Em depoimento à CPI da Covid nesta terça-feira, o diretor-presidente da Anvisa disse que tanto a sua posição quanto a da Agencia são contrárias às do presidente Bolsonaro em relação ao “tratamento precoce”, políticas de vacinação e uso da cloroquina. Disse também divergir sobre “termo de responsabilidade” e o folclórico “se você virar um jacaré, é problema seu” — , e que não acha razoável negar a importância da vacinação. Barra Torres confirmou o depoimento de Mandetta sobre reunião no Palácio do Planalto da qual participaram o ministro Braga Netto e a médica Nise Yamaguchi, e que foi a médica quem defendeu a (descabida) mudança na bula da cloroquina para incluir no texto sua eficiência no tratamento da Covid (para mais detalhes, clique aqui).
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Segundo reportagem
publicada no jornal O Estado de S.Paulo, o governo federal montou,
no final do ano passado, um esquema para ampliar sua base de apoio político no
Congresso através de um “orçamento
paralelo” — uma anomalia dentro do Orçamento da União que distribuiu
secretamente pelo menos R$ 3 bilhões em verbas públicas para 37 parlamentares
governistas.
Nada a ver com as tradicionais emendas orçamentárias que
deputados e senadores têm o direito de pendurar no Orçamento para enviar
verbas aos seus redutos eleitorais. Trata-se de dinheiro extra, liberado no
escurinho, longe dos olhares dos órgãos de controle. Uma parcela substancial
desse recurso foi destinada à compra de tratores e equipamentos agrícolas
por preços superfaturados em até 259% (com base nos valores de
referência estabelecidos pelo próprio governo).
Em três meses, 101 ofícios foram enviados por deputados e
senadores ao Ministério do
Desenvolvimento Regional e a órgãos vinculados com o objetivo de indicar
à pasta como os parlamentares desejavam utilizar o dinheiro. Uma vez
que os acordos para montar esse orçamento paralelo não são regidos por uma
legislação específica, não há qualquer obrigação de dividir o bolo de forma
igualitária e, consequentemente, acabam beneficiando “os amigos do rei”.
Ironicamente, Bolsonaro vetou a tentativa do
Congresso de impor os recursos de emendas RP9 por considerar
que isso “contraria o interesse público” e estimula o “personalismo”, mas ele
próprio passou a ignorar o veto quando se amancebou com o Centrão e
moveu mundo e fundos (principalmente fundos) para entregar a presidência da Câmara
a Arthur Lira e a do Senado a Rodrigo Pacheco.
Quando o STF negou a Alcolumbre a
possibilidade de se reeleger presidente do Senado, o parlamentar — um dos
principais aliados de Bolsonaro no Congresso — buscou o apoio do PT para
eleger Pacheco. Segundo a reportagem, seriam necessários 34 anos
para o senador demista manejar os R$ 277 milhões do Ministério do
Desenvolvimento Regional por meio das emendas parlamentares individuais que
garantem a cada congressista R$ 8 milhões ao ano.
A reportagem traz ofícios dos parlamentares para o MDR
indicando a destinação da verba. Neles, os parlamentares tratam a verba pública
como se fosse dinheiro grátis. É a “minha cota”, anotou um dos
beneficiários. “Eu fui contemplado”, escreveu outro felizardo. Esses são
“recursos a mim destinados”, lê-se em outro documento. Foi dessa última forma
que a deputada Flávia
Arruda, atual ministra da Secretaria de Governo, dirigiu-se à a Codevasf para
definir o destino de R$ 5 milhões. “Não me lembro. Codevasf?”, perguntou
a parlamentar ao Estadão. Ao ler o documento, Flávia
desconversou: “É tanta coisa que a gente faz que não sei exatamente do que
se trata”. Nem tudo, porém, é registrado. O senador Rodrigo Cunha admitiu
que “ditou” para o ministro Marinho onde R$ 7 milhões deveriam
ser aplicados.
O ex-presidente do Senado informou por meio de sua
assessoria que não existe nenhum documento oficial tratando de recursos ou
emendas em nome de qualquer parlamentar, e que não vai comentar sobre planilhas
não oficiais. De todos os parlamentares listados em documento do governo obtido
pelo Estadão, Alcolumbre foi o único a negar a
indicação. O deputado Lúcio Mosquini disse que apenas
garantiu a verba e que, “daí em diante, é com a prefeitura e o governo”.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, o Ministério do
Desenvolvimento Regional reconheceu que os parlamentares definiram como e onde
aplicar R$ 3 bilhões de verbas próprias da pasta: “Os
recursos oriundos de emenda do relator-geral foram executados conforme
definição do Congresso Nacional”.
O caso pede investigação, diz Josias de Souza, pois
lembra episódios antigos, como o escândalo dos anões
do Orçamento e a Máfia
dos sanguessugas, que superfaturava a compra de ambulâncias destinadas
a prefeituras. O brasileiro que sonha com uma transformação dos costumes
políticos fica com a impressão de que está novamente diante de uma velha praga
nacional: a Síndrome do Quase. A higienização da política quase foi
alcançada quando as ruas forçaram o Congresso a escorraçar Collor do
poder. A assepsia quase foi obtida quando foram cassados os mandatos de
meia dúzia de anões do Orçamento. A purificação quase chegou quando o STF
mandou para a cadeia a cúpula do PT e os empresários enrolados no
mensalão. A nova investida contra o Orçamento indica que o impeachment
de Dilma e as prisões da Lava-Jato, agora em fase de relaxamento,
não eliminaram a maldição do quase. Infelizmente, a democracia
brasileira não consegue se livrar do código de barras.
Criada à época da ditadura com vistas à transposição
do Velho Chico, a Codevasf se tornou a preferida
de deputados e senadores, principalmente do Centrão, pela
capacidade de executar obras e entregar máquinas aos municípios e Estados mais
rapidamente do que o governo — sendo uma estatal, a entidade tem regras de
contratação mais flexíveis do que um ministério; neste ano, conseguiu um
orçamento recorde de R$ 2,73 bi, composto principalmente por
emendas. Na prática, o governo transformou a “estatal
do Centrão” num duto de recursos para atender interesses eleitorais.
Como mostrou o Estadão, boa parte dos recursos
do orçamento secreto é destinada
à compra de tratores e equipamentos agrícolas com valor acima da tabela de
referência. Documentos obtidos pelo jornal revelam que um grupo de
aliados do governo determinou o que comprar, por quanto e indicou a Codevasf como
o órgão que deveria fazer a operação, o que contraria leis
orçamentárias. A agilidade na “entrega” é essencial para o prestígio
eleitoral dos parlamentares em suas bases. Mas, se a transposição das
águas do São Francisco ainda é um sonho para moradores da
bacia hidrográfica do rio, a distribuição dos recursos da Codevasf já
está sendo ampliada.
Na sua criação, em 1974, a empresa atendia 504 municípios, o
que representava 7,4% do território brasileiro. Sua área original
incluía apenas Alagoas, Bahia, um pedaço de Goiás e de Minas, Pernambuco e
Sergipe — por onde correm o rio, seus afluentes e subafluentes —, além de
Brasília, sede da companhia. Por decisão de Bolsonaro, ela se
estende agora ao Amapá, reduto do senador Davi Alcolumbre, ao Rio
Grande do Norte, base do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério
Marinho, e à Paraíba, do deputado Wellington Roberto, líder
do PL na Câmara.
Desde que o capitão assumiu a Presidência, a
área de atuação da Codevasf cresceu de 27,05% para 36,59% do
território nacional. Chegou ao Sul da Bahia, passou a cobrir quase todo
o Ceará, o litoral de Pernambuco, o Sul de Goiás e grandes trechos do Pará e de
Minas, atingindo a divisa de São Paulo. A empresa atende hoje 2.675 municípios
em 15 Estados, além do Distrito Federal. A ampliação não tem freio. O Senado já
aprovou proposta para a estatal atuar no Amazonas, em Roraima e no Sul de
Minas. A companhia também passou a operar no clima equatorial úmido da floresta
do Amapá.
A sede da Codevasf em Macapá foi inaugurada
no dia 16 de abril, com a presença de Alcolumbre. Em uma empresa
que não gera receitas próprias, o ex-presidente do Senado foi responsável por
determinar o capital inicial de R$ 81 milhões para projetos no Amapá, com aval
do Palácio do Planalto. Enquanto isso, a
diretoria executiva da estatal, composta por quatro indicados do Centrão,
aprovava a criação de mais quatro Superintendências Regionais, além das oito já
existentes. As novas SRs ficarão em Macapá, Goiânia, Palmas e Natal — as duas
últimas, aliás, são as bases do líder do governo no Congresso, Eduardo
Gomes, e do ministro Rogério Marinho, que estuda concorrer ao
governo do Rio Grande do Norte.
O diretor-presidente da Codevasf é o
engenheiro baiano Marcelo Moreira, ex-funcionário da Odebrecht,
indicado em 2019 pelo deputado Elmar Nascimento com respaldo
do então ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos,
hoje chefe da Casa Civil. À época, Ramos disse ao Estadão que Elmar fez
a indicação porque era líder do DEM, partido que votava “com o
governo”.
O Progressistas, por sua vez, tem dois nomes na diretoria
executiva da Codevasf. O primeiro é Luís Napoleão Casado
Arnaud Neto, homem da confiança de Arthur Lira e diretor
da Área de Gestão dos Empreendimentos de Irrigação. Já o diretor da Área de
Revitalização de Bacias Hidrográficas é Davidson Tolentino de Almeida,
ligado ao presidente do partido, senador Ciro Nogueira. O diretor
de Desenvolvimento Integrado e Infraestrutura da Codevasf, Antônio
Rosendo Neto Júnior, também tem um padrinho, o senador governista Roberto
Rocha.
Observação: Procurada, a Codevasf disse
que as “nomeações atendem as disposições legais e os normativos internos”. O
Palácio do Planalto não se manifestou.
Na prática, a origem do novo esquema está no discurso
de Bolsonaro de não distribuir cargos, sob o argumento de não
lotear o primeiro escalão do governo. De um jeito ou de outro, a moeda de troca
se deu por meio da transferência do controle de bilhões de reais do orçamento
ao Congresso. Tudo a portas fechadas, longe do olhar dos eleitores.
Em atenção aos que têm memória curta (ou seletiva), relembro
que o então candidato Jair Bolsonaro fez elogios rasgados
à Lava-Jato e chamou Sergio Moro para comandar
seu ministério da Justiça e Segurança Pública (edulcorando o convite com
a promessa de indicar o então juiz federal para a vaga que se abriria no STF com
a aposentadoria do decano Celso de Mello). Cansado de engolir sapos
e beber a água da lagoa, Moro desembarcou do governo e
afirmou que a gota d’água que o fez regurgitar foi a insistência do presidente
em interferir politicamente na Polícia Federal.
O inquérito
aberto no STF para apurar as declarações de ambos avançou
rapidamente, mas perdeu o ímpeto em outubro do ano passado, depois que Celso
de Mello se aposentou e a relatoria passou para Alexandre de
Moraes. A última informação que se tem a respeito é a de que o togado prorrogou
o prazo da investigação por mais 90 dias, visto que ainda haverá o que apurar
após a oitiva de Bolsonaro, mas ainda não se decidiu sequer se o
chefe do Executivo deverá depor presencialmente ou poderá fazê-lo por escrito.
Passados cinco meses da demissão de Moro, o
presidente afirmou candidamente que acabou
com a operação Lava-Jato porque não havia mais corrupção no governo.
“Eu desconheço um lobby para criar dificuldade para vender facilidade. Não
existe. É um orgulho, é uma satisfação que eu tenho, dizer a essa imprensa
maravilhosa que eu não quero acabar com a Lava-Jato. Eu acabei com a Lava-Jato
porque não tem mais corrupção no governo. Eu sei que isso não é virtude, é
obrigação. Nós fazemos um governo de peito aberto. Quando eu indico
qualquer pessoa pra qualquer local, eu sei que é uma boa pessoa, tendo em vista
a quantidade de críticas que ela recebe em grande parte da mídia”, disse o
“mito”.
Sobre essa fala do presidente, mas sem citá-la
expressamente, Moro tuitou que as tentativas de acabar com
a Lava-Jato representam a volta da corrupção, o triunfo da
velha política e dos esquemas que destroem o Brasil e fragilizam a economia e a
democracia. “Valerá a pena se transformar em uma criatura do pântano pelo
poder?”, escreveu o ex-ministro.
Diante do exposto, encerro relembrando a frase que usei como título da postagem publicada em 30 de outubro de 2019: NÃO HÁ ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL; O BRASIL É UMA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA!