A condenação de Lula pelo juiz Sérgio Moro contribuiu para mudar, ainda que temporariamente, o foco dos holofotes, e a aprovação do texto base da reforma trabalhista deu algum fôlego ao governo, mas não é o caso de soltar rojões. E já que falamos no petralha mor, vejam mais um escárnio, mais um tapa na cara da sociedade de bem: O deputado petista Vicente Cândido pariu uma excrescência que já vem sendo chamada de "Emenda Lula". A proposta, feita sob medida para favorecer o molusco abjeto, visa aumentar de 15 dias para oito meses o período anterior às eleições em que presumíveis candidatos só podem ser presos em flagrante delito. Mas é possível que essa questão nem chegue a ser debatida na Câmara, até porque foi colocada pelo relator da proposta de reforma política sem ter sequer o consenso de seus colegas de bancada, e vem sendo repudiada pela maioria dos parlamentares.
Pela proposta esdrúxula, os postulantes apresentariam à Justiça Eleitoral uma declaração de que serão candidatos nas eleições de Outubro, e a partir daí ficariam imunes à prisão. Segundo Merval Pereira, essa patacoada evitaria apenas uma eventual prisão de Lula, e não sua inelegibilidade, sem mencionar que poderia ser alvo de contestação no Supremo, pois os autodeclarados candidatos deixariam de ser cidadãos iguais aos demais, o que contraria a Constituição. Em última análise, bastaria que um bandido, mesmo que não fosse parlamentar, se apresentasse como possível candidato para estar livre da prisão por oito meses, abrindo uma nova modalidade de ilegalidade aos partidos políticos: a venda de vagas para a imunidade.
Mais uma vez, as propostas de mudança nas regras eleitorais estão sendo utilizadas para resolver interesses pontuais. Quem observa os deputados federais tem a clara impressão de que “a ficha ainda não caiu”. A despeito de o atual sistema ter-se esgotado, arrastado para a vala dos escândalos de corrupção, ainda há parlamentares apegados, que não conseguem pensar em outra maneira de fazer campanha, de se relacionar com o poder Executivo ou mesmo de manter o padrão de vida conquistado nos últimos anos.
(*) Para encerrar, o poema Mosca Azul, de Machado de Assis:
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"
Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.