Para tudo há limites, e a paciência desde humilde escriba
não é exceção. Daí eu ter buscado um descanso do desalentador
cenário político contemporâneo nesta breve regressão ao passado, onde tudo
começou. Aliás, vale destacar que a inflação tupiniquim não teve início durante
a ditadura militar nem na velha república. Diferentemente de como costumamos imaginar, ela remonta à época da colonização, lá pelos idos de 1577, quando se apontou em
documentos oficiais um aumento no preço da arroba de açúcar provocado por um
crescimento na demanda internacional, um reajuste de 18% naquele ano.
A
despeito de ser bastante primitiva, a economia colonial tinha no preço de sua
principal commodity o indexador de produtos e serviços, e o resultado foi um
aumento em cascata no custo de vida dos então mirrados núcleos urbanos
tupiniquins, o que inaugurou uma cultura inflacionária capaz de resistir por
mais de 400 anos.
No decorrer dos séculos, outros episódios ligados a
acontecimentos específicos provocaram surtos inflacionários, mas nada se compara aos registros modernos, quando, no final dos anos 1980, o Brasil
agonizava com a realidade da hiperinflação. Em 1989, último ano do governo Sarney,
o índice anual chegou a estratosféricos 1.764,8%; em 1993, durante a gestão de Itamar
Franco, registrou-se o inacreditável recorde de 2.477% em doze meses.
Eram
tempos em que o dinheiro perdia o valor da noite para o dia, os salários
sofriam reajustes sem nunca recuperar de fato as perdas e as máquinas remarcadoras
de preços funcionavam sem cessar nos supermercados. A classe média recorria a
aplicações financeiras como o overnight para se proteger dos prejuízos — um
recurso inexistente para os mais pobres, que eram justamente os que mais sofriam
as consequências da escalada ensandecida dos preços.
Essa dinâmica foi encerrada em 1994, com o Plano Real — um engenhoso
e eficaz conjunto de medidas lastreadas numa nova moeda pareada com o dólar, cujos frutos foram colhidos até o final do ano passado, quando o dragão da inflação
voltou a soltar fumaça pelas ventas. A mais recente estimativa dos economistas prevê uma
taxa de 8,51% para 2001 (no acumulado do últimos 12 meses, o índice foi de
9,68% e agora bate às portas dos dois dígitos, devido, sobretudo, a aumentos diuturnos no
preço de alimentos, energia elétrica, combustíveis e gás de cozinha,
entre outros).
Não voltamos aos anos 1980, mas é nítido que
a tendência inflacionária esteja dando sinais de que vai
despertar. Isso se deve aos impactos econômicos produzidos pela pandemia,
mas também — e principalmente — à instabilidade política gestada e parida sob a funesta
gestão do mandatário de fancaria que, como um câncer, ameaça evoluir para
metástase e se tornar inoperável. Uma evidência incontestável é a cotação do
dólar, nas alturas graças às promessas não cumpridas feitas pelo Posto Ipiranga
bolsonariano, que agora posa de sectário incondicional do bolsonarismo boçal. Mas tudo a seu tempo. Voltemos ao nosso retrospecto.
Juscelino Kubitschek de Oliveira assumiu a Presidência em 31 de janeiro de 1956 e transferiu a faixa para o populista
manguaceiro Jânio da Silva Quadros exatos cinco anos depois. Nesse
interregno, a raposa mineira, cujo bordão de campanha era 50
anos em 5, construiu Brasília e abriu a economia para o capital
internacional, atraindo o investimento de grandes empresas — entre as quais as
montadoras Ford, Volkswagen, Willys e General Motors.
JK criou uma miríade de empregos (diretos e
indiretos), mas deixou o país mais dependente do capital externo. Por outro
lado, os rios de dinheiro canalizados para a construção de uma cidade do zero, no meio do
nada, inflou barbaramente a dívida externa. Isso sem mencionar que as novas
oportunidades de emprego provocaram um êxodo rural desordenado, e a migração de
trabalhadores do campo para as cidades e de nordestinos e nortistas para grandes
capitais do sudeste prejudicou a produção agrícola e fomentou o aumento
da pobreza, da miséria e da criminalidade.
Transferir o Distrito Federal para o interior do país era
uma ideia antiga, defendida desde o período colonial, e que passou por vontades políticas
distintas e muitas mudanças de governo até se transformar em realidade. Não
obstante, como sói acontecer em terras canarinhas, havia objetivos escusos
nesse projeto.
A pretexto de contribuir para o desenvolvimento da região
Centro-Oeste — que também recebeu um grande número de migrantes nordestinos —, pretendia-se manter o centro das decisões afastado de uma região densamente povoada, de modo a reduzir a quase zero as manifestações de rua contra o governo federal.
JK enfrentou sérias dificuldades, mas conseguiu
manter boas relações com o Congresso e fazer acordos com diversos movimentos
políticos e sociais. Seu partido, o PSD, era muito representativo na
zona rural, e o presidente contava ainda com o apoio do PTB, que era
influente na zona urbana.
Em 7 de agosto de 1976, a imprensa noticiou que o ex-presidente havia morrido quando ia de sua fazenda em Luziânia (GO) para Brasília. JK havia realmente planejado a viagem, mas desistiu na última hora,
e a fazenda, na época, não tinha telefone. Quando soube dos rumores, ele disse
a seu secretário particular Serafim Jardim: "Estão querendo
me matar, mas ainda não conseguiram".
Duas semanas após o alarme falso, o Chevrolet Opala
em que JK viajava colidiu
violentamente com uma carreta carregada de gesso no antigo quilômetro
165 da rodovia Presidente Dutra. Especulou-se que seu motorista, Geraldo
Ribeiro, tivesse perdido o controle do carro após levar um tiro na cabeça. O
perito criminal Alberto de Minas declarou ter visto um buraco de tiro no
crânio do motorista, mas foi impedido de fotografar pelos policiais. Segundo
análise do legista Márcio Alberto Cardoso, o fragmento metálico encontrado — supostamente um projétil de arma de fogo — era um prego enferrujado do caixão.
Uma das muitas teorias conspiratórias acerca da morte de JK sustenta que um
explosivo foi colocado durante uma parada no hotel-fazenda Villa-Forte, em
Resende (RJ), cujo dono, brigadeiro Newton Junqueira Villa-Forte, era ligado
ao SNI e tinha sido professor de Figueiredo. Outra versão diz que
os freios do Opala foram sabotados. O motorista do caminhão que colidiu
com o veículo que levava o ex-presidente declarou que, segundos antes da batida, viu Geraldo
Ribeiro "debruçado, com a cabeça caída entre o volante e a porta do
automóvel”, e que não tinha dúvidas de que "o condutor se
encontrava desacordado e inconsciente, e já não controlava o veículo, antes do
impacto".
Já o motorista do ônibus acusado de bater na lateral do Opala
e fazê-lo se desgovernar disse que, depois do acidente, foi procurado por dois
homens, que lhe ofereceram dinheiro para que assumisse a culpa. A versão foi
endossada por um passageiro do ônibus, segundo o qual o carro bateu numa mureta
antes de se chocar com o caminhão. Pela versão oficial, o ônibus teria
“abalroado” o veículo, desgovernando-o.
Os peritos refutaram as teses de explosão e sabotagem. Não
havia resíduos de explosivo na carcaça do carro nem indícios de que o freio
tivesse sido sabotado. De acordo com os laudos, o ônibus bateu de lado no Opala,
mas os passageiros não perceberam porque foi um "toque sutil"
para um veículo de 12 toneladas. Na época do acidente, os peritos apuraram que havia vestígios da tinta do Opala
na lateral do ônibus e vice-versa. Pelas marcas dos pneus no asfalto, o
motorista tentou recuperar o controle da direção antes de colidir com a
carreta, o que indica que ele não estava desacordado.
A morte de JK não foi satisfatoriamente explicada até hoje, o que só reforça o fato de que o ex-presidente era temido e visado pelos militares. Por outro lado, isso não significa que ele
tenha sido assassinado. Mais de trezentas mil pessoas assistiram ao funeral de JK
em Brasília, onde a multidão cantou a música que o identificava o político
mineiro: Peixe Vivo.
Seu corpo do ex-presidente foi exumado em 1986, mas os peritos concluíram pelo "acidente de trânsito" (mais detalhes no livro "JK,
Onde Está a Verdade"). Em 2001, a Câmara Federal instituiu uma
Comissão Externa para averiguar as suspeitas de assassinato, mas a
conclusão foi a mesma. Em 2012, a Comissão Nacional da Verdade —
que analisa os crimes políticos ocorridos entre 1946 e 1988 — decidiu rever o
inquérito, mas concluiu que a morte foi acidental.
Voltemos a Jânio Quadros, depois de lecionar português e geografia em colégios tradicionais de São Paulo e direito
processual penal na Faculdade Presbiteriana Mackenzie, em 1947 o demiurgo
mato-grossense se elegeu suplente de vereador pelo PDC. Com a cassação
dos mandatos de parlamentares do partido comunista, ele passou a titular e
exerceu o cargo até 1950, quando conquistou uma cadeira na Câmara
Federal. Na sequência, foi prefeito de São Paulo e
governador do Estado.
Em 1958, Jânio foi eleito deputado federal pelo Paraná, mas
viajou para o exterior e não participou de uma única sessão no Congresso. Ao
retornar, disputou a presidência de República e obteve 48,26% dos votos,
derrotando Henrique Lott (32,94%) e Adhemar de
Barros (18,79%). No mesmo pleito, João Goulart,
do PTB, foi reeleito vice-presidente (vale destacar que a
Constituição de 1946, vigente à época, não exigia a formação de uma
chapa com candidatos a presidente e vice do mesmo partido, de modo que qual era
eleito em uma votação separada).
Jânio foi empossado Presidente em 31 de janeiro
de 1961 e renunciou em 25 de agosto daquele ano. Durante seus seis meses e pouco no Planalto, ele se manteve em
evidência criando factoides (qualquer semelhança com Bolsonaro não
é mera coincidência), mas jamais contou com o apoio do Congresso.
Ao perceber que Jânio fugia ao controle das lideranças da UDN, o então governador do Estado da Guanabara, Carlos
Lacerda, arvorou-se em porta-voz da campanha contra o presidente. Não tendo como acusá-lo por corrupção —
tática que havia usado contra seus dois antecessores —, Lacerda denunciou
uma suposta trama palaciana e acusou o ministro da Justiça de tê-lo convidado a
participar de um golpe de Estado para fechar o Congresso.
O
pronunciamento, feito em 24 de agosto de 1961, foi transmitido em cadeia
nacional de rádio e televisão. No dia seguinte, depois de receber uma
reprimenda dos três ministros militares em meio às comemorações do Dia do
Soldado, Jânio apresentou sua carta-renúncia.
Em edição extraordinária, o Repórter
Esso — principal noticiário da época — atribuiu a renúncia a "forças ocultas", e foi essa a versão que entrou para a história, ainda que o ex-presidente jamais tivesse proferido tais palavras. Certa
vez, questionado sobre a renúncia por uma convidada durante um almoço em casa
de amigos, Jânio respondeu: “Renunciei porque a comida no
Palácio da Alvorada era uma droga como é aqui, e a companhia era quase tão ruim
quanto a companhia daqui”. E foi-se embora sem sequer se despedir do
anfitrião.
Outra resposta atravessada de Jânio sobre a renúncia é a folclórica frase "Fi-lo porque qui-lo",
que não passa de lenda urbana. Mas ele disse algo parecido numa
reunião com os governadores, durante o anúncio de reformas educacionais, quando
o ministro da Educação, pego de surpresa pelo anúncio, perguntou-lhe por
que não havia sido avisado com antecedência. Jânio respondeu: “Fi-lo
porque estou convencido de que é a melhor solução; fi-lo porque esta nação tem
pressa e fi-lo porque sou presidente. Como vê, senhor Ministro, fi-lo
porque qui-lo.”
O detalhe é que o manguaceiro dominava como poucos
o idioma de Camões, e sabia melhor que ninguém que a forma correta seria
"filo porque o quis".
Continua...