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terça-feira, 9 de maio de 2023

UM POUCO DE HISTÓRIA E A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR

Ivan Lessa (1935-2012) dizia que "a cada 15 anos o brasileiro esquece o que aconteceu nos 15 anos anteriores". Se ainda caminhasse entre os vivos, o jornalista certamente reajustaria esse intervalo. Como faz BandNews FM  criada em 2005 com a proposta de oferecer um noticiário sempre atualizado , que mudou seu bordão "em 20 minutos, tudo pode mudar" para "em um segundo tudo pode mudar". 

 

Mudanças nem sempre são para melhor. Depois que Jânio renunciou e Jango foi deposto pelo golpe de 64, o Brasil amargou 21 anos de ditadura militar. A movimentação épica pelas "Diretas Já" não bastou para impedir o sepultamento da "emenda Dante de Oliveira, mas ensejou a convocação do Colegiado que elegeu Tancredo primeiro presidente civil da "Nova República"Lamentavelmente, um percalço do destino fez com que o político mineiro levasse para a tumba a esperança de milhões de brasileiros e deixasse de herança o oligarca maranhense  José Sarney, sob cuja batuta a restauração democrática assumiu ares de anarquia econômica e administrativa. 

 

Ainda assim, a Constituição Cidadã foi promulgada em 1988, ensejando a eleição solteira de 1989. Embora houvesse 22 postulantes ao Planalto no primeiro turno — entre os quais Mario Covas e Ulysses Guimarães — o segundo foi disputado pelo pseudo caçador de marajás o desempregado que deu certo, comprovando mais uma vez o que disseram Pelé e Figueiredo sobre o despreparo do eleitorado tupiniquim. 

 

Em 1992, o primeiro impeachment da "Nova República" apeou Fernando Collor, promoveu Itamar Franco presidente e transformou Fernando Henrique num duble de ministro da Fazenda de direito e Primeiro-Ministro de fato. Graças ao sucesso do Plano Real, que finalmente debelou a hiperinflação, o tucano de plumas vistosas foi eleito no primeiro turno do pleito presidencial de 1994 — o não teria sido ruim se a mosca azul não o levasse a  comprar a PEC da Reeleição e — como quem parte e reparte e não fica com a melhor parte é burro ou não tem arte — se reeleger (novamente no primeiro turno) em 1998.

 

Em 2002, após três tentativas frustradas, Lula finalmente foi guindado ao Planalto, e, a despeito de seu estilo de governar — baseado em alianças tóxicas financiadas à base de mensalões e petrolões —, foi reeleito em 2006. Após usufruir de seus dois mandatos, o petista deixou o governo enfiando os dedos no favo de mel de uma taxa de popularidade de 84% e, lambendo as mãos, fez eleger (e reeleger) uma aberração chamada Dilma. E fugiu das abelhas até abril de 2018, quando então acabou preso.
 
Dilma foi vendida como "mãezona" e "gerentona", mas se revelou um conto do vigário no qual o próprio Lula caiu. Entre 2013 e 2016, a economia encolheu 6,8% e o desemprego saltou de 6,4% para 11,2% (mandando para o olho da rua cerca de 12 milhões de trabalhadores). Lula fez sua sucessora, mas a criatura desfez a obra do criador. 


Com o impeachment de madame, Michel Temer prometeu um ministério de notáveis, mas escalou uma notável confraria de corruptos. O presidente que almejava ser lembrado como "um reformista" viu sua "ponte para o futuro" virar pinguela e ele próprio se transformar num pato manco — tradução de "lame duck", que é como os americanos se referem a políticos que chegam tão desgastados ao final do mandato que os garçons, de má vontade, lhes servem o café frio.

 

O antipetismo e a facada desfechada por um aloprado catapultaram Bolsonaro do baixo clero da Câmara para a Presidência desta banânia. Durante a campanha, para provar que era amigo do mercado e obter o apoio dos empresários, o estatista que acreditava em Estado grande e intervencionista, que sempre lutou por privilégios para corporações que se locupletam do Estado há décadas, foi buscar Paulo Guedes, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada. 


Para provar que era inimigo da corrupção e obter o apoio da classe média, o deputado que, em sete mandatos, pertenceu a oito partidos diferentes, todos de aluguel, foi adepto das práticas da baixa política e amigo de milicianos, foi buscar Sergio Moro, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada. 


E para obter o apoio das Forças Armadas, o oficial de baixa patente, despreparado, agressivo e falastrão, que foi enxotado da corporação por indisciplina e insubordinação, foi buscar legitimidade em uma fieira de generais, que embarcaram em uma canoa que deveriam saber furada.

 

Bolsonaro não só se tornou o pior mandatário desde Tomé de Souza como também chefiou o governo civil mais militar da história, consolidando a fama do Brasil de "gigante adormecido que se recusa a despertar" e de "país do futuro que nunca chega". E como uma borboleta que volta à condição de larva, esta republiqueta chegou a 2023 arrastando seu passado como um casulo pesado e pegajoso. Evitar a reeleição do capetão era imprescindível, disso não restam dúvidas. Mas a volta de Lula era opcional. 

 

Pesquisas apontam que 75% dos brasileiros acham a democracia a melhor forma de governo, mas 41% dos que votaram para presidente no primeiro turno, em 2022, escolheram Bolsonaro. Uma explicação possível, segundo Hélio Schwartsman, é que 16% ignoram o princípio da não contradição (quem é a favor da democracia não deve votar em quem a ameaça). 


Tão difícil quanto entender como alguém pode apoiar a reeleição do capitão depois de quase quatro anos sob sua abominável gestão é compreender por que diabos tanta gente achou que Lula era a única alternativa. Mas a pergunta que se coloca é: foi para isso que lutamos tanto pelas "Diretas Já"?

 

Triste Brasil. 

sábado, 16 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — SÉTIMA PARTE


Dias após o golpe militar de 31 de março de 1964, uma junta formada pelo tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, pelo general Artur da Costa e Silva e pelo almirante Augusto Rademaker assumiu o poder e decretou o Ato Institucional nº 1, que contava com onze artigos e determinava que o governo militar poderia cassar mandatos legislativos, suspender os direitos políticos (por dez anos) ou afastar do serviço público todo aquele que pudesse ameaçar a segurança nacional.

As eleições indiretas convocadas pelo AI-1 alçaram à Presidência o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que foi sucedido por Costa e Silva. Na sequência, ocuparam o Palácio do Planalto os generais Emílio Garrastazu MédiciErnesto Beckmann Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo.

Médici manteve a postura “linha-dura” iniciada em 1968; Geisel, que assumiu em 1974 e governou até 1979, deu início a um processo de abertura (lenta, gradual e segura) que culminou na Lei de Anistia. "Se é vontade do povo brasileiro, eu promoverei a abertura política no Brasil. Mas chegará um tempo em que o povo sentirá saudade do regime militar, pois muitos desses que lideram o fim do regime não estão pensando no bem do povo, mas, sim, em seus próprios interesses", disse o "Alemão", que, pelo visto, sabia das coisas.

João Figueiredo — o "João do Povo", como os marqueteiros chapa-branca de então tentaram, sem êxito, alcunhar o militar casca-grossa — foi incumbido de concluir a transição política. "Estou fazendo uma força desgraçada para ser político, mas não sei se vou me sair bem: no fundo o que gosto mesmo é de clarim e de quartel", disse o presidente que preferia o cheiro dos cavalos ao do povo, e que, perguntado por uma criança o que ele faria se fosse criança e seu pai ganhasse salário-mínimo, respondeu candidamente: “daria um tiro no coco.

Entre 1983 e 1984, milhões de brasileiros saíram às ruas em prol das “Diretas Já” — para presidente da República; os governadores, que eram ”biônicos” (nomeados pelos militares) desde o golpe de 1964, voltaram a ser eleitos pelo voto popular em 1982. No apagar das luzes da gestão de Figueiredo, depois que a Emenda Dante de Oliveira foi rejeitada pelo Congresso, um colégio eleitoral composto por senadores, deputados federais e delegados da assembleias legislativas dos Estados guindou à Presidência Tancredo de Almeida Neves, que foi hospitalizado 12 horas antes da cerimônia de posse e  declarado morto 38 dias e sete cirurgias depois, torando-se uma espécie de Viúva Porcina — aquela que foi sem nunca ter sido. 

Tancredo é tido e havido por muitos como o melhor presidente que o Brasil já teve, embora não seja possível dizer com certeza como o país estaria se ele, e não o oligarca José Sarney — a quem Figueiredo se recusou a transferir a faixa presidencial: "Faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor" — tivesse assumido a Presidência. E a gestão do poeta e acadêmico maranhense, autor de Marimbondos de Fogo e um sem-número de contos, crônicas, ensaios e romances, foi bem menos profícua que sua obra literária.

Observação: Vale destacar que o primeiro presidente eleito pelo voto popular desde a Jânio, em 1960, foi o pseudo caçador de marajás Fernando Collor de Mello, que também entrou para história como o primeiro chefe do Executivo Federal condenado num processo de impeachment.

A gestão de Sarney ― um maiores expoentes da política de cabresto nordestina ― serviu de palco para a promulgação da Constituição de 1988. O então presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães (que dorme com os peixes desde 12 de outubro de 1992, quando o helicóptero em que ele viajava com a mulher, dona Mora, explodiu misteriosamente), reconheceu, durante o discurso de promulgação da "Constituição Cidadã", que ela não era perfeita, o que ela própria confessava ao admitir reformas."

O também nada perfeito mandatário de fancaria (o "mito" que desafia a Lei da Gravidade todas as manhãs, quando desperta nos aposentos presidenciais do Palácio do Alvorada) se refere sim outro também às "quatro linhas da Constituição", talvez por jamais ter lido a Carta que jurou obedecer e defender em 2019, que é composta por 245 artigos e mais de 1,6 mil dispositivos.

Voltando à longa noite de 21 anos da ditadura, o AI-2, baixado em 1965 e, combinado com os dois atos institucionais subsequentes, todos decretados durante a gestão de Castelo Branco, estabeleceu eleições indiretas para presidente e artificializou as ações do Congresso. Sucederam-se muitas campanhas de lideranças políticas civis contra o regime (por conta, sobretudo, da demora em se realizar um novo pleito eleitoral democrático), como a de Carlos Lacerda, que apoiou o golpe em seu início. Ainda assim, o regime não perdeu força; pelo contrário: houve aquilo que os historiadores chamam de “Golpe dentro do Golpe” — um endurecimento um endurecimento ainda maior do regime, imposto pelo famigerado AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do "linha dura" Costa e Silva

Observação: O AI-5 — cuja reedição os sectários do bolsonarismo boçal defendem em suas manifestações — cassou liberdades individuais e respaldou práticas eminentemente ditatoriais. Historiadores afiram que a “ditadura escancarada” resultante desse ato institucional deveu-se a pressões de ações armadas revolucionárias que estavam em curso no país, como a Ação Popular, responsável pelo atentado à bomba no Aeroporto de Guararapes em 1966.

Retomando a narrativa do ponto em que Sarney assumiu a presidência, o processo de reabertura política que, segundo o plano da Aliança Democrática, deveria acontecer sem traumas, iniciou-se com o trauma da doença e a sombra do desastre. O grande desafio do político maranhense (que sempre puxou o saco dos militares) foi resgatar as esperanças dos brasileiros. Foi durante sua gestão que os militares voltaram para os quartéis, os partidos políticos de esquerda saíram da clandestinidade, a imprensa recuperou a liberdade e os sindicados, o direito a greves e manifestações. Foi também durante sua gestão que a tal "Constituição Cidadã" foi gestada e parida — para o bem e para o mal.

Sarney herdou dos governos militares uma inflação desenfreada e uma recessão econômica difícil de mitigar. Visando pôr termo à escalada inflacionária, ele lançou o malsinado Plano Cruzado — no qual as medidas de maior destaque foram o congelamento de preços e salários, a adoção do "gatilho salarial" (reajuste automático dos salários sempre que os índices inflacionários ultrapassassem a marca dos 20% ao mês) e a concessão de um abono salarial de 12% aos assalariados. Inicialmente, houve uma explosão de consumo. Os próprios cidadãos, travestidos de "Fiscais do Sarney", passaram a controlar os preços e denunciar remarcações. O ministro da Fazenda, Dilson Funaro, tornou-se uma das figuras mais populares do país. 

Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca termine: o congelamento de preços e a distorção nas margens de lucro das empresas levaram à queda de produção, que levou ao desabastecimento, que levou ao ágio, que levou à volta da inflação, que levou ao... Plano Cruzado II...

... que fica para o próximo capítulo.

domingo, 8 de janeiro de 2017

AINDA SOBRE O PERIGOSO SAUDOSISMO


Ontem, na abertura desta sequência, eu falei brevemente sobre o golpe de 1964, a ditadura militar, o processo de redemocratização do país, a campanha pelas Diretas Já, a eleição (indireta) do primeiro presidente civil após 21 anos e a posse do vice, José Sarney, devido à morte de Tancredo ― consequência de uma diverticulite aguda, embora não faltem teorias da conspiração que defendem outras versões). Disse também que se cogitou a possibilidade de Ulysses Guimarães assumir a presidência ― até porque ele havia sido indicado pelo PMDB para disputar com Maluf os votos do Colégio Eleitoral ―, mas o político paulista acabou preterido pela coligação PMDB/PFL, com o mineiro Tancredo candidato a presidente e o maranhense Sarney a vice. Mesmo assim, o Sr. Diretas ― como Ulysses ficou conhecido ― teve um papel preponderante na Nova República, sobretudo na liderança da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou nossa Carta Magna de 1988 ―, até um trágico acidente de helicóptero, em 12 de outubro de 1992, pôr fim à carreira e à existência desse ícone da política tupiniquim (e dar margem a mais teorias da conspiração).

Observação: A Constituição Cidadã não foi exatamente uma pérola jurídica, como comprovam dezenas de emendas incorporadas ao texto nos anos subsequentes e a necessidade premente de reformas ― como a Política, a Trabalhista, a Tributária e a Previdenciária ― que nenhum presidente teve peito para fazer (com a possível exceção de Temer, que já conseguiu promulgar a PEC do teto dos gastos, mas isso é outra conversa). Aliás, ao discursar durante a promulgação da nova Constituição, o próprio Ulysses reconheceu as imperfeições da Lei, que contribuíram para elevar a carga tributária dos 22,4% do PIB, em 1988, aos atuais 36%, como forma de sustentar as novas obrigações do Estado (direitos básicos de cidadania, como educação, previdência social, maternidade e infância).

Retomando o fio da meada: Embora houvesse apoiado o regime militar e votado contra a emenda Dante de Oliveira (detalhes no capítulo anterior), Sarney procurou cumprir as promessas de campanha ― aliás, foi a partir do seu governo que os prefeitos dos municípios voltaram a ser escolhidos pelo voto popular. Mas faltavam-lhe o carisma e o traquejo administrativo da velha raposa mineira, e, para piorar, ele herdou dos 21 anos de ditadura um país arruinado, com inflação, desemprego e dívida externa nas alturas.

No início de 1986, Sarney implantou o primeiro de seus muitos “pacotes econômicos”, que ficou conhecido como Plano Cruzado. Nossa moeda, que até então era o cruzeiro, sofreu um corte de 3 zeros e foi rebatizada com o nome de cruzado, e tanto os preços quanto os salários foram congelados. Todavia, faltou a equipe econômica combinar o jogo com o “dragão da inflação”, que ignorou solenemente o decreto presidencial ― aqui entre nós, será que Sarney e o então ministro da Fazenda Dilson Funaro acreditavam mesmo que cortar 3 zeros, mudar o nome da moeda e congelar preços e salários e extinguir a correção monetária seria suficiente para extirpar o câncer inflacionário?

Observação: Essa não foi a primeira vez que se utilizou esse expediente para resgatar a credibilidade do dinheiro brasileiro: do real, herdado do padrão monetário português e que era mais usado no plural (“réis”, “mirréis”, “contos de réis”), passamos ao cruzeiro em 1942, que perdeu os centavos em 1964, ao cruzeiro novo em 1967 (depois de novo corte de 3 zeros) e voltamos ao cruzeiro em 1970. Em 1984, suprimiram-se os centavos, e dois anos depois, após novo corte de 3 zeros, a moeda passou a se chamar cruzado. Novo corte de zeros ocorreria em 1989, dando origem ao cruzado novo, que voltou a se chamar cruzeiro em 1990, foi promovido a cruzeiro real em 1993 e, após ter o valor nominal dividido por 2.750, voltou às origens, ou seja, tornou a se chamar real em 1º de julho de 1994, durante o governo de Itamar Franco (veja a tabela de conversão na imagem que ilustra esta matéria).     

O Plano Cruzado fez água em poucos meses, embora a população tenha apoiado a iniciativa do governo (o que faz o desespero, não é mesmo?), fiscalizado os aumentos e denunciado as remarcações de preços. Mas a euforia durou pouco: os produtos sumiram das prateleiras, os fornecedores passaram a cobrar ágio e a inflação voltou a subir. Sarney e seus notáveis responderam com outros “choques econômicos”, como os planos Cruzado II, Bresser e Verão, mas nenhum deles vingou. Depois de reinar por 5 anos (pois é, Sarney garantiu que a “Constituição Cidadã” estendesse de 4 para 5 anos a duração de seu mandato), o bode velho passou a faixa para Fernando Collor de Melo ― esse, sim, o primeiro presidente pós-ditadura eleito pelo voto popular. E deu no que deu.

Observação: No final de 1989, havia 22 candidatos à Presidência da Banânia, dentre os quais Ulysses Guimarães (líder do PMDB), Paulo Maluf (do PDS), Leonel Brizola (PDT), Mário Covas (PSDB) e o apresentador Silvio Santos, que acabou tendo a candidatura impugnada pelo TSE, por irregularidades no registro partidário. Mas os principais postulantes ao cargo acabaram sendo Collor, do nanico PRN, e Lula, do PT.

Collor derrotou Lula no segundo turno e herdou de Sarney um país com uma inflação de quase 2.000% ao ano. Um dia depois da posse, a pretexto de dar “o tiro certeiro no dragão da inflação”, o marajá caçador de marajás anunciou o Plano Brasil novo (ou Plano Collor, para os íntimos). Na concepção de sua equipe, capitaneada pela ministra Zélia Cardoso de Mello ― que, mais adiante, se casaria com Chico Anysio, que por seu turno, ficaria conhecido como “o humorista que casou com a piada” ―, conter a pressão inflacionária exigia reduzir a quantidade de dinheiro em circulação. Para tanto, o governo confiscou as economias dos brasileiros, bloqueando o acesso a tudo que excedesse 50 mil cruzados novos, tanto nas contas correntes quanto nas cadernetas de popança e outros investimentos. A moeda voltou a se chamar cruzeiro, mas os cruzados novos retidos continuaram a existir e foram devolvidos, mas em 12 parcelas, já na moeda nova, corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de 6% a.a. ― o que acarretou perdas substanciais e provocou um aumento significativo nas taxas de suicídio. Do ponto de vista prático, todavia o Plano Collor serviu apenas para gerar uma brutal recessão (para se ter uma ideia, o PIB encolheu 4,5% no primeiro ano de seu governo).

Observação: Em valores atuais, os NCz$ 50 mil correspondem a R$ 5 mil ― quantia que Zélia admitiu, mais adiante, ter sido escolhida de forma aleatória (segundo alguns, por sorteio).   

O governo do hoje senador por Alagoas teve aspectos positivos, dentre os quais o início do processo de desestatização e a abertura comercial do país, com o fim da reserva de mercado e a redução gradual das tarifas de importação, Como eu costumo dizer, se não fosse por ele, talvez a gente ainda dirigisse “carroças” como as que eram fabricadas aqui nos 70 e 80, embora pagasse por elas preços de automóvel de primeiro mundo. Um bom exemplo é o Galaxie Standard ― versão empobrecida do luxuoso Landau, lançada pela Ford no início dos anos 1970 para fazer frente a concorrentes como o Opala, da GM, e o Dodge Dart, da Chrysler. Atualizado pelo IGP-DI/FGV, o preço daquela “carroça”, que era de NCr$ 25.950, corresponde atualmente a R$ 160 mil.    

Hoje, comparado ao petrolão, o “Esquema PC” ― que embasou o processo de impeachment contra Collor ― parece coisa de ladrão de galinha, de bandido pé-de-chinelo, mas levou o marajá dos marajás a renunciar, visando evitar a cassação de seus direitos políticos. Todavia, o Congresso julgou-o assim mesmo, e Collor ficou inelegível por 8 anos. Paulo César (PC) Farias, seu amigo pessoal e tesoureiro de campanha, morreu assassinado poucos anos depois, o que até hoje dá margem a diversas teorias da conspiração (eu, particularmente, acredito em “queima de arquivo”, mas até aí...). Com a deposição de Collor, Itamar Franco, que já era presidente interino desde 2 de outubro, foi efetivado no cargo. Mas isso já é conversa para a próxima postagem. Abraços e até lá.

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quarta-feira, 17 de junho de 2020

ATÉ QUE PONTO VAI CHEGAR?


Os domingos passaram de “dia de futebol” a dia de manifestações, tanto contra quanto a favor de Bolsonaro. No último (14), o frio e da garoa esvaziaram os protestos em São Paulo. Mesmo assim, a PM contabilizou 100 apoiadores no Viaduto do Chá e cerca de 1.000 opositores na mais paulista das avenidas. E isso em meio a uma pandemia sanitária de proporções épicas, causada por um vírus contra o qual não há vacina nem fármaco de eficiência comprovada.

Na noite do sábado 13, depois que o governo do DF desmontou um acampamento de apoiadores do presidente, um grupelho — autodenominado “300 do Brasil”, embora não tenha nem 30 integrantes — lançou fogos de artifício em direção ao prédio do STF, aos brados de: “Se preparem, Supremo dos bandidos, aqui é o povo que manda. Está entendendo o recado?” A ativista Sara (Winter) Fernanda Giromini, principal porta-voz dessa choldra, foi presa pela PF na manhã da última segunda-feira .

Ulysses Guimarães — um dos principais articuladores da campanha pelas Diretas-Já — dizia que “a única coisa que mete medo em político é o povo nas ruas”. E com efeito. A pressão popular havia criado uma ruptura irreversível na base governista quando a emenda Dante de Oliveira foi arquivada, devido à pressão dos militares. Assim, o sonho dos brasileiros de voltar a votar para presidente não foi sepultado, apenas adiado por seis anos (vale lembrar que um colégio eleitoral ungiu Tancredo Neves primeiro presidente civil desde o golpe de 1964, mas o político mineiro foi hospitalizado horas antes da cerimônia de posse e morreu 38 dias e 7 cirurgias depois).

Protestos populares também foram determinantes nos impeachments de Collor, em 1992, e de Dilma, em 2016 — no caso da petista, o estopim foi um aumento de R$ 0,10 na tarifa do transporte público, em meados de 2013, com o qual a gerentona de araque nada tinha a ver. Mas há que ter em mente que  manifestações democráticas perdem adesão (e legitimidade) quando o vandalismo entra em cena e a violência assume o lugar das demandas justas. E é justamente isso o que se vê nos atos em apoio ao governo. Os manifestantes, não raro truculentos, portam faixas e cartazes defendendo o fechamento do Congresso e do STF, a volta da ditadura (com o “mito” no poder), a reedição do AI-5, e por aí vai.

O mestre de cerimônias do Circo Marambaia — um caso clássico de situs inversus (que tem os intestinos no lugar do cérebro) — tem participado dos atos subversivos, embora negue que apoie os manifestantes (talvez por viver num mundinho só dele, onde os fatos não são como são, mas como ele quer que sejam ou pensa que são). Ao atiçar seus rebentos e a choldra de miquinhos convertidos — minguada e teatral, mas fanática e violenta — contra o Legislativo e o Judiciário, o presidente força uma ruptura institucional, talvez para pavimentar o caminho para o autogolpe (tomara que eu esteja errado).

Nesse entretempo, como que para afastar o foco de suas verdadeiras intenções, Bolsonaro mantém acéfalo o ministério da Saúde, e a pilha de cadáveres produzida pelo coronavírus cresce a passos largos sob a batuta de um “ministro interino” que não é médico, farmacêutico nem enfermeiro, mas general de divisão do Exército e expert em logística. E como se não bastasse, reluta em demitir o ministro da Educação sem-educação, que deveria ter caído há muito tempo, senão por péssimo desempenho, pelas ofensas dirigidas aos ministros do STF (que vem reiterando desde a fatídica reunião ministerial de 22 de abril, quando chamou os magistrados de vagabundos e defendeu sua prisão).

Bolsonaro, sempre boquirroto e grandiloquente, não deu um pio sobre o assunto. Mas terá de extirpar o câncer antes que vire metástase (se é que já não virou). Weintraub, por seu turno, certamente politizará sua demissão, de modo a não ser lembrado somente pelo péssimo desempenho no comando da Pasta.

De novo: manifestações organizadas da sociedade civil em defesa da democracia são bem-vindas, mas o mesmo não se aplica ao estímulo à confrontação — que, além de desaconselhável, é desproporcional ao tamanho do “inimigo” do outro lado da trincheira das vias públicas. É o caso dos grupos de baderneiros comandados pelo militar da reserva Paulo Felipe e os retrocitados “300 do Brasil”, capitaneados pela “ativista” Sara Winter (PhD em terrorismo pelas melhores escolas da Ucrânia). Juntos, eles reúnem algumas dezenas de gatos-pingados, mas o que lhes falta em quantidade sobra em estridência e aporrinhação.

Esse clima de permanente confronto provoca um incomodativo déjà-vu. Na truanice protagonizada no domingo 31, Bolsonaro, admirador confesso do autoritarismo e dos torturadores, acenou a manifestantes montado em um cavalo, emulando os gestos do general Newton Cruz, que por ordem do ditador João Figueiredo cavalgou por Brasília contra as manifestações das “Diretas-já”. Está no DNA do capitão o flerte com práticas autoritárias e a necessidade de criação de um inimigo — e é aí que mora o perigo. Na eleição, o vice Hamilton Mourão aventou a ideia de um autogolpe para conter uma situação de anarquia. Isso para não falar das incontáveis vezes que os primeiros-filhos falaram em rompimento institucional.

Bolsonaro nega a intenção de uma intervenção militar no Brasil, apesar de sua constante participação nas manifestações antidemocráticas. “Como darei um golpe se sou presidente da República e chefe supremo das Forças Armadas?”, questionou o capitão em entrevista à Band News. Os generais negam o golpismo e reafirmam o compromisso com a democracia — enquanto reiteram que o golpe de 1964 salvou a democracia. Mas a cúpula do Exército cerrou fileiras com o capitão ao enxergar em movimentos de outras instituições uma tentativa de esvaziar os poderes do chefe do Executivo.

Os generais Heleno e Ramos frequentam atos golpistas; Ramos adverte ministros do STF e arroga às Forças Armadas o papel de “guardiãs da Constituição”; Heleno solta nota com a ameaça de “consequências imprevisíveis”; o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, apoia a nota de Heleno e sobrevoa manifestação golpista; o general Braga Netto atua como factótum do presidente; o general Mourão assina artigos em que chama o decano do STF de “irresponsável” e “intelectualmente desonesto”, e faz críticas pesadas ao Supremo, ao Congresso, à imprensa, à oposição — mas silencia sobre os abusos de Bolsonaro. Os generais da ativa (com exceção de Ramos) não falam, mas os relatos não tranquilizam.

Um dia depois que o ministro Luiz Fux concedeu liminar afirmando que as Forças Armadas não podem atuar como poder moderador entre os Poderes, e de Bolsonaro dizer que "as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas", militares da Força Aérea Brasileira compuseram um manifesto crítico ao ministro Celso de Mello, no qual afirmam, dentre outras coisas, que "nenhum Militar é comissionado para cumprir missão importante, se não estiver preparado para levá-la a bom termo". O texto a seguir foi publicado ontem pela Folha.

Ao Sr. José Celso de Mello Filho.

Ninguém ingressa nas Forças Armadas por apadrinhamento. Nenhum Militar galga todos os postos da carreira, porque fez uso de um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade. Nenhum Militar recorre à subjetividade, ao enunciar ao subordinado a missão que lhe cabe executar, se necessário for, com o sacrifício da própria vida. Nenhum Militar deixa de fazer do seu corpo uma trincheira em defesa da Pátria e da Bandeira. Nenhum Militar é comissionado para cumprir missão importante, se não estiver preparado para levá-la a bom termo. Nenhum Militar tergiversa, nem se omite, nem atinge o generalato e, nele, o posto mais elevado, se não merecer o reconhecimento dos seus chefes, o respeito dos seus pares e a admiração dos seus subordinados. E, principalmente, nenhum Militar, quando lhe é exigido decidir matéria relevante, o faz de tal modo que mereça ser chamado, por quem o indicou, de general de merda.

Rio de janeiro, 13 de junho de 2020.

OBSERVAÇÃO: O manifesto foi uma iniciativa de dois coronéis da Força Aérea Brasileira e recebeu a assinatura de 52 integrantes da Aeronáutica, 16 da Marinha e dez do Exército — todos da reserva. Também assinam o documento 30 civis e um oficial da PM do Rio. Entre os signatários estão 12 brigadeiros, cinco almirantes e três generais. Celso de Mello foi chamado de "juiz de merda" pelo ex-ministro da justiça Saulo Ramos, que o indicou a Sarney para preencher uma vaga no STF.

Como dizia o então deputado Jair Bolsonaro: “Quem pretende dar golpe não avisa que vai dar”.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — SEXTA PARTE


O fim da ditadura militar não foi uma “consequência natural do espírito democrático” dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo, nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. Aliás, o processo de abertura só foi concluído devido a manifestações populares pró-diretas que, em 1983, reuniram cerca de 1,5 milhão de pessoas na Candelária (na Cidade Maravilhosa) e 1 milhão no vale do Anhangabaú (em Sampa). A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé (também na capital paulista), em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE”.

ObservaçãoOs manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes como Ulysses Guimarães, Tancredo NevesLeonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Lula e outros políticos, além de artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone. Em meados dos anos 1980, a Internet ainda era uma ilustre desconhecida e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

Os movimentos pelas “Diretas Já” pugnavam pela aprovação da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, que visava restabelecer as eleições diretas suspensas pelos militares desde 1964. No dia da votação, exatos 20 anos após o golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada, ou por outra, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que consideramos um mal necessário.

O desgaste dos militares propiciou a vitória de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf  em 15 de janeiro de 1985. A raposa mineira derrotou o turco lalau por 480 votos a 180 num colégio eleitoral formado por deputados federais, senadores e delegados das Assembleias Legislativas dos Estados. O então presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB, mas acabou preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney, entregou a Tancredo o programa "Nova República", que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros aguardavam ansiosamente o dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos, mas o que deveria ser a festa da democracia transformou-se em luto nacional: Tancredo foi hospitalizado horas antes da cerimônia e dado como morto 38 dias e 7 cirurgias depois. Seu sepultamento em São João Del Rey (MG) produziu um dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país: o féretro foi seguido por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho da cidade natal daquele que foi, sem jamais ter sido, o maior presidente de toda a história republicana do Brasil.

Após embates jurídicos acerca da possibilidade de Ulysses ser guindado ao Palácio do Planalto, prevaleceu o entendimento de que o José Sarney, vice na chapa de Tancredo e expoente do coronelismo nordestino de cabresto, deveria assumir a Presidência, e foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Oficialmente, o verdugo do Planalto é o 38º presidente desta desditosa banânia, que, também oficialmente (segundo dados da plataforma de monitoramento do ministério da Saúde) está prestes a superar 600 mil vítimas fatais da Covid — segundo diversos infectologistas, imunologistas e outros "istas", cerca de ¾ dessas mortes poderiam ter sido evitadas se o luminar do negacionismo que ainda ocupa a Presidência tivesse agido com um mínimo de competência no gerenciamento da pandemia, em vez de dar ouvidos a um bando de lunáticos desvairados, membros eméritos de um desprezível "gabinete paralelo", segundo o qual o mandatário de fancaria deveria apostar na imunidade de rebanho, cagar e andar para máscaras, isolamento e vacinas, como isso bastasse para a economia voltar a crescer e o projeto "reeleitoreiro" do rascunho do mapa do inferno se concretizar.

Antes de focar esse despresidente bizarro e sua desprezível caterva de apoiadores despirocados, há que dedicar alguns parágrafos à súcia de imprestáveis que presidiram esta banânia desde a redemocratização. Antes, porém, destaco algumas curiosidades:

A cidade de Salvador (BA) foi a capital deste arremedo de banânia entre 1549 e 1763. No Rio, o Palácio do Itamaraty sediou o Executivo Federal até 1897, quando Prudente de Moraes e seu staff passaram a ocupar o Palácio do Catete. A ideia de transferir o DF para o interior era antiga; em 1761, o Marques de Pombal fez essa sugestão, que José Bonifácio ressuscitou em 1823. Mas foi no final dos anos 1950, durante o governo de Juscelino Kubitschek, que Brasília foi construída do nada, no meio do nada, para ser o novo Distrito Federal, e o Palácio do Planalto, inaugurado em 21 de abril de 1960, a nova sede do governo federal.

O que pouca gente sabe é que Curitiba foi capital da República por três dias — de 24 e 27 de março de 1969 — e que, desde e o golpe militar que substituiu a monarquia parlamentarista pela república presidencialista, em 1899, o Brasil teve nove presidentes eleitos de forma direta dos quais apenas quatro completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra, vencedor daquela que é considerada a primeira eleição verdadeiramente democrática do Brasil, em 1945; Juscelino Kubitschek, eleito em 1955; Fernando Henrique Cardoso, eleito no primeiro turno dos pleitos de 1994 e 1998; e o "ex-corrupto" Lula, que se elegeu no segundo turno em 2002 e 2006. Dos outros cinco, Getúlio Vargas “foi suicidado” com um tiro no peito, digo, foi encontrado morto com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954, após ser acusado de tramar um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda e de 27 generais (sempre eles!) exigirem publicamente sua renúncia (sua "carta-testamento" se notabilizou pelas palavras finais: "saio da vida para entrar na História").

Em outubro de 1955, quando JK foi eleito, a ala conservadora, os militares, Café Filho — que passou de vice a titular com o “suicídio” de Vargas — e o presidente da Câmara Carlos Luz — que assumiu interinamente a Presidência com o afastamento de Café — urdiram um golpe de Estado para impedir a posse do presidente eleito. Assim que subiu de posto, Luz substituiu o general Henrique Lott pelo também general Álvaro Fiúza de Castro no comando do Ministério da Guerra. Sentindo o cheiro do golpe, Lott depôs Luz (que foi impichado em 11 de novembro, 4 dias após a posse) e alçou ao cargo o então presidente do Senado, Nereu Ramos. Assim, pela primeira vez na história, o Brasil teve três presidentes da República numa única semana.

 Continua...

domingo, 19 de setembro de 2021

COISAS DO BRASIL



O habito não faz o monge nem a faixa, o presidente. Há que haver conteúdo sob ou por detrás desses adereços indumentários. Notadamente o enfeite tiracolar transferido pelo ex-presidente a seu sucessor na cerimônia de posse — que, desde os idos de 1972, acontece sempre no dia 1º de janeiro do ano subsequente ao da eleição e tem início na Catedral de Brasília, a despeito do inciso VI do artigo 5º da Constituição. Coisas do Brasil.

Depois de desfilar no Rolls Royce Presidencial até o prédio do Congresso Nacional, Bolsonaro assinou o termo de posse, jurou "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil" e recebeu de Michel Temer a faixa presidencial.

Bolsonaro jamais leu a Constituição que jurou defender e, como o escorpião da fábula, é incapaz de contrariar a própria natureza. Apesar de reconhecer que não nasceu para ser presidente, mas para ser militar, foi expelido da Escola de Oficiais do Exército por indisciplina e insubordinação (mas acabou sendo absolvido das acusações pelo STM). No ano seguinte, elegeu-se vereador e depois deputado federal por sete mandatos consecutivos, ao longo dos quais aprovou dois míseros projetos e colecionou mais de trinta ações criminais. Em 2018, foi alçado à Presidência por uma esdrúxula conjunção de fatores, entre os quais um mal explicado atentado que sofreu durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG). 

Bolsonaro disputa com Dilma — o poste com que Lula empalou os brasileiros em 2010 — o título de pior mandatário desde a redemocratização (e não por falta de concorrentes de peso). Com a autoridade de quem sabe das coisas, o general Ernesto Beckmann Geisel — penúltimo presidente da ditadura e mentor intelectual da reabertura política lenta, gradual e segura — definiu o então capitão da ativa comoum caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”.

O último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo (povo que, segundo ele, "não sabe nem escovar os dentes, quanto mais votar para presidente"), negou-se a passar a faixa presidencial a José Sarney (faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor). Coisas do Brasil.

A título de contextualização, vale lembrar que a Revolução de 1964 — cuja data “comemorativa” é 31 de março — foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril, por líderes civis e militares conservadores, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo.

Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada — em outras palavras, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que, infelizmente, é um mal necessário. Coisas do Brasil.

O desgaste do governo propiciou a vitória de Tancredo Neves em um colégio eleitoral — por 480 votos contra 180, a raposa mineira derrotou Paulo Maluf (que era apoiado pelos militares) depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal — formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar. 

Em janeiro de 1985, o deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar. Mas Tancredo foi hospitalizado 12 horas antes da cerimônia e teve o óbito declarado 38 dias e sete cirurgias depois — ironicamente, no feriado de 21 de abril, data em que o Brasil homenageia Tiradentes, o mártir da independência. Coisas do destino.

Tancredo levou para o túmulo a esperança de milhões de brasileiros, mas deixou de herança um neto que  envergonharia o país e um mix de oligarca maranhense, escritor, poeta e acadêmico chamado José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, mais conhecido como “Zé do Sarney”. A possibilidade de Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, ser guindado ao Palácio do Planalto chegou a ser cogitada, mas prevaleceu o entendimento de que caberia a José Sarney, vice na chapa de Tancredo e rebotalho do coronelismo nordestino, assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Observação: A origem da alcunha — que o político maranhense usava para fins eleitorais desde 1958 e acabou incorporando oficialmente em 1964 — é atribuída ao fato de seu ter sido batizado Sarney de Araújo Costa em homenagem a um inglês de conhecido como Sir Ney, em cuja fazenda ele nasceu. Coisas do Maranhão.

Fisiologista como poucos e puxa-saco de carteirinha dos poderosos de plantão, Sarney (o filho) sobreviveu à ditadura, mas sua infausta gestão à frente da Presidência foi marcada pela hiperinflação. Tanto o Plano Cruzado quanto os "pacotes econômicos" que se lhe sucederam foram baseados no congelamento de preços e salários, e da feita que repetir o mesmo erro várias vezes esperando produzir um acerto é a melhor definição de idiotice que eu conheço, não causou estranheza o fato de todos fazerem água em questão de meses. 

Em 20 de fevereiro de 1987, pressionado pela queda nas reservas cambiais, Sarney fez um pronunciamento em rede nacional anunciando a suspensão, por tempo indeterminado, do pagamento dos juros da dívida externa — evitando usar a palavra "moratória", como se isso produzisse algum resultado positivo (ou menos negativo) na medida adotada. Coisas do Brasil.

Sarney deixou a Presidência com a popularidade em patamares abissais, tanto que transferiu seu domicílio eleitoral para o recém-criado Estado do Amapá, pelo qual teria chances de conseguir uma vaga no Senado. Como era esperado, seus adversários impugnaram se insurgiram contra o cambalacho, mas o STF o avalizou. Conta-se que o ministro Celso de Mello, que teve os ombros recobertos pela suprema toga graças ao oligarca maranhense, votou pela impugnação da candidatura do benfeitor. 

O ex-ministro da Justiça Saulo Ramos quis saber por quê. Mello respondeu que a Folha havia publicado que Sarney tinha os votos certos de vários ministros e citara seu nome como um deles. "E você votou contra porque a Folha noticiou que votaria a favor?", perguntou Saulo. "Exatamente", respondeu Mello. E Saulo: "Então você é um juiz de merda!"

Sarney deixou a vida pública em 2014, aos 83 anos, a pretexto de se dedicar à literatura em tempo integral. Conta-se que, após um dilúvio assolar o Maranhão, a então governadora Roseana Sarney — filha do macróbio — telefonou ao pai para informar que metade do Estado estava debaixo d’água. Sarney perguntou-lhe candidamente: "A sua metade ou a minha?

Nas eleições gerais de 2018, os pimpolhos do velho cacique maranhense foram penalizados na urnas: nem Zequinha se reelegeu deputado, nem Roseana — que governou o Maranhão por quatro legislaturas desde 1995 — conseguiu desbancar o pecedebista Flavio Dino — que se reelegeu governador com 59,29% dos votos válidos.

Como dito parágrafos acima, Figueiredo se recusou a transferir a faixa presidencial a Sarney. Não foi o primeiro nem o único caso na história republicana do Brasil. Coisa de país de terceiro mundo? Não necessariamente. Nos EUA, o ex-presidente Donald Trump, ídolo e muso inspirador do capitão-cloroquina, não só deu trabalho para ser desencalacrado do cargo como não compareceu à cerimônia de posse de Joe Biden, o que representa uma quebra de protocolo na tradição democrática americana, mas, como dito, encontra apoio na ala conservadora da política brasileira.

Na história do Brasil, o exemplo mais recente de um chefe do Executivo que se recusou a comparecer à posse de seu sucessor foi Figueiredo, conforme já foi dito nesta postagem. Sobre Sarney, o general disse à revista IstoÉ, pouco antes de sua morte, em 1999: "Sempre foi um fraco, um carreirista. De puxa-saco passou a traidor. Por isso não passei a faixa presidencial para aquele pulha. Não cabia a ele assumir a Presidência".

A quebra de protocolo em Brasília foi relembrada pelo neto do general, minutos depois de o presidente americano anunciar que não compareceria à posse do sucessor. "Meu avô também não compareceu à posse de seu sucessor, que chegava ao poder de forma ilegítima. Agiu conforme suas convicções. Assim devem fazer os homens de caráter!", postou no Twitter o empresário Paulo Figueiredo Filho. Coisas do Brasil.

Figueiredo não foi o único a se recusar a cumprir os ritos de transição no Brasil. A República ainda engatinhava quando Floriano Peixoto, que governou de 1891 a 1894, decidiu não comparecer à posse de Prudente de Morais porque não via com bons olhos a chegada de um civil ao poder. Afonso Pena também não passou a faixa a seu sucessor, Nilo Peçanha (e nem poderia, porque Nilo era vice de Pena, a quem substituir em virtude de sua morte, em 1909). Em 1954, Café Filho viu-se presidente do dia para a noite e começou a governar o país sem a bênção de seu antecessor, Getúlio Vargas, que "foi suicidado" com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954.

Após o impasse entre Figueiredo e Sarney, somente dois presidentes eleitos diretamente (FHC e Lulareceberam e passaram a faixa a seus sucessores. O primeiro presidente eleito diretamente após a ditadura militar — o pseudo caçador de marajás Fernando Collor de Mello — recebeu a faixa de Sarney em março de 1990, mas renunciou ao mandato em dezembro de 1992 (e foi impichado mesmo assim, de modo que não passou a faixa a Itamar Franco).

Itamar, por sua vez, tomou posse em uma cerimônia breve e só usou a faixa presidencial no último de seus dois anos e três dias de governo, quando a colocou sobre os ombros de FHC. O tucano, presidente por dois mandatos, cumpriu o mesmo protocolo na posse de Lula, em 2003. Oito anos depois, foi a vez de Dilma ser destituída em um processo de impeachment — e não comparecer à posse de Michel Temer. Em janeiro de 2019, o vampiro do Jaburú repassou a faixa ao mandatário de fancaria que, por mal de nossos pecados, diz que "só Deus o tira da cadeira presidencial". Coisas do Brasil.

Bolsonaro na presidência era tudo de que o os brasileiros não precisavam, mas tornou-se a única alternativa válida depois que o ilustríssimo eleitorado tupiniquim o escalou para enfrentar o bonifrate do presidiário de Curitiba no segundo turno do pleito de 2018. Voltando à paráfrase de Bolsonaro a uma fala de Figueiredo, “plagiar é, implicitamente, admirar”, como bem disse o intelectual lusitano Júlio Dantas. Mas a pergunta que não quer calar é: se não nasceu para ser presidente, por que Bolsonaro fez da reeleição seu projeto de governo?

"Prometo que, se eleito, vou trabalhar noite e dia, durante os quatro anos do meu mandato… para ser reeleito”. Eis a promessa mais sincera e verdadeira feita pelo então candidato, como salientou o ex-delegado federal Jorge Pontes num artigo publicado em Veja. "Teremos um lapso de quatro anos praticamente jogados fora, destinados apenas à pavimentação de mais um — improvável — mandato presidencial", profetizou o policial, em agosto do ano passado.

Assim, graças à verdadeira herança maldita deixada pelo grão-duque do Tucanistão, assistimos a um mandatário eleito com juras de grandes mudanças e discursos anti-establishment emular Dilma, a inesquecível, e fazer o diabo para se reeleger.

A vitória de Bolsonaro foi um caso clássico de emenda pior que o soneto. Embora seja preferível acender a vela a amaldiçoar a escuridão, unir forças com os sectários do bolsonarismo boçal para evitar a volta da cleptocracia lulopetista foi como libertar da garrafa um gênio malfazejo e não saber como prendê-lo de volta. E urge fazê-lo, pois o Brasil dificilmente sobreviverá a mais cinco anos sob o descomando desse mafarrico.  

Segundo a revista eletrônica Crusoé, o presidente de fato desta banânia (falo do centrista Ciro Nogueira) disse a um empresário que Bolsonaro está "cada vez mais mercurial e incontrolável". O diagnóstico perturbador do ministro recém-empossado com promessas de carta branca jamais cumpridas reflete o estado de ânimo atual de setores do Centrão e de boa parte do Congresso. Embora estejam bem servidos em postos estratégicos e se lambuzando no poder desde que que o chefe do Executivo de festim lhes entregou a chave do cofre, a centralhada já entendeu que a aliança tem prazo de validade, e que esse prazo não é longo. Para as marafonas do parlamento, Bolsonaro é um político fadado ao infortúnio, seja pelo impeachment, pela cassação no TST ou derrota nas urnas. E convenhamos que não é preciso ser nenhum "Nostradamus" para fazer tal previsão.

Ainda segundo a reportagem, depois que o desembarque do governo passou a ser debatido a sério entre os partidos que compõem o Centrão, o presidente pato-manco enviou pelo líder do governo na Câmara — o ilibadíssimo Ricardo Barros, a quem o senador Omar Aziz, relator da CPI do Genocídio, se refere como responsável por um balcão de negócios com o Congresso que está a todo vapor — o recado de que continua em pé o esforço para conter possíveis defecções em sua base de apoio.

Entrementes, a despeito da carestia, a inflação oficial segue acima do esperado. O IPCA, medido pelo IBGE, acelerou para 9,68% no acumulado em 12 meses, levando a uma onda de revisões entre os economistas. Na segunda-feira, 13, o Boletim Focus, do Banco Central, registrou a 23ª alta consecutiva da mediana das projeções para o IPCA no fim de 2021, que agora está em 8%. Mas isso é assunto para uma próxima postagem.

sábado, 7 de janeiro de 2017

SAUDOSISMO - CUIDADO COM O QUE VOCÊ DESEJA

Para alguns, a palavra “saudade” existe somente no português; para outros, isso não passa de um mito. Verdade ou não, o termo ficou em 7º lugar no ranking das palavras mais difíceis de traduzir da empresa britânica Today Translations.

Saudade deriva do latim solitas, solitatis, que, em latim, significa “solidão”, “desamparo”, “abandono”. Daí o significado de “desejo de um bem do qual se está privado”; “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las”.

Segundo a professora Luísa Galvão Lessa, Doutora em Língua Portuguesa pela UFRJ e membro da Academia Brasileira de Filologia, os demais idiomas têm dificuldade em traduzir ou atribuir um significado preciso a “saudade”, mas o fato de uma língua não ter palavra que, por si mesma, possa traduzir-se por “saudade” não significa que o povo que a fala não conheça tal sentimento. Tal conceito pode ser, nessa língua ou em outras, expresso por mais de uma palavra. No inglês, por exemplo, têm-se várias tentativas: homesickness (equivalente a saudade de casa ou do país), longing e to miss (sentir falta de uma pessoa); no castelhano, te extraño; no francês, j’ai regret, e no alemão, Ich vermisse dish.

Talvez essas expressões não definam com exatidão o sentimento luso-brasileiro de saudade, mas aí já é outra história; para os propósitos deste preâmbulo, interessa dizer que a lembrança é o elo que liga o passado ao presente, e que é fundamental separar a saudade do saudosismo de achar que tudo era melhor, mais bonito e mais feliz.

Saudosistas, não raro, idolatram um passado que nunca existiu. Um exemplo disso é que, diante do calamitoso cenário político atual, algumas pessoas dizem ter saudades dos tempos da ditadura, mas, quando se vai se ver, nem se conheciam por gente nos assim chamados “anos de chumbo”. E conhecimentos não-empíricos, de segunda-mão, obtidos através de inexatos livros de História, não autorizam, salvo melhor juízo, pleitear volta dos militares.

A ditadura militar foi instituída em março de 1964, com a deposição do então presidente João Goulart e a posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, e se estendeu ao longo de 21 anos, sob o comando dos generais Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, nessa ordem. 

Em 1968, o “linha-dura” Costa e Silva decretou o AI-5, produzindo um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros que prevaleceram durante os “anos de chumbo”, o período mais repressivo do governo militar. Em 1974, Geisel deu início ao lento processo de abertura que, 11 anos depois, poria fim no regime de exceção com a eleição (indireta) de Tancredo Neves ― o primeiro presidente civil em mais de duas décadas ―, embora quem assumiu o posto foi seu vice, José Sarney.

O fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” de Geisel e Figueiredo, e tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. Aliás, o processo de abertura só foi concluído devido às manifestações populares pró-diretas, que em 1983, reuniram 1,5 milhão de pessoas na Candelária (RJ) e 1 milhão no vale do Anhangabaú (SP). A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé (também em São Paulo), em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE” ― note que os manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Lula e outros políticos, artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone, pois a internet era então uma ilustre desconhecida e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

Observação: Em rápidas pinceladas, a “Revolução de 1964” ― cuja data “comemorativa” é 31 de março ― foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril daquele ano, quando líderes civis e militares conservadores derrubaram o presidente João Goulart, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo.

Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados, e a emenda foi rejeitada, a despeito do clamor das ruas. Em outras palavras, o povo foi traído pelos políticos, para variar. Mas o desgaste do governo propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves, que venceu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral (por 480 votos a 180), depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal, formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar.

Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses Guimarães ― que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra o pedessista Paulo Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney ― entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses. Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos e a volta dos militares às casernas. Mas o que deveria ser a festa da democracia se transformou em luto nacional: Tancredo foi internado na véspera da posse e faleceu em 21 de abril (num dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país, seu esquife foi acompanhado por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho de São João Del Rey, onde o corpo do político foi sepultado).

Depois de algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara dos Deputados (Ulysses Guimarães) assumir a presidência, prevaleceu o entendimento de que José Sarney, vice na chapa de Tancredo, deveria ser empossado. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal, como veremos no próximo capítulo desta retrospectiva. Abraços a todos e até lá.

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quarta-feira, 6 de maio de 2020

DIO MIO!



Na última Copa do Mundo, de tanto tentar cavar faltas, Neymar Cai-Cai passou mais tempo deitado no gramado do que exibindo em campo a expertise que o consagrou no esporte bretão. Guardadas as devidas proporções, a estratégia do craque tem sido emulada por ninguém menos que nosso conspícuo presidente, Jair Messias Bolsonaro.

Quando não cava pênaltis a favor do adversário, o “mito” cava a própria cova no jogo político, fazendo uma sucessão de gols-contra jamais vista na história de um país onde faltam máscaras para os profissionais da saúde e leitos para os doentes, mas abundam políticos ignóbeis, despreparados e corruptos, bem como descerebrados munidos de título de eleitor e vocacionados a fazer sempre as piores escolhas. Junte-se a fome à vontade de comer e...

Nunca na história deste país tivemos um estadista na presidência. Talvez Rui Barbosa ou o Barão do Rio Branco pudessem ser considerados como tal, mas nenhum deles presidiu o Brasil. Em contrapartida, populistas vicejaram como ervas daninhas. Getúlio VargasJânio Quadros, Fernando Collor e Lula são apenas alguns dos muitos exemplos, além, é claro, do atual inquilino do Palácio do Planalto — avalizado por quase 48 milhões de votos.

Observação: Bolsonaro foi eleito devido a uma conjunção de fatores. Entre os mais determinantes, vale citar a competência do advogado Gustavo Bebianno e do publicitário Marcos Carvalho na articulação e coordenação da campanha, mas também pesaram, e muito, a ação do dublê de garçom e esfaqueador Adélio Bispo de Oliveira, e o tradicional brilhantismo do eleitorado tupiniquim. Resumido o leque de postulantes ao bonifrate do criminoso Lula e seu maior opositor, à parcela pensante da população restou uma de duas singelas opções: votar em branco, anular o voto ou simplesmente se abster (como fizeram 42 milhões de eleitores), ou unir forças com os bolsomínions, não para eleger o capitão, mas para impedir o retorno do PT. Claro que ninguém imaginava (não àquela altura) a que ponto chegariam as aleivosias bolsonarianas. Nem a turminha do “quanto pior, melhor”, que pintava com as cores do Apocalipse de João uma possível vitória do truculento, racista, misógino, homofóbico, fascista e desnaturado candidato do PSL. Mas até aí, como dizia o saudoso João Gilberto, “vaia de bêbado não vale”.    

Na sequência sobre a renúncia de Jânio Quadros — que comecei a publicar em meados de abril, mas não conclui devido à enxurrada de crises bolsonarianas —, relembrei que o dito cujo pediu o boné com a esperança de ser reconduzido ao cargo por aclamação popular e, empoderado, pintar e bordar sem interferência do Congresso. Além de mal sucedido, seu plano megalômano deu azo a uma aventura parlamentarista que durou 15 meses e pavimentou o caminho para o golpe de 1964 e os subsequentes 21 anos de ditadura militar.

Lembrei também o gradual processo de abertura política, a rejeição da emenda pró-diretas (Dante de Oliveira), a eleição indireta de Tancredo Neves e a morte inesperada e inoportuna daquele que levou consigo para o túmulo a esperança de milhões de brasileiros, e deixou-lhes de herança José Sarney, oligarca da política de cabresto nordestina e eterno donatário da Capitania do Maranhão. Discorri sobre a desditosa gestão desse macróbio (hoje com 90 anos e afastado da vida pública, embora ainda influente na política), que terminou com a inflação batendo às portas dos 2.000% ao ano. Na sequência, dediquei algumas linhas à eleição solteira de 1989, na qual os brasileiros voltaram a escolher seu presidente pelo voto direto (o que não acontecia desde 1960). E aqui abro um parêntese para algumas reflexões:

A eleição de 2018 foi, sob muitos aspectos, semelhante à de 1989. Em ambas houve mais de vinte postulantes à presidência; ambas foram decidias no segundo turno pelos dois candidatos diametralmente opostos no espectro político-ideológico; ambas foram vencidas pelo representante da direita, filiados, em ambas as ocasiões, a partidos nanicos e inexpressivos; ambos agitaram a bandeira da moralidade e posaram de inimigos figadais da corrupção e dos corruptos. Mas ambos eram populistas e farsantes (se me perdoam a redundância), e não demorou para que suas máscaras caíssem. 

O candidato do PT e seus satélites seria derrotado outras duas vezes antes de finalmente se eleger, mas sua ambição desmedida, seu ego gigantesco e seu espúrio projeto de se eternizar no poder foram sua perdição. O impeachment da gerentona de araque, que o imprestável escolheu para manter o trono aquecido até que ele próprio pudesse voltar a ocupá-lo pontofinalizou 13 anos, quatro meses e doze dias de roubalheira lulopetista. Mesmo condenado em dois processos, réu em pelo menos outros oito e inelegível até 2035, o demiurgo de Garanhuns se fez representar por um patético bonifrate no pleito do 2018. Mas deu no que deu. 

Voltando aos candidatos eleitos, o de 1989 foi denunciado por corrupção e renunciou horas antes de ser cassado (sua ideia era preservar ao menos os direitos políticos, mas o Congresso os caçou mesmo assim). O atual... bem, ele ainda é inquilino dos Palácio do Planalto e todos o conhecemos bem — e vamos conhecendo cada vez melhor, pois dia sim, outro também, surgem novidades nada abonadoras sobre essa alma perturbada. E assim fecho o parêntese.

No capítulo mais recente da série sobre a renúncia de Jânio, foquei o vice do impichado em 1992 — Itamar Franco —, que só escapou da liquidação quando finalmente promoveu o grão duque tucano FHC a ministro da Fazenda e primeiro-ministro informal, resignando-se a posar de presidente decorativo. Considerando que certas coisas tendem a se repetir de forma cíclica, Bolsonaro que se cuide: Rodrigo Maia vem acompanhado atentamente o esvoaçar dos urubus que rondam o Planalto, atraídos pelo cheiro da putrefação que emana do que não demora a se tornar os restos mortais deste governo.

Infelizmente, faltou-me tempo para tratar dos dois mandatos de FHC, das gestões de Lula e Dilma, do mandato-tampão (completado a duras penas) do vampiro do Jaburu e da ascensão (e possível queda iminente) do mau militar e parlamentar medíocre que ocupa atualmente o gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto, cujas ignomínias me impediram de concluir a sequência inacabada. Mas fá-lo-ei assim que der. Antes de encerrar, mais algumas linhas e outras tantas considerações.

Enquanto o STF exibe um leque de cartões amarelos a Bolsonaro, o incorrigível, o presidente da Câmara continua sentado sobre trinta e tantos pedidos de impeachment — a pretexto de o momento não ser oportuno; afinal, estamos em plena pandemia da Covid-19 e amargando uma crise econômica madrasta. Mas o capitão se aproveita da pusilanimidade dos outros poderes para tentar agigantar os próprios.

O ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação do delegado Alexander Ramagem para o comando da PF, o que provocou uma enxurrada de críticas do presidente ao Supremo e ao Congresso em manifestações subversivas de apoiadores, articuladas sabe Deus por quem. Vale lembrar que ao “desnomear” o delegado camarada o próprio Bolsonaro propiciou a perda de objeto da ação que o PDT apresentou e sobre a qual Moraes decidiu. No final da tarde da última segunda-feira, porém, sua insolência nomeou e empossou, na surdina e a toque de caixa, o delegado Rolando de Souza, braço direito de Ramagem.

O coordenador nacional do MBL, Rubens Alberto Gatti Nunes, entrou com ação popular junto à 8ª Vara Federal Cível do Distrito Federal pedindo a suspensão imediata da nomeação. Na ação, Nunes alega que o presidente escolheu “terceiro alinhado a seus interesses escusos, como ficou evidenciado em seu primeiro ato após empossado” — a troca no comando da PF do Rio, área de interesse de Bolsonaro e seus filhos — e classifica a manobra como uma 'patente burla' à decisão do ministro Alexandre de Moraes, que barrou a nomeação de Ramagem, de quem a Folhagem, digo, o delegado Rolando é pessoa de confiança, o que caracteriza intenção evidente de manter a influência do primeiro indicado, cuja nomeação foi anulada

Nunes pede ainda a suspensão imediata da nomeação de em caráter liminar e no mérito, além da declaração de nulidade do ato de nomeação do novo diretor-geral da PF, alegando que o 'perigo de dano é iminente' sob o argumento de que a nomeação de Rolando coloca em risco a continuidade de investigações em andamento, especificamente no caso dos filhos do Presidente da República, além de parlamentares investigados e mencionados pelo próprio Requerido em mensagem ao Ministro Moro.

Bolsonaro está preocupado com investigações, sobretudo o inquérito das fake news, que poderia atingir seus filhos e até mesmo servidores que atuam no chamado gabinete do ódio. Também lhe causam apreensão a investigação de fatos em tese delituosos envolvendo a organização de atos antidemocráticos e a apuração sobre as rachadinhas no antigo gabinete do filho Zero Um na Alerj.

"Indiscutivelmente a medida em comento (a nomeação de Rolando) apunhala não apenas os princípios da moralidade e legalidade, mas a moral de todo brasileiro o qual deposita a confiança e fé nas instituições públicas e as vê sendo vilipendiadas por interesses familiares em favor do "Rei", que se porta acima de tudo, acima do bem e do mal e imune às normas legais vigentes no país", alega o coordenador do MBL. A AGU se manifestou nos autos, pedindo a intimação da Procuradoria-Regional da União da 1ª Região para que seja apresentada manifestação prévia sobre o pedido de tutela antecipada.

Após ser empossado, Rolando convidou o superintendente do Rio, Carlos Henrique Oliveira, para assumir a direção-executiva da PF, o que o coloca como número dois do novo diretor. A promoção (que foi um "cair para cima", como se diz no jargão político) foi vista por delegados como uma forma 'estratégica' de trocar o comando da Polícia Federal fluminense. No pedido enviado a Justiça, Nunes aborda parte dos desdobramentos do pedido de demissão do ex-ministro Sérgio Moro

"O problema é que nas conversas com o presidente e isso ele me disse expressamente, que o problema não é só a troca do diretor-geral. Haveria intenção de trocar superintendentes, novamente o do Rio, outros provavelmente viriam em seguida, como o de Pernambuco, sem que fosse me apresentado uma razão para realizar esses tipos de substituições que fossem aceitáveis", disse o ex-ministro da Justiça, ao pedir demissão do cargo.

A superintendência no Rio foi pivô da primeira crise entre o Moro e o presidente ainda em 2019. A troca na chefia é um dos pontos centrais do inquérito sobre as acusações feitas pelo ex-ministro a Bolsonaro. Na última segunda-feira, como foi mencionado na postagem anterior, Aras solicitou ao decano do STF uma série de diligências no âmbito da investigação, incluindo a oitiva de delegados envolvidos na crise entre Moro e Bolsonaro no ano passado. Nos bastidores, Bolsonaro disse que não compraria mais uma briga com o Supremo depois que o ministro Alexandre viu “desvio de finalidade” naquela indicação. Volto a frisar que Moraes também investiga as manifestações subversivas organizadas por apoiadores de Bolsonaro e tem sob sua alçada o inquérito das fake news.

Na prática, uma tempestade perfeita se forma na direção de Bolsonaro. As nuvens trazem crise política misturada à turbulência econômica, além de uma grave pandemia de coronavírus no meio do caminho. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, afirmou Bolsonaro no último dia 28, ao responder a perguntas de repórteres sobre o fato de o Brasil ter ultrapassado a China em número de mortes pela Covid-19.

Desde que Moro deixou o governo, levantando suspeitas de que o presidente tinha (e pelo visto continua tendo) interesse em interferir politicamente na PF, tudo parece levar ao agravamento da sucessão de crises. Agora, o problema não é apenas “cortar o combustível do Posto Ipiranga”, como disse o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto em entrevista à Coluna Direto da Fonte, de Sonia Racy. O mais grave é que o próprio Bolsonaro, insuflado pela ala ideológica do governo, joga gasolina na crise. Apesar de desconfiar de tudo e de todos, espalhando até boatos para aliados, com o intuito de identificar quem “vaza” notícias no Planalto, o capitão é cego como uma toupeira quando se trata de enxergar tempestades de grandes proporções no horizonte. Mas sua visão é acurada como a de um falcão quando se trata de ver conspirações (reais ou imaginárias). “É muita trovoada para pouca chuva”, resumiu o presidente. Só que não.


Se a troca de Moro por André Mendonça no Ministério da Justiça foi bem recebida no Supremo, o mesmo não se deu com a substituição de Valeixo na PFBolsonaro já admitiu mais uma vez que sempre cobrou de Moro relatórios diários de inteligência, sob o argumento de que precisa de informações para administrar o País. Disse, ainda, que a Abin lhe repassava esses dados. “Não é justo um presidente viver numa situação dessas. Eu não quero saber de inquérito de ninguém. Não estou sendo investigado”, disse ele. Não estava, mas agora está. Na segunda-feira, 27, o ministro Celso de Mello autorizou abertura do inquérito, e no sábado passado Moro prestou depoimento durante mais de oito horas, além de fornecer seu celular para que sejam feitas cópias da troca de mensagem entre ele e o presidente e a deputada Carla Zambelli (para não espichar ainda mais esta postagem, veja trechos do conteúdo do depoimento do ex-ministro neste link).

Ao se dirigir a apoiadores que rezavam por ele (?!) na portaria do Palácio da Alvorada, na noite do último dia 28, Bolsonaro calibrou o discurso de campanha. “Eu sou uma das pessoas que mais apanham. Dói no coração”, reclamou. Antes de se despedir, pediu que os jornalistas se apressassem nas perguntas. “Se não a mulher me cobra aí. E eu vou dormir na casa do cachorro”, afirmou, rindo.

Uma coisa são os pecados e as virtudes do presidente Bolsonaro. Outra, muito diferente e que pode afetar diretamente os interesses dos cidadãos brasileiros, é o que vai realmente acontecer com sua presidência — algo que pode se resumir, no fundo, a uma pergunta só: ele fica ou ele sai? A primeira coisa é a mais debatida, claro, com paixão, som e fúria. Mas presidentes da República, segundo estabelece a lei, não saem do palácio por causa daquilo que fazem de mal, e nem ficam por causa do que fazem de bem. Saem ou ficam segundo a decisão específica que o Congresso tomar a esse respeito. Não vale a pena perder tempo olhando para outro lugar; se você perde a chave do carro no jardim, não vai encontrar nunca se for procurar no quintal. É ali, no plenário da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que tudo vai se resolver.

No mesmo dia em que o Brasil ultrapassou a China em número de mortos pela Covid-19, a Secretaria de Comunicação da Presidência postou mensagem sobre “números amplamente positivos” do combate à doença no Placar da Vida. Com um solavanco atrás do outro na República, ninguém se arrisca a prever as cenas do próximo capítulo.

Bolsonaro não será julgado pelo que dizem os analistas políticos, a sociedade civil ou o Tribunal Internacional de Haia; será julgado por 513 deputados e 81 senadores, no Congresso Nacional.

Com Correio Brasiliense e J.R. Guzzo