema de apoio puderam acabar dando nisso? Resposta: pela obsessão por tomar decisões erradas, escolher companhias ruinosas, de Marcelo Odebrecht a Sérgio Cabral, e recusar-se a admitir o mínimo erro. Por culpa unicamente de suas decisões, e não de “golpes” imaginários, das “elites” ou da CIA, Lula virou uma espécie de rosca sem fim. Ele e o “campo progressista” se meteram num enrosco esquisito: quanto mais perdem, mais esforço fazem para perder de novo. Seu lema, hoje, parece ser: “Derrota ou morte”. Ficaram com as duas.

quarta-feira, 20 de março de 2019

O GOVERNO, A OPOSIÇÃO, A CRISE E O ESCAMBAU



Uma observação feita com frequência durante os governos de Lula e Dilma era a de que nenhum dos dois tinha oposição uma anomalia de circo, como a mulher barbada e o bezerro de duas cabeças, pois todo o regime democrático tem de ter uma oposição, queira-se ou não. Até que foi notada, ao longo desse período, a sombra de um partido que fazia o papel de oposição. Mas era o PSDB, e aí é a mesma coisa que não haver oposição nenhuma. 

A principal preocupação dos tucanos era não falar mal de Lula, em nenhuma circunstância; conseguiram o prodígio de jamais aparecer em nenhuma das imensas manifestações de massa que, das ruas para o plenário do Congresso, acabariam levando ao impeachment de Dilma e aos sucessivos infortúnios que reduziram o PT ao seu atual estado de miséria extrema. Se Lula, mais o seu sistema de apoio, estão indo cada vez mais para o diabo, isso se deve exclusivamente a eles mesmos e aos atos que praticaram. Pois bem: o mundo gira, a vida passa, e onde está, hoje, a oposição real ao governo do presidente Jair Bolsonaro? Também não existe.

Existe, obviamente, uma espantosa gritaria contra tudo o que o governo fez, acha que deve fazer ou está fazendo; é possível que nunca tenha havido na história desse país tanta indignação por parte dos adversários em relação a quaisquer gestos do presidente e de sua equipe, por mais cômicos, banais e irrelevantes que possam ser. Condena-se tudo, quase sem exceção, incluindo-se aquilo que se imagina que estejam pensando. Mais aí é que está: isso não é oposição, ou oposição não é isso. Isso é fumaça de gelo seco, que ocupa a maior parte do noticiário sobre a vida nacional, os comentários dos influencers e a bulas de excomunhão expedidas pelos especialistas, mas se desmancha sozinha; não sai correndo atrás de ninguém, e nem machuca quem fica só olhando. A impressão é que o mundo vai acabar daqui a meia hora. Mas a meia hora passa e o mundo não acaba. Resultado: o governo Bolsonaro está morto, mas continua vivo.

O que há, na verdade, é gente falando mal do governo, por não gostar de nenhuma das posturas que o levaram a ser eleito. Não gostava antes da eleição; continua não gostando agora, e o mais provável é que não venha a gostar nunca. Mas isso é apenas liberdade de pensamento, que acaba vindo a público porque existe liberdade de expressão e por que essa liberdade se manifesta através de órgãos de comunicação onde Jair Bolsonaro e o seu mundo mental são detestados. Oposição é outra coisa. É o conjunto de forças organizadas, com projetos de governo, programas de ação e disciplina, capazes de levar a população às ruas, e não apenas os próprios “militantes”, vencer votações importantes no Congresso e representar, de verdade, a maioria dos cidadãos que não aprova o governo. Mais: oposição é algo que tem capacidade de ganhar eleições livres. Tem muito pouco ou nada a ver, portanto, com o bicho que está aí o PT, os partidos a seu serviço e os blocos que ficam na arquibancada gritando “juiz ladrão” sem mudar nunca o resultado do jogo.

É uma questão de ponto de vista, mas também de fatos. O que esperar de uma oposição cujo grande líder está na cadeia, condenado por corrupção em duas instâncias, sem que haja multidões na rua exigindo sua libertação? Como pode funcionar um partido cuja presidência está entregue à uma deputada que desistiu de defender seu cargo de senadora porque ficou com medo de perder uma eleição majoritária? Vale a pena perguntar, também, como pode dar certo uma oposição que não tem nenhum dirigente, um só que seja, com um mínimo de popularidade, influência junto ao público e capacidade de falar para a massa. O PT deposita suas esperanças, hoje, em enredos de escola de samba, em comitês da ONU ou na liderança de um artista de novela de segunda linha. Tem um aproveitamento de 100% na escolha do cavalo que perde: é a favor da ditadura da Venezuela, do imposto sindical ou do “desarmamento” da polícia, e contra a reforma da previdência, o pacote anticrime do ministro Sergio Moro e a Lava-Jato. Não tem um programa de governo compreensível para se contrapor ao de Bolsonaro. Seu único candidato para uma eleição nacional é Fernando Haddad. O MST nunca mais invadiu uma fazenda; seus assemelhados nunca mais invadiram um terreno de periferia ou um prédio abandonado. Não tem mais o dinheiro da corrupção que recebia das empreiteiras de obras públicas.

Mas não é fácil, no meio de toda a prodigiosa gritaria que anda solta por aí, identificar o que de fato está acontecendo com a administração pública deste país. A inclinação mais ou menos natural, diante dos arranques de cachorro atropelado que o Palácio do Planalto produz em série, dia sim dia não, é dizer: “Deus me livre”. Que raio esse homem, e os filhos desse homem, e os ministros-problema do seu governo, estão querendo? Por que não se calam, como o rei da Espanha sugeriu ao ditador da Venezuela anos atrás coisa que poderia ter lhe ajudado tanto, se ele tivesse ouvido um pouco? Porque não começam a trabalhar como gente adulta (e remunerada para isso), em vez de passar o dia mexendo com tuítes, redes sociais e o resto dessa vidinha que não soma um milésimo de centavo ao PIB?

Não estão disponíveis até o momento as respostas para nenhuma dessas perguntas. Também não colabora em nada para um melhor entendimento dos fatos a coleção de reações frequentemente histéricas com que o mundo político, os “formadores de opinião” e o resto do Brasil “importante” recebem cada suspiro do governo. Resultado: a montagem de um “climão” que funciona maravilhosamente bem para a proliferação epidêmica de bobagens que não ajudam em nada, e ao mesmo tempo atrapalham em tudo.

A única atitude sensata a tomar, ao que parece, é ficar frio e ficar frio por um bom tempo. Não adianta esperar que a fumaça evapore sozinha, porque ela não vai evaporar, não a curto prazo, e não enquanto continuarem fervendo a água; é possível, ou provável, que daqui a quatro anos a confusão permaneça muito parecida com a de hoje. A saída mais promissora, dentro das que podem ser acionadas na prática, é manter a calma e prestar atenção no monitor que informa os “sinais vitais”, como dizem os médicos. É aí que o cidadão pode saber onde realmente está. O primeiro deles é a inflação. Não há crise de verdade com inflação baixa e a inflação brasileira está baixíssima, vem caindo desde o ano passado, e tudo indica que vai continuar em queda. O preço da gasolina e do álcool, por exemplo: está abaixo do que estava no primeiro dia do ano e do novo governo. (Não é pouca coisa; imagine por um momento qual seria a sensação se o preço estivesse subindo.) É claro que inflação perto de zero não faz o desempregado arrumar emprego, mas é certo que torna possível a solução dos problemas; sem isso não adianta nem tentar. Outra realidade que a fumaceira não pode esconder é a cotação do dólar, que permanece mais ou menos estável. Confusão, mesmo, é dólar em disparada não adianta nada ignorar essa realidade ou dizer que ela não tem importância, pois não existe economia em colapso com câmbio parado.

A tela também está mostrando que, apenas no mês de janeiro, perto de 400.000 inscritos deixaram de receber os benefícios do Bolsa Família, por conta, basicamente, de desistências. Milhões de trabalhadores pararam de pagar o imposto sindical ao longo do primeiro ano de vigência da nova lei; a arrecadação dos sindicatos caiu em 90%, o que significa que mais de 3 bilhões de reais ficaram no bolso de quem trabalha, em vez de irem para o cofre dos dirigentes sindicais. Há economias com o corte de funcionários criados nos governos do PT, a suspensão, anulação ou cancelamento de contratos e outras despesas do governo. Não dá para saber ainda quanto dinheiro deixará de ser gasto, mas a sinalização dos primeiros dois meses de 2019 mostra que pode ser muito sobretudo quando se leva em conta a relutância natural das empreiteiras de obras, fornecedores e outros ladrões, em propor negócios escusos aos 100 ou mais generais e outros oficiais das Forças Armadas presentes nos escalões superiores da nova administração. Leilões para o setor de energia elétrica já estão marcados para este ano, ao contrário da prática de não marcar nada, vigente nos últimos dezesseis anos. Há uma reforma da Previdência que será aprovada. Há, enfim, muitos outros sinais no painel. É preciso olhar para eles.

Texto de J.R. Guzzo

terça-feira, 25 de maio de 2021

TUDO NA MAIS PERFEITA ORDEM, TUDO NA MAIS SANTA PAZ


Nova documentação da Sputnik V foi enviada pelos estados da Bahia e do Maranhão à Anvisa na última sexta-feira. Três semanas antes, a agência havia negado o pedido de importação da vacina feito por 14 governos estaduais, além de dois municípios do Rio de Janeiro, sob a alegação de não ter recebido todos os dados de análise de segurança do imunizante e de ter observado a possibilidade de replicação do adenovírus utilizado para levar o material genético do coronavírus para o corpo — que é justamente o efeito oposto ao que se pretende com a imunização. No último dia 20, a União Química Farmacêutica — representante da Sputnik V no Brasil — desistiu de desenvolver os estudos clínicos da Sputnik no país (note que a desistência não diz respeito ao pedido de uso emergencial, que se trata de um processo diferente de autorização).

Tem gente se comporta como se tudo estivesse na mais perfeita ordem, na mais santa paz. Como se não estivéssemos prestes a atingir a marca macabra — e vexatória para um país que é referência mundial em vacinação — de meio milhão de mortos pela Covid. Nos EUA, o uso da máscara em locais públicos já deixou de ser compulsório; aqui, receia-se que o inverno, o ritmo lento de vacinação e o afrouxamento da quarentena provoquem uma “terceira onda”, e que ela seja ainda mais letal que suas antecessoras. 

Entrementes, as bizarrices de um bobo-alegre negacionista encanta uma récua de muares que não distinguem mito de mitômano e fazem tudo que seu mestre manda, inclusive bater palmas pra maluco dançar. Em meio a essa surrealidade, a Anvisa nega a autorização de uso emergencial de um imunizante aprovado em mais de 60 países

É fato que a Sputnik V não é a mais bem-vista das vacinas, mas não se pode perder de vista que, quando não existe alternativa, a única opção torna-se a melhor de todas. Butantan e Fiocruz interromperam o envase da CoronaVac e da vacina Oxford/AstraZeneca devido ao atraso na remessa dos respectivos IFAs — ambos vêm da China, país que a excrescência encalacrada no Palácio do Planalto e seus esbirros enaltecem dia sim outro também com vitupérios importunos e inoportunos.

Por falar em surrealismo, centenas de motociclistas se aglomeraram e fecharam duas pistas em frente ao Parque Olímpico da Barra, na manhã do último domingo, de onde seguiram num ato de apoio ao capitão-cloroquina. O Rio, como se sabe, é uma dos municípios mais castigados pelo vírus que já exterminou 448 mil pessoas no Brasil (segundo dados obtidos no último sábado consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias estaduais de saúde).

Além de promover aglomerações e não usar máscara de proteção facial, o capitão-negação foi flagrado novamente cometendo duas novas infrações de trânsito. Na manifestação realizada semanas atrás em Brasília, ele e seu garupa não usaram capacete; na deste domingo, o modelo usado não é chancelado pelo Inmetro por não proteger a área lateral das orelhas e da cabeça e não ter viseira. No entanto, as autoridades ignoraram solenmente as infrações cometidas pela caterva presidencial.

O vice-presidente da CPI do Genocídio, senador Randolfe Rodrigues, disse que vai pedir esclarecimentos à Prefeitura carioca e ao governo do Estado sobre a manifestação, Parte inferior do formulárioque foi convocada pelo presidente, nas redes sociais, a despeito de o decreto municipal proibir expressamente a realizações de eventos em áreas públicas durante a pandemia. Para Randolfe, a aglomeração, que contou com a presença do ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que se postou ao lado de Bolsonaro com o rosto descoberto, contrariando mais uma afirmação que fez à CPI do Genocídio nas sessões de quarta e quinta-feira da semana passada, foi um “acinte às quase 450 mil famílias  enlutadas”.

A presença de Pazuello criou mais um constrangimento para o Comando do Exército e pode dar azo a mais uma crise militar no governo. O ex-minitro é general de divisão da ativa, e militares da ativa são proibidos pelo Estatuto dos Militares e pelo Regulamento Disciplinar do Exército de participar de atos político-partidários. O PSDB publicou nota em seu perfil no Twitter criticando a conduta de Pazuello: "Um General de Divisão do Exército Brasileiro participando de um evento de natureza política não condiz e não respeita a instituição da qual faz parte", diz parte do texto.

Ao converter o general em adereço de seu comício, diz Josias de Souza, o presidente deixou o comandante do Exército diante de um dilema: ou ele pune o general, arriscando-se a ser desautorizado por Bolsonaro, ou desmoraliza a instituição que jurou defender (o leque de alternativas vai de mera advertência à prisão disciplinar). Alvo de inquérito no MP e de auditoria no TCU, prestes a ser submetido a uma terceira inquisição na CPI, Pazuello enfrenta uma situação inóspita. Parte da cúpula militar avalia que o maior excesso que se poderia cometer diante de seus pendores políticos seria o excesso de moderação. 

Afora os riscos disciplinares, há o receio de permitir que o passivo sanitário acumulado por Bolsonaro seja jogado na porta dos quarteis. Antecessor do general Paulo Sérgio Nogueira no comando do Exército, o também general Edson Leal Pujol declarou no passado, com outras palavras, que os generais que ocupam postos civis no governo comandam escrivaninhas, não tropas. Deveria ser uma obviedade, mas o presidente tornou a reiteração de obviedades uma necessidade. Pujol foi escanteado por Bolsonaro, mas o raciocínio que expressou em público, por dogmático, continua de pé. 

Ironicamente, o sucessor de Pujol, discute a hipótese de punir Pazuello com o general Braga Netto, um ministro da Defesa que ornamentou uma aglomeração política com Bolsonaro uma semana antes de Pazuello. É fato que Braga Netto já passou para a reserva. Mas também é fato que, como titular da pasta da Defesa, deveria oferecer aos subordinados o exemplo de conduta. No caso de Pazuello, há um incômodo adicional: o personagem resistiu a todos os apelos para que pendurasse a farda. Ele será instado novamente a migrar para a reserva. A providência viria bem, mas chegaria tarde. O estrago está feito, e será maior se o general não for punido.

ObservaçãoSegundo o blog de Fausto Macêdo, Bolsonaro telefonou diretamente para o ministro Braga Netto, da Defesa, proibindo a divulgação de qualquer nota ou manifestação pública a respeito do caso, o que causou constrangimento entre os membros do Alto Comando do Exército, que decidiu tomar medidas contra Pauzello, mas apenas no âmbito interno, sem nenhuma explicação à opinião pública. Mais cedo, o comandante do Exército, general Paulo Sérgio, decidira abrir um processo disciplinar contra o insurreto que, além participar de aglomeração e não usar máscara, deu de ombros para a legislação militar. A previsão é de que a investigação sobre a conduta do general dure no mínimo 30 dias.

A CPI retoma os trabalhos nesta manhã, dando sequência aos depoimentos que visam esclarecer quem foram os responsáveis pelos atos e omissões que produziram quase meio milhão de cadáveres em pouco mais de um ano de pandemia — coisa que até as pedras sabem, mas enfim... Entrementes, em outro picadeiro desse circo, desenvolve-se a narrativa do presidente cuja sobrevivência política depende (agora mais do que nunca) de manter acirrado o ânimo dos bolsomínions — bando de imbecis que posam de militantes comandado por um imbecil que posa de presidente. Transformada em votos válidos, essa récua de muares é suficiente para assegurar a seu “mito” uma vaga no segundo turno, donde a importância de mantê-los coesos — coisa que o capitão-cloroquina faz de várias maneiras, como se viu no último domingo.

Vale lembrar que a conversa mole para boi dormir do “não há uma denúncia sequer de corrupção envolvendo este governo” — potoca que, de tão mambembe, não soaria crível nem mesmo para a Velhinha de Taubaté — um trabalho exaustivo e minucioso do jornal O Estado de S. Paulo mostrou, semanas atrás, a existência de fortes indícios de que o governo montou um esquema paralelo para o manejo das emendas parlamentares ao Orçamento da União a fim de assegurar apoio no Congresso. Pouco antes disso surgiram na CPI evidências sobre o uso do mesmo tipo de recurso obscuro no Ministério da Saúde, onde a gestão da pandemia conta com um “grupo de aconselhamento” que atua à margem das orientações da estrutura oficial.

Dora Kramer relembra em sua coluna que muito antes, mais exatamente em maio do ano passado, o país tomou conhecimento de que, numa reunião ministerial ocorrida no fatídico 22 de abril de 2020, Bolsonaro revelara contar com um “sistema particular de informações” por não se sentir atendido pelas instâncias formais da área, tais como a PF e a Abin. Voltando ainda mais no tempo, desde o início do mandato do morubixaba de turno que se sabe da atuação, digamos, informal, de filhos e correligionários do presidente na comunicação governamental, motivo, inclusive, de atritos com aqueles oficialmente nomeados para funções nesse setor. Ali viceja um tal de gabinete de ódio, do qual a composição e a atuação permanecem envoltas em sombras.

Ainda que não se estabeleça com isso a existência de um governo paralelo como algo extensivo a todas as áreas, é o suficiente para constatar a predileção do presidente por trabalhar, desorganizada e indisciplinadamente, com instâncias montadas à margem da máquina do Estado. Se confirmados os indícios de uma reserva de bilhões de reais do Orçamento para o atendimento privilegiado (e sem transparência) de deputados e senadores, teremos a ocorrência de (mais um) crime de responsabilidade. Isso, no máximo. No mínimo, ficará demonstrada a adesão do governo aos costumes da velhíssima política.

Vestidas com roupa nova, as mesmas práticas que há quase trinta anos ensejaram uma CPI cujo resultado foi a cassação de seis deputados e a renúncia de outros quatro entre os 37 investigados conhecidos como “anões do Orçamento”. Na gestão da crise sanitária, as posições do presidente contrárias às orientações da ciência pareciam ser fruto exclusivo da cabeça dele. A CPI do Genocídio vem nos mostrando que Bolsonaro bebia também em outras fontes, buscando respaldo em gente que nada tinha a ver com a equipe presidencial. Pessoas que desconheciam procedimentos normativos, como ocorreu no caso do preparo daquela minuta de decreto para incluir na bula da hidroxicloroquina o tratamento para a Covid, ao arrepio das exigências legais.

Em palcos ainda periféricos, Lula, o picareta dos picaretas, tenta articular uma união improvável, mas não impossível. No centro oposicionista, alguns artistas tentam organizar seu show, mas ainda não sabem quem tocará o quê. A boa notícia é que metade do eleitorado repudia a outra metade (falo da que se divide entre Lulu e Bobô). A má notícia é que, pulverizados, os “nem-nem” não chegarão a lugar nenhum.

As camadas ideologizadas se orientarão por preferências programáticas até que o segundo turno as obrigue a apoiar o ruim para evitar a vitória do pior. Até lá, dois temas que hoje se destacam poderão ser determinantes: o avanço da vacinação e a retomada da economia. A questão é que as consequências (como ensinou o Conselheiro Acácio, elas sempre vêm depois) inevitavelmente sobreviverão à causa. Dito de outro modo, as sequelas da pandemia levarão mais tempo para ser debeladas do que a pandemia propriamente dita.

O espetáculo de Bobô e seus capangas tende a explorar o antipetismo, até porque essa estratégia lhes rendeu bons frutos em 2018. O problema é que o cenário mudou um bocado depois que o candidato que prometia combater implacavelmente a corrupção, apoiar a Lava-Jato, privatizar estatais-cabides-de-emprego e exorcizar a “velha política” enrolou essas e outras bandeiras e meteu-as, com os mastros e tudo, em local incerto e não sabido. 

Os bolsomínions, cegos pelo fanatismo desbragado, ainda não perceberam (e dificilmente perceberão) que seu “mito” não passa de um mitômano. Já a patuleia ignara, manipulada pelo que restou do carisma do palanque ambulante, explorará o antibolsonarismo (como se vê, material é o que não falta). Vence quem conseguir aumentar (ainda mais) a rejeição ao oponente a apresentar uma proposta mais convincente de vacinação e retomada econômica.

Mais uma vez, a polarização está consolidada e a sorte, lançada (alea jacta est).