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domingo, 11 de outubro de 2020

A RENÚNCIA DE JÂNIO, SUAS CONSEQUÊNCIAS E OUTRAS CURIOSIDADES — FINAL



Há inúmeras teorias sobre a renúncia de Jânio, mas parece ser consenso que o ex-presidente apostava em fortes manifestações, com o povo clamando nas ruas por seu retorno ao poder. Não à toa, ele apresentou sua carta-renúncia e voou para São Paulo (levando a faixa presidencial), onde permaneceu durante horas, aparentemente esperando uma reação de apoio que não aconteceu — fala-se que um arranjo urdido nos bastidores teria impedido que a população soubesse onde ele estaria quando a notícia da renúncia fosse divulgada.

Aceita a renúncia, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente a chefia do Executivo — já que os militares vetaram a ascensão do vice, João Goulart, devido a sua fama de “comunista”. Mazzilli foi apenas uma figura decorativa, já que os três ministros militares do governo Jânio formaram uma junta provisória e presidir o Brasil até a adoção do regime parlamentarista, que foi implementado duas semanas depois e reduziu os poderes presidenciais, levando os militares a permitir que Jango assumisse a presidência.

Curiosidades: 1) O primeiro Primeiro-Ministro do parlamentarismo tupiniquim foi o político mineiro Tancredo de Almeida Neves, que dali a 24 anos, seria eleito o primeiro presidente civil pós-ditadura militar. 2) No ano seguinte a sua renúncia, Jânio disputou novamente o governo de São Paulo, mas foi derrotado por seu velho desafeto Ademar de Barros.

A experiência parlamentarista foi revogada por um plebiscito em 6 de janeiro de 1963. Duas semanas depois, Jango assumiu a presidência — que era sua por direito desde a renúncia de Jânio —, mas foi deposto pelo golpe de 1964, que deu início à ditadura militar que só terminaria em janeiro de 1985, durante o governo do general João Figueiredo, com a vitória de Tancredo Neves (MDB) sobre Paulo Maluf (ARENA) por 480 a 180 votos de um colégio eleitoral composto de senadores, deputados federais e membros das assembleias legislativas estaduais.
 
Observação: Segundo a versão oficial, uma diverticulite obrigou Tancredo a ser submetido a uma cirurgia de emergência 12 horas antes da cerimônia de posse. Também oficialmente, o mineiro foi declarado morto 38 dias e sete cirurgias depois — por uma ironia do destino, no feriado de Tiradentes, o “mártir da independência”. Figueiredo se recusou a passar a faixa ao vice, José Sarney, de quem se tornara inimigo desde que o ex-presidente da ARENA e representante do regime militar no Congresso deixara o partido governista e se juntara à oposição. “Faixa a gente transfere para presidente. Não para vice, esse é um impostor”, dizia Figueiredo, que deixou o Planalto assim que a votação no Congresso foi encerrada. Por outro lado, a mágoa que o último presidente da ditadura militar guardava do político maranhense era bem menor que a resistência da caserna a Ulysses Guimarães.  

Com a eclosão da ditadura, Jânio teve os direitos políticos cassados e só tornou disputar uma eleição em 1985, quando derrotou o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Eduardo Matarazzo Suplicy e se elegeu prefeito de São Paulo. Sua vitória surpreendeu a todos, inclusivo os institutos de pesquisa, tanto que o pomposo grão duque tucano se deixou fotografar aboletado na cadeira de prefeito, o que levou Jânio a desinfetá-la ao tomar posse, dizendo: "Estou desinfetando a poltrona porque nádegas indevidas a usaram".

Em sua derradeira empreitada político-administrativa, Jânio repetiu seus lances populistas habituais: pendurou uma chuteira em seu gabinete (para ilustrar o suposto desinteresse em prosseguir na política), proibiu jogos de sunga e de biquínis fio-dental no Parque do Ibirapuera, forçou a demissão de alunos homossexuais da Escola de Balé do Teatro Municipal, aplicou multas de trânsito pessoalmente e fechou os oito cinemas que exibiriam no ano seguinte (após o término de seu mandato, portanto) o filme A Última Tentação de Cristo, por considerá-lo desrespeitoso à fé cristã.

Ao mesmo tempo em que criava factoides midiáticos estapafúrdios, o ex-presidente investiu na iluminação e pavimentação de centenas de quilômetros de vias públicas, criou a Guarda Civil Metropolitana, abriu os túneis da Avenida Juscelino Kubitschek, inaugurou o Corredor Santo Amaro, reformou o Vale do Anhangabaú, restaurou bibliotecas públicas e teatros (entre eles o Teatro Municipal) e concebeu pessoalmente um sistema viário de múltiplos túneis que conectavam avenidas vitais de São Paulo — obras caríssimas e complexas que foram interrompidas por sua imprestável sucessora, mas retomadas e concluídas pelo alcaide seguinte. Nesse meio tempo, ele se licenciou diversas vezes para cuidar tanto de sua saúde quanto da de sua mulher, Eloá Quadros (falecida em 1990). 

Jânio terminou sua derradeira gestão com apenas 30% de aprovação e apoiou a candidatura de João Leiva (em detrimento de João Mellão Netto e Marco Antonio Mastrobuono, que integraram seu secretariado). Mas quem venceu o pleito foi a petista paraibana Luíza Erundina (que, juntamente com Celso Pitta e Fernando Haddad, compõe o trio dos piores alcaides da história de São Paulo). Visivelmente abalado com a vitória do PT, o prefeito em final de mandato viajou para Londres (a pretexto de passar as festas de final de ano na cidade que tanto admirava), deixado a cargo do secretário Claudio Lembo a incumbência de representá-lo na cerimônia de posse da petista.

Foi também devido à saúde debilitada que Jânio declinou do convite do PDS para disputar a presidência em 1989 e anunciou sua aposentadoria definitiva da política. Após a morte de dona Eloá, passou o tempo de vida que lhe restava entre casas de repouso e quartos de hospitais, e três derrames cerebrais mantiveram-no em estado vegetativo durante meses; Em 16 de fevereiro de 1992, ele finalmente passou desta para melhor, deixando de herança cerca de 70 imóveis — sua única filha, Dirce “Tutu” Quadros, chegou a denunciá-lo por corrupção, e ela parecia saber das coisas: durante a Operação Castelo de Areia, a PF revelou que Jânio tinha US$ 20 milhões depositados na Suíça em uma conta secreta.

Agora a cereja do bolo: Em agosto de 1991, exatos 30 anos após sua renúncia, sabendo que não lhe restava muito tempo de vida, o ex-presidente confidenciou ao neto os verdadeiros motivos de sua renúncia, e Jânio Quadros Neto os revelou em entrevista concedida ao Fantástico em 1999. 

Como quem acompanhou atentamente esta sequência deve ter concluído, a renúncia foi uma tentativa de golpe com o propósito de reassumir ungido pelo povo e, portanto, com mais poderes, mas as palavras que Jânio usou para explicá-la ao neto (depois de definir a presidência como “a suprema ironia, pois por um lado era um inferno, mas por outro era melhor que um orgasmo”) foram as seguintes:

“A minha renúncia era pra ter sido uma articulação. Eu nunca imaginei que seria de fato aceita. Tudo foi muito bem planejado, organizado. Eu mandei o vice-presidente [Jango] em uma visita oficial à China, o lugar mais longe possível. Assim ele não estaria no Brasil para assumir no meu lugar ou fazer articulações políticas.

Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência e pensei que os militares, os governadores e principalmente o povo jamais aceitariam minha renúncia. Pensei que iriam exigir que eu ficasse no poder, porque Jango era inaceitável para a elite. Achei também que era impossível que ele assumisse porque todos iriam implorar para que eu ficasse.

Renunciei no Dia do Soldado porque queria sensibilizar os militares, conseguir o apoio deles. Imaginei que o povo iria às ruas seguido pelos militares. Os dois me chamariam de volta. Achei que voltaria para Brasília com glória.

Ao renunciar, eu pedi um voto de segurança a minha permanência no poder, porque isso é feito frequentemente pelos primeiros ministros lá na Inglaterra. E fui reprovado. Deu tudo errado.

A renúncia foi uma estratégia política que não deu certo e também foi o maior fracasso político da história republicana do país, o maior erro que cometi. E o país pagou um preço muito alto."

domingo, 4 de outubro de 2020

AINDA A NOVELA SOBRE A RENÚNCIA DE JÂNIO, SUAS CONSEQUÊNCIAS E OUTRAS CURIOSIDADES — PENÚLTIMA PARTE




Jânio Quadros, mato-grossense de nascimento, cresceu em Curitiba (PR), formou-se em Direito pela USP (Faculdade do Largo de São Francisco) e, antes de ingressar na política, em 1947, quando se elegeu suplente de vereador pelo Partido Democrata Cristão, lecionou português e geografia em colégios tradicionais de São Paulo e direito processual penal na Faculdade Presbiteriana Mackenzie. Com a cassação dos mandatos de parlamentares do partido comunista (PCB), passou a titular e exerceu o cargo até 1950, quando conquistou uma cadeira na Câmara Federal. 

Na sequência, foi prefeito de São Paulo e governador do Estado. Em 1958, concorreu a deputado federal pelo Paraná evenceu, mas viajou para o exterior e não participou de uma única sessão no Congresso. Ao retornar, disputou a presidência de República e obteve 48,26% dos votos, derrotando Henrique Lott (32,94%) e Adhemar de Barros (18,79%). João Goulart, do PTB, foi reeleito vice-presidente (note que a Constituição de 1946, vigente àquela época, não exigia a formação de uma chapa com candidatos a presidente e vice do mesmo partido, e cada qual era eleito em uma votação separada).

Jânio foi empossado Presidente em 31 de janeiro de 1961 e renunciou sete meses depois, em 25 de agosto. Durante seu breve mandato, como bom populista que era, manteve-se em evidência criando factoides (qualquer semelhança com Bolsonaro não é mera coincidência). Proibiu o uso do maiô e do biquíni em concursos de Miss e do lança-perfume nos bailes de carnaval, a exibição de anúncios nos intervalos das sessões de cinema e as rinhas de galo em todo o território nacional, e foi à televisão exibir os grossos calhamaços que eram as edições de domingo dos jornais Estado de São Paulo e Jornal do Brasil — a pretexto de travar uma cruzada contra o desperdício de papel, que à época era importado. Determinou ao Estado-maior do Exército que estudasse um plano de invasão das Guianas, enviou o vice-presidente à China, em missão extraordinária, e um grupo comandado pelo jornalista João Dantas, diretor do Diário de Notícias, à área socialista. Como se não bastasse, condecorou o líder da revolução cubana Che Guevara com a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul

Nada disso agradou aos parlamentares — é bom lembrar que, a exemplo de Collor, nos anos 1990, e de Dilma, no início da década atual (e, por que não dizer, de Jair Bolsonaro, pelo menos até se agarrar ao Centrão para não ser expelido do cargo), Jânio nunca contou com o apoio do Congresso. Carlos Lacerda, então governador do estado da Guanabara, percebeu que Jânio fugia ao controle das lideranças da UDN e se colocou como porta-voz da campanha contra o presidente. 

Não tendo como acusar Jânio por corrupção — tática que havia usado contra seus dois antecessores — Lacerda, em discurso feito em 24 de agosto de 1961 e transmitido em cadeia nacional de rádio e televisão, denunciou uma suposta trama palaciana e acusou o ministro da Justiça de tê-lo convidado a participar de um golpe de estado para fechar o Congresso. No dia seguinte depois de receber uma reprimenda dos três ministros militares durante as comemorações do Dia do Soldado, Jânio apresentou sua carta-renúncia — cujo teor eu reproduzo a seguir:

"Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação, que pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito o seu generoso povo.
"Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou de indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração.
"Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz pública.
"Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para a grande família do Brasil, esta página da minha vida e da vida nacional. A mim não falta a coragem da renúncia.
"Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é aos companheiros que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade. O apelo é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios, para todos e de todos para cada um.
"Somente assim seremos dignos deste país e do mundo. Somente assim seremos dignos de nossa herança e da nossa predestinação cristã. Retorno agora ao meu trabalho de advogado e professor. Trabalharemos todos. Há muitas formas de servir nossa pátria."
Brasília, 25 de agosto de 1961.
Jânio Quadros"

Em edição extraordinária, o Repórter Esso — que era ouvido por nove entre dez brasileiros, naquela época — atribuiu a renúncia a "forças ocultas". Jânio jamais disse isso com todas as letras, mas essa versão entrou para a história e deixava o ex-presidente muito irritado quando era perguntado sobre ela. Certa vez, durante um almoço em casa de amigos, questionado por uma convidada, Jânio respondeu: “Renunciei porque a comida no Palácio da Alvorada era uma droga como é aqui, e a companhia era quase tão ruim quanto a companhia daqui”. E foi-se embora sem sequer se despedir do anfitrião.

Outra resposta atravessada que Jânio teria dado sobre a renúncia é a famosa "Fi-lo porque qui-lo", mas isso não passa de lenda urbana. Na verdade, a frase teria sido dita numa reunião com os governadores, quando o então presidente anunciou algumas reformas educacionais que pegaram de surpresa seu ministro da Educação. Após o almoço, o ministro perguntou a Jânio por que tomara as tais medias sem avisá-lo com antecedência, e a resposta foi: “Fi-lo porque estou convencido de que é a melhor solução; fi-lo porque esta nação tem pressa e fi-lo porque sou presidente. Como vê, senhor Ministro, fi-lo porque qui-lo.”

Continua...

terça-feira, 11 de agosto de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — NONA PARTE

A título de contextualização, sugiro reler os dois capítulos anteriores desta sequência, começando por este e seguindo por este. Dito isso, vamos adiante.

Nos dias que sucederam ao golpe de 1964, uma violenta repressão atingiu os setores politicamente de esquerda. Centenas de Inquéritos Policiais-Militares para apurar atividades consideradas subversivas foram instaurados, e milhares de pessoas foram presas e torturadas. Parlamentares foram cassados, cidadãos tiveram seus direitos políticos suspensos e funcionários públicos civis e militares foram demitidos ou aposentados. 

Por outro lado, grande parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais e vários governadores de estados (como Carlos Lacerda, da Guanabara, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Ademar de Barros, de São Paulo) festejaram a intervenção militar, que diversos setores de classe média pediam e estimulavam, talvez achando que essa seria a única maneira de pôr fim à ameaça de esquerdização do governo e de controlar a crise econômica. Mas o que era para ser transitório e durar poucos meses tornou-se provisoriamente (ou quase isso). Os fardados não eram imundes à picada da mosca azul, e cinco generais se revezaram no poder ao longo dos 21 anos seguintes.

Sem imaginar o que vinha pela frente, Jânio concorreu ao governo de São Paulo nas eleições de 1962, mas foi derrotado por Adhemar de Barros. Em 1964, com a tomada do poder pelos generais, teve os direitos políticos cassados e, embora os tenha recuperado graças à lei nº 6.683 (que ficou conhecida como Lei da Anistia), somente voltou a disputar uma eleição em 1982 (para governador de São Paulo), na qual foi derrotado por André Franco Montoro, seu antigo correligionário no PDC

Três anos depois, com o apoio de empresários, entidades conservadoras (como a TFP e Opus Dei) e políticos influentes, como Paulo Salim Maluf e Antonio Delfim NettoJânio se elegeu novamente prefeito de São Paulo, derrotando o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Eduardo Matarazzo Suplicy.

ObservaçãoFHC, franco-favorito nas pesquisas, deixou-se fotografar sentado na cadeira de prefeito — a foto foi publicada pela Revista Veja —, que Jânio desinfetou no dia da posse, declarando: "Estou desinfetando a poltrona porque nádegas indevidas a usaram".

Em sua última empreitada político-administrativa, o velho manguaceiro repetiu os lances populistas de sempre: pendurou um par de chuteiras no gabinete (para ilustrar o suposto desinteresse em prosseguir na pública), proibiu o uso de sunga e biquínis fio-dental no Parque do Ibirapuera (onde ficava a sede da prefeitura), mandou publicar no Diário Oficial do Município os célebres bilhetinhos que enviava a seus assessores, obrigou a direção da Escola de Balé do Teatro Municipal a expulsar alunos tidos como homossexuais, aplicou multas de trânsito pessoalmente, posou para a imprensa com a camisa do Corinthians e fechou os oito cinemas que exibiriam A Última Tentação de Cristo (filme de Martin Scorsese), embora o longa só fosse entrar em cartaz após o término de seu mandato.

Nas eleições municipais de 1988, a despeito de os candidatos João Mellão Neto (PL) e Marco Antônio Mastrobuono (PTB) terem integrado seu secretariado, Jânio apoiou o peemedebista João Oswaldo Leiva (lançado pelo então governador Orestes Quércia). Por uma ironia do destino, quem venceu o pleito foi a calamidade petista Luíza Erundina de Souza (provando para além de qualquer dúvida razoável que São Paulo é a maior capital nordestina do país), amparada quase que exclusivamente por uma plataforma de esquerda antijanista. Para não pagar o mico de transferir o cargo para a musa de Uiraúna, Jânio encarregou seu Secretário de Assuntos Jurídicos de representá-lo na cerimônia e escafedeu-se para sua amada Londres, onde passou as festas de final de ano.

A saúde fragilizada levou Jânio a desistir de concorrer à presidência em 1989 — ironicamente, na primeira eleição direta desde aquela que ele próprio venceu em 1960 — e apoiou Fernando Collor, que derrotou o imprestável retirante nordestino que disputaria outros três pleitos presidenciais até finalmente ser eleito (em 2002). Depois da vitória de Collor, o velho tutumumbuca reuniu a imprensa para anunciar sua aposentadoria definitiva da política — com a morte da mulher, em 1990, seu já precário estado de saúde se agravou ainda mais. 

A partir de então, Jânio passou o resto de seus dias em casas de repouso e quartos de hospitais. Em fevereiro de 1992, ele bateu a cacholeta no Hospital Israelita Albert Einstein, onde vegetava após ter sofrido três derrames cerebrais. Seis meses antes, nesse mesmo quarto, ele havia confidenciado a Jânio Quadros Neto sua versão da renúncia (sobre a qual falaremos oportunamente).

Convém frisar que a célebre frase “fi-lo porque qui-lo” (ou “fi-lo porque o quis”, que seria a forma mais correta) não foi uma resposta a um jornalista que teria questionado o ex-presidente sobre a renúncia. Na verdade, Jânio a proferiu quando ainda ocupava o Palácio do Planalto, durante uma reunião com governadores e outras autoridades (como veremos numa próxima postagem). Ressalte-se que ele nunca disse que renunciou movido por “forças ocultas” ou “misteriosas”; essa expressão lhe foi atribuída pelo Repórter Esso.

Entre um sem-número de tiradas tão sarcásticas quanto ácidas do velho político, cito as seguintes:

O senhor sabe quem foi Benjamin Franklin? Pois bem! Ele ensinou que "intimidade pode gerar duas coisas: filhos e/ou aborrecimentos". Como eu não pretendo ter com o senhor nem uma coisa nem outra, exijo respeito (ao passar uma descompostura num jovem que se dirigiu a ele de forma desrespeitosa, tipo “ó Jânio!”, como se fossem íntimos).

— Os servidores públicos são mulher de César (a quem não basta ser honesto, é preciso parecer honesto).

— Aprendi no berço com minha mãe, que não há homem meio honesto e meio desonesto. Ou são inteiramente honestos ou não o são (frase autoexplicativa). 

Não vivo do governo: morro nele, na sobrecarga terrível das responsabilidades e das angústias (idem).

O PMDB é uma arca de Noé, sem Noé e sem a arca (idem).

Conta o professor Deonísio da Silva que Jânio, então candidato a governador de São Paulo, enfrentou em Ribeirão Preto uma autêntica armadilha que lhe fora preparada por seu notório adversário, Adhemar de Barros. Também candidato, Adhemar paga um repórter para que vá à entrevista coletiva de Jânio e lhe faça uma única pergunta.

— O senhor sabe que a família interiorana é moralista e conservadora. Gostaria de lhe perguntar: por que o senhor bebe?

A resposta veio bem ao estilo de Jânio:

— Bebo porque é líquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia.

O flagrante revela um cuidado específico que Jânio tinha na colocação dos pronomes, um drama para jejunos em português. ‘Comê-lo-ia’ equivale a ‘o comeria’. A síntese, desjeitosa para a fala, que prefere ‘comeria ele’, soa pernóstica. Não em Jânio apenas, aliás.

Em outra ocasião, o humorista Leon Eliachar lhe pergunta:

— Se eleito, colocará os pronomes nos seus devidos lugares?

Sua resposta:

— Os pronomes não aguardam a minha eleição para que se coloquem nos seus lugares. Estão sempre neles. A boêmia dos verbos é que mutila a boa ordem das frases. Há que lhes perdoar. Não se desgrudam da ideia de movimento. (Atualmente, é mais usual boemia, sem acento).

E provocando o candidato, Leon alude a famoso comercial:

— Só ESSO dá ao seu carro o máximo?

Jânio:

— Não entendi a pergunta. Pressinto-a sutil como o próprio interpelante. Resta-me, pois, neste instante de perplexidade, o recurso à passagem de volta: só isso dá ao seu cargo o máximo?

Eliachar faz a última pergunta:

— O oval da ESSO é oval ou aval?

Jânio tira de letra:

— Sugiro-lhe, amistosamente, uma consulta a qualquer psicanalista. O Brasil é tão mencionado no seu questionário, quanto a ESSO.

Nélson Valente, autor do livro Luz… Câmera… Jânio Quadros em Ação (o avesso da comunicação), de onde foram extraídos os trechos aqui citados, conclui piedosamente: “Ele podia dormir sem essa”.

Amanhã a gente continua...

quinta-feira, 16 de julho de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — SÉTIMO CAPÍTULO


Jânio Quadros sucedeu a Juscelino Kubitschek de Oliveira e governou o Brasil durante 6 meses e 25 dias. Sua eleição, posse e renúncia foram alvo das postagens de 15 e 16 de abril e voltarão a sê-lo nos capítulos finais daquela sequência. Considerando a importância que sua renúncia teve para a história tupiniquim, sobretudo por pavimentar o caminho para o golpe de 1964 e os 21 anos de ditadura militar que o sucederam, o pé-de-cana matogrossense merece mais algumas linhas — após as quais trataremos dos demais inquilinos dos palácios do Itamaraty, do Catete e do Planalto cujos contratos de locação tiveram suas rescisões antecipadas.

Jânio da Silva Quadros nasceu em Campo Grande (MS), mudou-se ainda criança para Curitiba (PR) e de lá para São Paulo (SP), onde cursou Direito e lecionou Geografia, Português e Direito Processual Penal até ingressar na vida pública em 1947, como suplente de vereador. Na sequência, exerceu mandatos de deputado estadual (de 1951 a 1953), prefeito de São Paulo (de 1953 a 1955), governador do estado (de 1955 a 1959) e deputado estadual pelo Paraná (de 1959 a 1961), até se eleger presidente da República em 3 de outubro de 1960 e tomar posse em 31 de janeiro de 1961, tornando-se o primeiro chefe do Executivo tupiniquim a ocupar o Palácio do Planalto (no então recém-inaugurado Distrito Federal).

Observação: A primeira capital do Brasil foi a cidade de Salvador, na Bahia, que sediou o governo federal por 214 anos. Em 1753, a sede do governo federal foi transferida para a cidade do Rio de Janeiro, no estado da Guanabara (hoje Rio de Janeiro), e de lá para Brasília que foi construída no meio do planalto central pelo presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira.

A gestão de Jânio foi breve, mas conturbada. Para além de sua maneira heterodoxa de governar —  substituindo por folclóricos bilhetinhos manuscritos os protocolares ofícios — e da manifesta obsessão por questiúnculas polêmicas, mas midiáticas — ele proibiu as rinhas de galo, o uso do lança-perfume no carnaval e do biquíni em praias e piscinas, além da exibição de comerciais nos intervalos das sessões de cinema e outras asnices de deixar Bolsonaro roxo de inveja. 

Na noite de 24 de agosto de 1960, Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, alardeou em rede nacional de TV um suposto autogolpe que Jânio estaria tramando para fechar o Congresso. No dia seguinte, depois de ser duramente repreendido pelos ministros militares durante as comemorações do Dia do Soldado, o presidente datilografou sua carta renúncia (cuja integra transcrevo a seguir) e viajou para São Paulo, levando consigo a faixa presidencial que, por óbvio, já não lhe pertencia, mas que, também por óbvio, sinalizava sua esperança de ser reconduzido ao cargo por aclamação popular. Só que não foi bem isso que aconteceu.

"Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação, que pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito o seu generoso povo.
"Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou de indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração.
"Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz pública.
"Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para a grande família do Brasil, esta página da minha vida e da vida nacional. A mim não falta a coragem da renúncia.
"Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é aos companheiros que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade. O apelo é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios, para todos e de todos para cada um.
"Somente assim seremos dignos deste país e do mundo. Somente assim seremos dignos de nossa herança e da nossa predestinação cristã. Retorno agora ao meu trabalho de advogado e professor. Trabalharemos todos. Há muitas formas de servir nossa pátria."
Brasília, 25 de agosto de 1961.

Continua no próximo capítulo.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — QUINTA PARTE



Com o golpe de 1964, o AI-1 e Castello Branco no Planalto, iniciou-se a ditadura militar que só terminaria com a eleição indireta de Tancredo Neves (que foi hospitalizado horas antes da cerimônia de posse e declarado morto 38 dias e 7 cirurgias depois) e a posse do "coroné" José Sarney (a quem o general Figueiredo se recusou a transferir a faixa presidencial). Os 21 anos sob o comando dos fardados dividiram-se em três fase distintas: 1) O Disfarce Legalista para a ditadura (1964-1968), os Anos de Terror de Estado (1969-1978) e a Reabertura Política (1979-1985).

Vale destacar que o mundo vivia um clima de animosidade política devido à Guerra Fria, e que os EUA contribuíram sobremaneira para a deposição de Jango (tido e havido como comunista) e o término do curto período democrático (de 1946 a 1964) que o Brasil viveu com o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas. Com a consolidação do golpe e a assunção do governo provisório, o presidente deposto se exilou no Uruguai. Sob a égide dos fardados, intensificam-se as perseguições políticas, a censura, as torturas e o desaparecimento de uma miríade de pessoas — assassinadas a mando dos milicos. 

O Ato Institucional nº 5, decretado em dezembro de 1968, deu início aos chamados "anos de chumbo" — período mais repressivo da ditadura militar, que se estendeu até o final do governo Médici, em março de 1974, durante o qual era comum jornalistas serem demitidos por criticarem o governo (alguns, como Vladimir Herzog, foram covardemente assassinados).

Observação: Limitados pela Constituição de 1946, os militares precisavam de instrumentos legais para aplicação de suas ações políticas, e assim surgiram os Atos Institucionais, que "pairavam" acima da própria Constituição. Entre os anos de 1964 e 1969, foram decretados nada menos que 17 atos institucionais. O AI-2 instituiu a eleição indireta para presidente e o AI-4 convocou o Congresso para a construção de uma nova Constituição, afinada com os ideais dos militares no poder, mas foi o AI-5 que conferiu ao presidente de turno o poder de suspender direitos políticos, cassar mandatos, fechar o Congresso, e por aí afora. Não à toa, o AI-5 foi considerado um “golpe dentro do golpe”, já que foi gestado e parido por segmentos específicos dentro das FFAA.

Uma parcela substantiva da imprensa apoiou o golpe de 1964, mas esse apoio foi se desvanecendo à medida em que o regime foi endurecendo. A Constituição de 1967, promulgada às vésperas da decretação do AI-5, instituiu o Ministério Público — o que poderia ser considerado um avanço não fosse o fato de o órgão ser subordinado ao Executivo Federal. Já a Constituição Cidadã, de 1988, mudou essa história, mas a dupla Bolsonaro/Aras reverteu-a ao status quo ante, ainda que de modo informal.

Durante a "longa noite de 21 anos" (de 1964 a 1985), governaram o Brasil cinco presidentes-generais. Humberto de Alencar Castello Branco, "eleito" no dia 11 de abril de 1965 e empossado no dia 15; Costa e Silva, que governou de 1967 a 1969; Médici, de 1969 a 1974; Geisel, de 1974 a 1979; e Figueiredo, de 1979 a 1985. Por ocasião da cassação de Jango, em 2 de abril de 1964, Ranieri Mazzilli foi reconduzido ao cargo, mas sua segunda passagem pela presidência durou míseros 13 dias.

Em 31 de agosto de 1969, Costa e Silva se afastou da presidência devido a uma trombose, mas os ministros militares impediram a posse do vice, Pedro Aleixo, que havia se posicionado contra a edição do AI-5 e elaborado uma revisão da Constituição de 1967 — seu mandato foi extinto pelo AI-16, decretado em 14 de outubro de 1969.

O descontentamento com a ditadura se intensificou em meados dos anos 1970, quando começaram a pipocar os primeiros movimentos pelo fim do regime de exceção (cito as greves operárias no ABC Paulista, de 1978 a 1980, e o movimento das Diretas Já, em 1983). Coube a Geisel dar início ao processo de reabertura política lenta, gradual e segura, que se consumou com a eleição indireta de Tancredo, em 1985, e a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988.

Como o lobo, que perde o pelo mas não larga o vício, Jânio se candidatou ao governo de São Paulo no ano seguinte ao da sua renúncia, mas foi derrotado por Adhemar de Barros e teve seus direitos políticos cassados pela ditadura militar. Em 1978, já apto a disputar eleições, o ex-presidente manifestou a intenção de concorrer à sucessão de Paulo Maluf — gatuno de marca maior, que passou uma temporada na Papuda, mas foi despachado para casa graças ao bom coração do ministro Dias Toffoli — ao governo de São Paulo.

Jânio se filiou ao PTB, que deixou 7 meses depois, para ingressar no PMDB. Como sua filiação foi recusada pela executiva nacional da sigla, ele votou ao PTB e tornou a disputar o governo de São Paulo em 1982, quando foi derrotado por André Franco Montoro. Com o fim da ditadura, o manguaceiro declarou apoio a Tancredo Neves e venceu Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy na disputa pela prefeitura de Sampa, contrariando os prognósticos dos institutos de pesquisa. FHC, na condição de primeiro colocado nas sondagens, chegou a tirar uma foto sentado na cadeira de prefeito (que foi publicada pela Revista Veja). Na cerimônia de posse, Jânio fez questão de ser fotografado com um tubo de inseticida nas mãos para, segundo ele, desinfetar a poltrona porque nádegas indevidas a usaram".

Em sua derradeira empreitada político-administrativa, Jânio repetiu seus lances populistas habituais: pendurou uma chuteira em seu gabinete (para ilustrar o suposto desinteresse em prosseguir na política), proibiu o uso de sunga e de biquini fio-dental no Parque do Ibirapuera (onde ficava a sede da prefeitura), obrigou a direção da Escola de Balé do Teatro Municipal a expulsar alunos tidos como homossexuais, mandou publicar no Diário Oficial do Município os “bilhetinhos” que enviava a seus assessores, aplicou multas de trânsito pessoalmente, posou para a imprensa com a camisa do Corinthians e fechou os oito cinemas que iriam exibir o filme A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, por considerar a obra desrespeitosa à fé cristã.

Jânio adotou posturas autoritárias em diversas situações. Seu governo foi marcado por insatisfações de vários setores do funcionalismo público, materializadas através de greves e protestos nas proximidades de seu gabinete, aos quais quase sempre respondia com demissões em massa. Também se mostrou inflexível diante de manifestações de movimentos sociais (como o MST). Por outro lado, ele criou a Guarda Civil Metropolitana — para reforçar o policiamento na cidade, embora seus adversários o acusassem de utilizá-la como mais um de seus instrumentos de repressão.

Jânio se afastou diversas vezes do cargo para cuidar tanto da própria saúde quanto da saúde da mulher, Dona Eloá (falecida em 1990). Ao fim de sua gestão, quando já se encontrava desgastado perante a opinião pública (apenas 30% dos paulistanos aprovaram sua administração), foi acusado pelo então vereador Walter Feldmann de manter uma conta bancária na Suíça. Nas eleições de 1988, apoiou João Leiva, embora Mellão Neto e Mastrobuono, integrantes de seu secretariado, disputassem a sucessão. Dada a vitória da então petista Luíza Erundina, ele deixou o cargo dias antes do final do mandato para passar o réveillon em Londres (cidade pela qual era apaixonado), mas não sem antes incumbir seu Secretário dos Negócios Jurídicos, Cláudio Lembo, de transferir o bastão para a maior calamidade travestida de alcaide paulistano que esta cidade já viu (noves fora Fernando Haddad).

Com a saúde debilitada — em parte devido à manguaça, da qual era fã incondicional —, Jânio declinou do convite do PSD para disputar a presidência da República em 1989, preferindo apoiar o pseudo caçador de marajás — um populista como ele, como viríamos a descobrir mais adiante, da pior forma possível. Naquele mesmo ano, Jânio anunciou sua aposentadoria definitiva da política. A morte de Dona Eloá, no ano seguinte, contribuiu para agravar ainda mais seu estado de saúde do velhote, que passou os últimos meses de vida entre casas de repouso e quartos de hospitais e acabou falecendo no Hospital Israelita Albert Einstein, em 16 de fevereiro de 1992, em estado vegetativo decorrente de três derrames cerebrais.

Jânio deixou de herança para a filha cerca de 70 imóveis. Ironicamente, Dirce “Tutu” Quadros chegou o pai por corrupção — e ela parecia saber das coisas: durante a Operação Castelo de Areia, a PF revelou que Jânio tinha US$ 20 milhões em uma conta secreta na Suíça. Em agosto de 1991, exatos 30 anos após abrir mão da Presidência, Jânio confidenciou ao neto (no mesmo leito do hospital onde viria a falecer dali a menos de 6 meses) os verdadeiros motivos de sua renúncia — não sem antes definir a presidência como “a suprema ironia, pois por um lado era um inferno, mas por outro era melhor que um orgasmo”). Em entrevista concedida ao Fantástico em 1999, Jânio Quadros Neto revelou o "segredo de Polichinelo". 

Continua...

terça-feira, 2 de abril de 2024

60º ANIVERSÁRIO DO GOLPE DE `64

 

O golpe de Estado que prefaciou a ditadura militar — aquela que Bolsonaro sempre negou, mas tentou ressuscitar em 2022, e que seu vice classificou de "ditamole" — completou 60 anos no último domingo. O senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República em 1º de abril de 1964, mas episódio entrou para a História com data anterior para evitar associações jocosas com o "dia da mentira". 

Resumindo a ópera em poucas palavras, a renúncia de Jânio e a aversão dos militares a Jango pavimentaram o caminho do golpe, e os subsequentes 21 anos de ditadura deram azo ao surgimento do lulopetismo corrupto e do bolsonarismo boçal (mais detalhes na sequência O desempregado que deu certo). 

Para quem gazeteou as aulas de História, relembro que a Guerra Fria e a Revolução Cubana levaram o sistema político brasileiro do pluralismo moderado ao pluralismo extremamente polarizado, e a situação se agravou com a vitória chapa Jan-Jan (de Jânio e Jango) em 1960. Jânio se elegeu com a promessa de resolver miraculosamente todos os problemas ligados à corrupção e inflação no país, mas, alegando que "forças terríveis" se levantaram contra ele — e apostando que seria reconduzido ao cargo pelo "clamor popular" — despachou Jango para uma missão na China, apresentou sua carta-renúncia e voou para São Paulo levando a faixa presidencial.

Depois de esperar horas na base aérea de Cumbica pelas multidões não apareceram — talvez porque um arranjo urdido nos bastidores impediu que o povo soubesse onde ele estava, ou talvez porque o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista se seu líder tivesse permitido sua existência — o populista cachaceiro embarcou para Europa, e o Brasil mergulhou na crise provocada pelo veto à promoção do "vice comunista" a titular.

Na qualidade de presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli assumiu a chefia do Executivo, mas uma junta provisória formada pelos três ministros militares governou o país até 8 de setembro, quando foi implantado o sistema parlamentarista. Com os poderes limitados e tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, Jango foi autorizado a assumir a presidência como chefe de Estado. 

Curiosidades1) Dali a 24 anos, o primeiro-ministro de Jango se tornaria o primeiro presidente civil pós-ditadura militar. 2) Em 1962, Jânio concorreu ao governo de São Paulo, mas foi derrotado por seu velho desafeto Adhemar de Barros e só voltou a disputar um cargo público em 1985, quando derrotou o tucano Fernando Henrique e o petista Eduardo Suplicy e se elegeu prefeito da capital paulista.

Jango só assumiu o posto a que tinha direito desde a renúncia de Jânio depois que o referendo de 6 de janeiro de 1963 restabeleceu o presidencialismo, mas as tensões se intensificaram quando ele declarou que a reforma agrária era uma questão de honra em seu mandato. Embora não houvesse a menor possibilidade de uma vitória comunista — nem pela via reformista, nem pela luta armada —, parte da elite brasileira bateu às portas dos quartéis, e os militares atenderam prontamente (até porque a doutrina que aprendiam na caserna era a do Ocidente x Pacto de Varsóvia).

Quando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade escancarou o apoio civil ao golpe, o Congresso, ameaçado de fechamento, chancelou a derrubada de Jango e a "eleição" do então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas — o marechal Castello Branco —, que deixou o Planalto em 15 de março de 1967 e morreu quatro meses depois, vítima de um acidente de avião no Ceará. Outros quatro generais-ditadores — Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo , se revezaram no poder até 1985, num jogo um jogo de cartas marcadas em que o partido de oposição (MDB) era meramente figurativo. 

Observação: Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe achando que os militares voltariam para os quartéis em 1965, quando haveria novas eleições e Juscelino (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador liberal, democrata) disputariam a Presidência. Mas eles não demoram a perceber que os militares, picados pela mosca azul, tencionavam se perpetuar no poder. 
 
A dança das cadeiras dos fardados terminou com a eleição indireta de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, que reascendeu a chama da esperança no coração de 130 milhões de brasileiros. Mas a alegria durou pouco: por uma trapaça do destino, o presidente eleito baixou ao hospital horas antes da cerimônia de posse e bateu as botas 38 dias e 7 cirurgias depois, deixando de herança um neto que envergonhou o país e um vice que se tornou pai e avô do Centrão
O resto é história recente. 
 
Em 1989, já sob a égide da Constituição Cidadã, os brasileiros voltaram às urnas (depois de um jejum de 29 anos) para escolher seu presidente. Entre os 22 postulantes havia políticos do quilate de Ulysses Guimarães, Mario Covas, Leonel Brizola e Ciro Gomes e aberrações como Enéas Carneiro, Livia Maria Pio e Sílvio Santos, mas o eleitor tupiniquim, sempre pronto a fazer as piores escolhas, escalou Collor (com 30,5% dos votos) e Lula (com 17,2%) para disputar o segundo turno, quando então o pseudo caçador de marajás derrotou o desempregado que deu certo por 53% a 47%.
 
Durante a campanha, Collor prometeu alvejar o "tigre da inflação" com uma "bala de prata". Eleito, apertou o gatilho um dia antes da posse ao pedir a Sarney que decretasse feriado bancário para que o mercado se adequasse ao conjunto de medidas econômicas mais radical que o país já amargou. Além de congelar preços e salários — a exemplo dos planos Cruzado, Cruzado II e Verão, editados durante o governo Sarney—, o Plano Collor bloqueou todo o dinheiro depositado nos bancos e aplicado no mercado financeiro até o limite de Cr$ 50 mil. Como resultado, o PIB encolheu 4,5% e o número de falências, infartos e suicídios teve um aumento significativo.
 
Plano Collor II aumentou tarifas públicas, decretou o fim do overnight e criou a FAF (Fundo de Aplicações Financeiras) e a TR (Taxa de Referência de Juros), mas a inflação voltou a subir, o desemprego cresceu, estatais foram vendidas a preço de banana e houve um desmonte das ferrovias e cortes de investimentos federais em infraestrutura. Entre o fim do Plano Marcílio e o início do Plano Real a inflação baixou dos 2.000% a.a. para "apenas" 1119,91% a.a. — índice registrado no final de 1992, quando o
 Rei-Sol, autoritário como poucos e corrupto como muitos, foi chutado do Planalto pela porta dos fundos
 
Observação: Ciente de que sua deposição eram favas contadas, Collor renunciou às vésperas do julgamento de seu impeachment — que teve como estopim uma entrevista concedida por Pedro Collor à revista VEJA —, mas o Senado seguiu adiante e o condenou (por 76 votos a 3) à perda do cargo e suspendeu seus direitos políticos por 8 anos.   
 
Com a deposição do "Roxinho", o vice Itamar Franco passou a titular e nomeou Fernando Henrique ministro da Fazenda. Impulsionado pelo sucesso do Plano Real, o tucano se elegeu presidente em 1994, comprou a PEC da reeleição em 1997 e se reelegeu 1998. Como não lhe restavam novos coelhos para tirar da velha cartola, FHC não conseguiu eleger José Serra seu sucessor.A
 vitória de Lula em 2002 marcou o início à era lulopetista, que só foi interrompida em 2016, com o impeachment de Dilma

Com a deposição da gerentona de araque, seu vice foi promovido a titular e se mudou para a residência oficial da Presidência, mas voltou semanas depois para o Jaburu, porque, segundo ele, o Palácio da Alvorada é assombrado. Assim, Michel Temer se tornou o primeiro e único caso documentado de vampiro que tem medo de fantasma. 
 
A troca de comando foi como uma lufada de ar fresco numa catacumba: após 13 anos de garranchos verbais de um semianalfabeto e frases desconexas de uma anormal incapaz de juntar sujeito e predicado numa frase que fizesse sentido, um presidente que não só sabia falar como até usava mesóclises pareceu um refrigério. Demais disso, o vampiro do Jaburu
 conseguiu reduzir a inflação (que rodava pelos 10% quando ele assumiu), baixar a Selic e aprovar a PEC do Teto dos Gastos e a Reforma Trabalhista, mas o ministério de notáveis que prometeu se revelou uma notável agremiação de corruptos, e quando sua conversa de alcova com Joesley Batista veio a público, o sonho de entrar para a história como "o cara que recolocou o Brasil nos eixos" virou o pesadelo de vir a ser "o primeiro presidente no exercício do mandato denunciado por crime comum". 
 
Observação: A tropa de choque capitaneada por Carlos Marun contratou um coral de 251 marafonas para entoar a marcha fúnebre enquanto a segunda "flechada de Janot" era sepultada na Câmara, mas Temer terminou seu mandato-tampão como um "pato manco" — que é como os americanos se referem a políticos que chegam tão desgastados ao final do mandato que até os garçons lhes servem o café frio. 
 
Em 2018, uma extraordinária conjunção de fatores empurrou para o Planalto um combo de mau militar e parlamentar medíocre que atribuiu a vitória a uma "cagada do bem". Quatro anos depois, derrotado nas urnas, ele exortou seus paus-mandatos a "virar a mesa". Investigado em sete inquéritos, inelegível até 2030 e na bica de ver o sol nascer quadrado, esse dejeto da escória da raça humana aguarda a primeira condenação posando de perseguido. 
 
A retomada democrática instituída em 1985 com a eleição do presidente "Viúva Porcina" (que foi sem nunca ter sido) e sacramentada em 1988 pela promulgação da Constituição Cidadã não exorcizou os fantasmas da ditadura. No último dia 29, o STF começou a julgar em plenário virtual os limites da atuação das FFAA estabelecidos no Art. 142 da CF (o ministro Luiz Fux, relator da encrenca, já votou pelo sepultamento da tese de que os fardados são o "poder moderador" da República).

Para evitar atritos com as Forças Armadas, Lula vetou qualquer ação alusiva ao golpe de '64, mas sete dos 38 ministros foram às redes sociais prestar homenagens aos "desaparecidos" dos anos de chumbo
Lobotomizados pela polarização semeada pelo "nós contra eles" do xamã petista e estrumada pela extrema-direita radical que saiu do armário durante a campanha de 2018, os devotos do bolsonarismo, vítimas da pior espécie de cegueira, consideram seu "mito" um ex-presidente de mostruário perseguido injustamente por "Xandão", como deixou claro a manifestação de 25 de fevereiro passado.

Observação: Claro que muita gente reza (ou finge rezar) por essa cartilha devido a interesses escusos, da mesma forma e pelos mesmos motivos que muita gente finge acreditar que Lula é a alma viva mais honesta do Universo e que sua prisão "foi uma armação, um dos maiores erros judiciários da história do país". Mas isso é outra conversa. 
 
Em face de todo o exposto, não há o que celebrar em 31 de março (nem em 1 de abril, a não ser o "dia da mentira"). Comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é permitir que ódios do passado envenenem (ainda mais) o presente e destruam o futuro. 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — TERCEIRA PARTE

 

Para tudo há limites, e a paciência desde humilde escriba não é exceção. Daí eu ter buscado um descanso do desalentador cenário político contemporâneo nesta breve regressão ao passado, onde tudo começou. Aliás, vale destacar que a inflação tupiniquim não teve início durante a ditadura militar nem na velha república. Diferentemente de como costumamos imaginar, ela remonta à época da colonização, lá pelos idos de 1577, quando se apontou em documentos oficiais um aumento no preço da arroba de açúcar provocado por um crescimento na demanda internacional, um reajuste de 18% naquele ano. 

A despeito de ser bastante primitiva, a economia colonial tinha no preço de sua principal commodity o indexador de produtos e serviços, e o resultado foi um aumento em cascata no custo de vida dos então mirrados núcleos urbanos tupiniquins, o que inaugurou uma cultura inflacionária capaz de resistir por mais de 400 anos.

No decorrer dos séculos, outros episódios ligados a acontecimentos específicos provocaram surtos inflacionários, mas nada se compara aos registros modernos, quando, no final dos anos 1980, o Brasil agonizava com a realidade da hiperinflação. Em 1989, último ano do governo Sarney, o índice anual chegou a estratosféricos 1.764,8%; em 1993, durante a gestão de Itamar Franco, registrou-se o inacreditável recorde de 2.477% em doze meses. 

Eram tempos em que o dinheiro perdia o valor da noite para o dia, os salários sofriam reajustes sem nunca recuperar de fato as perdas e as máquinas remarcadoras de preços funcionavam sem cessar nos supermercados. A classe média recorria a aplicações financeiras como o overnight para se proteger dos prejuízos — um recurso inexistente para os mais pobres, que eram justamente os que mais sofriam as consequências da escalada ensandecida dos preços.

Essa dinâmica foi encerrada em 1994, com o Plano Real — um engenhoso e eficaz conjunto de medidas lastreadas numa nova moeda pareada com o dólar, cujos frutos foram colhidos até o final do ano passado, quando o dragão da inflação voltou a soltar fumaça pelas ventas. A mais recente estimativa dos economistas prevê uma taxa de 8,51% para 2001 (no acumulado do últimos 12 meses, o índice foi de 9,68% e agora bate às portas dos dois dígitos, devido, sobretudo, a aumentos diuturnos no preço de alimentos, energia elétrica, combustíveis e gás de cozinha, entre outros).

Não voltamos aos anos 1980, mas é nítido que a tendência inflacionária esteja dando sinais de que vai despertar. Isso se deve aos impactos econômicos produzidos pela pandemia, mas também — e principalmente — à instabilidade política gestada e parida sob a funesta gestão do mandatário de fancaria que, como um câncer, ameaça evoluir para metástase e se tornar inoperável. Uma evidência incontestável é a cotação do dólar, nas alturas graças às promessas não cumpridas feitas pelo Posto Ipiranga bolsonariano, que agora posa de sectário incondicional do bolsonarismo boçal. Mas tudo a seu tempo. Voltemos ao nosso retrospecto.  

Juscelino Kubitschek de Oliveira assumiu a Presidência em 31 de janeiro de 1956 e transferiu a faixa para o populista manguaceiro Jânio da Silva Quadros exatos cinco anos depois. Nesse interregno, a raposa mineira, cujo bordão de campanha era 50 anos em 5, construiu Brasília e abriu a economia para o capital internacional, atraindo o investimento de grandes empresas — entre as quais as montadoras Ford, Volkswagen, Willys e General Motors.

JK criou uma miríade de empregos (diretos e indiretos), mas deixou o país mais dependente do capital externo. Por outro lado, os rios de dinheiro canalizados para a construção de uma cidade do zero, no meio do nada, inflou barbaramente a dívida externa. Isso sem mencionar que as novas oportunidades de emprego provocaram um êxodo rural desordenado, e a migração de trabalhadores do campo para as cidades e de nordestinos e nortistas para grandes capitais do sudeste prejudicou a produção agrícola e fomentou o aumento da pobreza, da miséria e da criminalidade.

Transferir o Distrito Federal para o interior do país era uma ideia antiga, defendida desde o período colonial, e que passou por vontades políticas distintas e muitas mudanças de governo até se transformar em realidade. Não obstante, como sói acontecer em terras canarinhas, havia objetivos escusos nesse projeto. 

A pretexto de contribuir para o desenvolvimento da região Centro-Oeste — que também recebeu um grande número de migrantes nordestinos —, pretendia-se manter o centro das decisões afastado de uma região densamente povoada, de modo a reduzir a quase zero as manifestações de rua contra o governo federal.

JK enfrentou sérias dificuldades, mas conseguiu manter boas relações com o Congresso e fazer acordos com diversos movimentos políticos e sociais. Seu partido, o PSD, era muito representativo na zona rural, e o presidente contava ainda com o apoio do PTB, que era influente na zona urbana.

Em 7 de agosto de 1976, a imprensa noticiou que o ex-presidente havia morrido quando ia de sua fazenda em Luziânia (GO) para Brasília. JK havia realmente planejado a viagem, mas desistiu na última hora, e a fazenda, na época, não tinha telefone. Quando soube dos rumores, ele disse a seu secretário particular Serafim Jardim: "Estão querendo me matar, mas ainda não conseguiram".

Duas semanas após o alarme falso, o Chevrolet Opala em que JK viajava colidiu violentamente com uma carreta carregada de gesso no antigo quilômetro 165 da rodovia Presidente Dutra. Especulou-se que seu motorista, Geraldo Ribeiro, tivesse perdido o controle do carro após levar um tiro na cabeça. O perito criminal Alberto de Minas declarou ter visto um buraco de tiro no crânio do motorista, mas foi impedido de fotografar pelos policiais. Segundo análise do legista Márcio Alberto Cardoso, o fragmento metálico encontrado — supostamente um projétil de arma de fogo — era um prego enferrujado do caixão.

Uma das muitas teorias conspiratórias acerca da morte de JK sustenta que um explosivo foi colocado durante uma parada no hotel-fazenda Villa-Forte, em Resende (RJ), cujo dono, brigadeiro Newton Junqueira Villa-Forte, era ligado ao SNI e tinha sido professor de Figueiredo. Outra versão diz que os freios do Opala foram sabotados. O motorista do caminhão que colidiu com o veículo que levava o ex-presidente declarou que, segundos antes da batida, viu Geraldo Ribeiro "debruçado, com a cabeça caída entre o volante e a porta do automóvel”, e que não tinha dúvidas de que "o condutor se encontrava desacordado e inconsciente, e já não controlava o veículo, antes do impacto". 

Já o motorista do ônibus acusado de bater na lateral do Opala e fazê-lo se desgovernar disse que, depois do acidente, foi procurado por dois homens, que lhe ofereceram dinheiro para que assumisse a culpa. A versão foi endossada por um passageiro do ônibus, segundo o qual o carro bateu numa mureta antes de se chocar com o caminhão. Pela versão oficial, o ônibus teria “abalroado” o veículo, desgovernando-o.

Os peritos refutaram as teses de explosão e sabotagem. Não havia resíduos de explosivo na carcaça do carro nem indícios de que o freio tivesse sido sabotado. De acordo com os laudos, o ônibus bateu de lado no Opala, mas os passageiros não perceberam porque foi um "toque sutil" para um veículo de 12 toneladas. Na época do acidente, os peritos apuraram que havia vestígios da tinta do Opala na lateral do ônibus e vice-versa. Pelas marcas dos pneus no asfalto, o motorista tentou recuperar o controle da direção antes de colidir com a carreta, o que indica que ele não estava desacordado. 

A morte de JK não foi satisfatoriamente explicada até hoje, o que só reforça o fato de que o ex-presidente era temido e visado pelos militares. Por outro lado, isso não significa que ele tenha sido assassinado. Mais de trezentas mil pessoas assistiram ao funeral de JK em Brasília, onde a multidão cantou a música que o identificava o político mineiro: Peixe Vivo

Seu corpo do ex-presidente foi exumado em 1986, mas os peritos concluíram pelo "acidente de trânsito" (mais detalhes no livro "JK, Onde Está a Verdade"). Em 2001, a Câmara Federal instituiu uma Comissão Externa para averiguar as suspeitas de assassinato, mas a conclusão foi a mesma. Em 2012, a Comissão Nacional da Verdade — que analisa os crimes políticos ocorridos entre 1946 e 1988 — decidiu rever o inquérito, mas concluiu que a morte foi acidental.

Voltemos a Jânio Quadros, depois de lecionar português e geografia em colégios tradicionais de São Paulo e direito processual penal na Faculdade Presbiteriana Mackenzie, em 1947 o demiurgo mato-grossense se elegeu suplente de vereador pelo PDC. Com a cassação dos mandatos de parlamentares do partido comunista, ele passou a titular e exerceu o cargo até 1950, quando conquistou uma cadeira na Câmara Federal. Na sequência, foi prefeito de São Paulo e governador do Estado. 

Em 1958, Jânio foi eleito deputado federal pelo Paraná, mas viajou para o exterior e não participou de uma única sessão no Congresso. Ao retornar, disputou a presidência de República e obteve 48,26% dos votos, derrotando Henrique Lott (32,94%) e Adhemar de Barros (18,79%). No mesmo pleito, João Goulart, do PTB, foi reeleito vice-presidente (vale destacar que a Constituição de 1946, vigente à época, não exigia a formação de uma chapa com candidatos a presidente e vice do mesmo partido, de modo que qual era eleito em uma votação separada).

Jânio foi empossado Presidente em 31 de janeiro de 1961 e renunciou em 25 de agosto daquele ano. Durante seus seis meses e pouco no Planalto, ele se manteve em evidência criando factoides (qualquer semelhança com Bolsonaro não é mera coincidência), mas jamais contou com o apoio do Congresso. 

Ao perceber que Jânio fugia ao controle das lideranças da UDN, o então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, arvorou-se em porta-voz da campanha contra o presidente. Não tendo como acusá-lo por corrupção — tática que havia usado contra seus dois antecessores —, Lacerda denunciou uma suposta trama palaciana e acusou o ministro da Justiça de tê-lo convidado a participar de um golpe de Estado para fechar o Congresso.

O pronunciamento, feito em 24 de agosto de 1961, foi transmitido em cadeia nacional de rádio e televisão. No dia seguinte, depois de receber uma reprimenda dos três ministros militares em meio às comemorações do Dia do Soldado, Jânio apresentou sua carta-renúncia.

Em edição extraordinária, o Repórter Esso — principal noticiário da época — atribuiu a renúncia a "forças ocultas", e foi essa a versão que entrou para a história, ainda que o ex-presidente jamais tivesse proferido tais palavras. Certa vez, questionado sobre a renúncia por uma convidada durante um almoço em casa de amigos, Jânio respondeu: “Renunciei porque a comida no Palácio da Alvorada era uma droga como é aqui, e a companhia era quase tão ruim quanto a companhia daqui”. E foi-se embora sem sequer se despedir do anfitrião.

Outra resposta atravessada de Jânio sobre a renúncia é a folclórica frase "Fi-lo porque qui-lo", que não passa de lenda urbana. Mas ele disse algo parecido numa reunião com os governadores, durante o anúncio de reformas educacionais, quando o ministro da Educação, pego de surpresa pelo anúncio, perguntou-lhe por que não havia sido avisado com antecedência. Jânio respondeu: “Fi-lo porque estou convencido de que é a melhor solução; fi-lo porque esta nação tem pressa e fi-lo porque sou presidente. Como vê, senhor Ministro, fi-lo porque qui-lo.” 

O detalhe é que o manguaceiro dominava como poucos o idioma de Camões, e sabia melhor que ninguém que a forma correta seria "filo porque o quis".

Continua...