Nas visão de Merval Pereira, um presidente democraticamente eleito há cerca de cinco meses não precisa insuflar manifestações de apoio popular, a não ser que se sinta desconfortável com as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. Daí a mobilização da militância ser contra o Congresso, o Judiciário e a Imprensa — justamente as instituições que têm como finalidade precípua impedir que o Executivo exorbite de seus poderes, sobretudo num regime presidencialista que dá preponderância quase imperial ao presidente da República.
UM BATE-PAPO INFORMAL SOBRE INFORMÁTICA, POLÍTICA E OUTROS ASSUNTOS.
quinta-feira, 23 de maio de 2019
ENTRE JÂNIOS E BOLSONAROS
Nas visão de Merval Pereira, um presidente democraticamente eleito há cerca de cinco meses não precisa insuflar manifestações de apoio popular, a não ser que se sinta desconfortável com as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. Daí a mobilização da militância ser contra o Congresso, o Judiciário e a Imprensa — justamente as instituições que têm como finalidade precípua impedir que o Executivo exorbite de seus poderes, sobretudo num regime presidencialista que dá preponderância quase imperial ao presidente da República.
terça-feira, 2 de abril de 2024
60º ANIVERSÁRIO DO GOLPE DE `64
A dança das cadeiras dos fardados terminou com a eleição indireta de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, que reascendeu a chama da esperança no coração de 130 milhões de brasileiros. Mas a alegria durou pouco: por uma trapaça do destino, o presidente eleito baixou ao hospital horas antes da cerimônia de posse e bateu as botas 38 dias e 7 cirurgias depois, deixando de herança um neto que envergonhou o país e um vice que se tornou pai e avô do Centrão. O resto é história recente.
Em 1989, já sob a égide da Constituição Cidadã, os brasileiros voltaram às urnas (depois de um jejum de 29 anos) para escolher seu presidente. Entre os 22 postulantes havia políticos do quilate de Ulysses Guimarães, Mario Covas, Leonel Brizola e Ciro Gomes e aberrações como Enéas Carneiro, Livia Maria Pio e Sílvio Santos, mas o eleitor tupiniquim, sempre pronto a fazer as piores escolhas, escalou Collor (com 30,5% dos votos) e Lula (com 17,2%) para disputar o segundo turno, quando então o pseudo caçador de marajás derrotou o desempregado que deu certo por 53% a 47%.
Durante a campanha, Collor prometeu alvejar o "tigre da inflação" com uma "bala de prata". Eleito, apertou o gatilho um dia antes da posse ao pedir a Sarney que decretasse feriado bancário para que o mercado se adequasse ao conjunto de medidas econômicas mais radical que o país já amargou. Além de congelar preços e salários — a exemplo dos planos Cruzado, Cruzado II e Verão, editados durante o governo Sarney—, o Plano Collor bloqueou todo o dinheiro depositado nos bancos e aplicado no mercado financeiro até o limite de Cr$ 50 mil. Como resultado, o PIB encolheu 4,5% e o número de falências, infartos e suicídios teve um aumento significativo.
O Plano Collor II aumentou tarifas públicas, decretou o fim do overnight e criou a FAF (Fundo de Aplicações Financeiras) e a TR (Taxa de Referência de Juros), mas a inflação voltou a subir, o desemprego cresceu, estatais foram vendidas a preço de banana e houve um desmonte das ferrovias e cortes de investimentos federais em infraestrutura. Entre o fim do Plano Marcílio e o início do Plano Real a inflação baixou dos 2.000% a.a. para "apenas" 1119,91% a.a. — índice registrado no final de 1992, quando o Rei-Sol, autoritário como poucos e corrupto como muitos, foi chutado do Planalto pela porta dos fundos.
Observação: Ciente de que sua deposição eram favas contadas, Collor renunciou às vésperas do julgamento de seu impeachment — que teve como estopim uma entrevista concedida por Pedro Collor à revista VEJA —, mas o Senado seguiu adiante e o condenou (por 76 votos a 3) à perda do cargo e suspendeu seus direitos políticos por 8 anos.
Com a deposição do "Roxinho", o vice Itamar Franco passou a titular e nomeou Fernando Henrique ministro da Fazenda. Impulsionado pelo sucesso do Plano Real, o tucano se elegeu presidente em 1994, comprou a PEC da reeleição em 1997 e se reelegeu 1998. Como não lhe restavam novos coelhos para tirar da velha cartola, FHC não conseguiu eleger José Serra seu sucessor.A vitória de Lula em 2002 marcou o início à era lulopetista, que só foi interrompida em 2016, com o impeachment de Dilma.
A troca de comando foi como uma lufada de ar fresco numa catacumba: após 13 anos de garranchos verbais de um semianalfabeto e frases desconexas de uma anormal incapaz de juntar sujeito e predicado numa frase que fizesse sentido, um presidente que não só sabia falar como até usava mesóclises pareceu um refrigério. Demais disso, o vampiro do Jaburu conseguiu reduzir a inflação (que rodava pelos 10% quando ele assumiu), baixar a Selic e aprovar a PEC do Teto dos Gastos e a Reforma Trabalhista, mas o ministério de notáveis que prometeu se revelou uma notável agremiação de corruptos, e quando sua conversa de alcova com Joesley Batista veio a público, o sonho de entrar para a história como "o cara que recolocou o Brasil nos eixos" virou o pesadelo de vir a ser "o primeiro presidente no exercício do mandato denunciado por crime comum".
Observação: A tropa de choque capitaneada por Carlos Marun contratou um coral de 251 marafonas para entoar a marcha fúnebre enquanto a segunda "flechada de Janot" era sepultada na Câmara, mas Temer terminou seu mandato-tampão como um "pato manco" — que é como os americanos se referem a políticos que chegam tão desgastados ao final do mandato que até os garçons lhes servem o café frio.
Em 2018, uma extraordinária conjunção de fatores empurrou para o Planalto um combo de mau militar e parlamentar medíocre que atribuiu a vitória a uma "cagada do bem". Quatro anos depois, derrotado nas urnas, ele exortou seus paus-mandatos a "virar a mesa". Investigado em sete inquéritos, inelegível até 2030 e na bica de ver o sol nascer quadrado, esse dejeto da escória da raça humana aguarda a primeira condenação posando de perseguido.
A retomada democrática instituída em 1985 com a eleição do presidente "Viúva Porcina" (que foi sem nunca ter sido) e sacramentada em 1988 pela promulgação da Constituição Cidadã não exorcizou os fantasmas da ditadura. No último dia 29, o STF começou a julgar em plenário virtual os limites da atuação das FFAA estabelecidos no Art. 142 da CF (o ministro Luiz Fux, relator da encrenca, já votou pelo sepultamento da tese de que os fardados são o "poder moderador" da República).
Para evitar atritos com as Forças Armadas, Lula vetou qualquer ação alusiva ao golpe de '64, mas sete dos 38 ministros foram às redes sociais prestar homenagens aos "desaparecidos" dos anos de chumbo.
Lobotomizados pela polarização semeada pelo "nós contra eles" do xamã petista e estrumada pela extrema-direita radical que saiu do armário durante a campanha de 2018, os devotos do bolsonarismo, vítimas da pior espécie de cegueira, consideram seu "mito" um ex-presidente de mostruário perseguido injustamente por "Xandão", como deixou claro a manifestação de 25 de fevereiro passado.
Em face de todo o exposto, não há o que celebrar em 31 de março (nem em 1 de abril, a não ser o "dia da mentira"). Comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é permitir que ódios do passado envenenem (ainda mais) o presente e destruam o futuro.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2021
... E PODE PIORAR AINDA MAIS
Desde sempre que os brasileiros são vocacionados a eleger representantes ladrões e mandatários populistas e imprestáveis. Jânio Quadros é um bom exemplo. Sua renúncia levou ao golpe de 64 e aos subsequentes 21 anos de ditadura militar. Senão vejamos.
Eleito em outubro de 1960, no apagar das luzes do governo de Juscelino Kubitschek — que se notabilizou por construir Brasília do nada, no meio do nada, para suceder ao Rio como Distrito Federal —, o advogado, professor de português, político e cachaceiro inveterado “homem da vassoura” assumiu a Presidência em janeiro do ano de 1961, prometendo “varrer” toda a sujeira da vida pública brasileira. Depois de passar 206 dias mandando “bilhetinhos” para auxiliares e se preocupando com questiúnculas — como rinhas de galo, corridas de cavalo, biquinis nas praias e maiôs cavados em concursos de misses —, o demagogo, "movido por forças terríveis", renunciou ao cargo.
Na manhã do dia 25 de agosto, após ser acusado por Carlos Lacerda — que viria a ser um dos articuladores civis do Golpe de 1964 e a ganhar o epíteto de “demolidor de presidentes” — de tramar um “golpe de gabinete”, Jânio informou à primeira-dama, dona Eloá, que deixariam Brasília naquela tarde. No Planalto, antecipou aos ministros-chefes das casas Civil e Militar a manchete dos jornais do dia seguinte: “Comunico aos senhores que renuncio, hoje, à Presidência da República. Ajustem o novo Brasil às exigências do Brasil novo. Com esse Congresso, eu não posso governar”.
Findo o desfile do
Dia do Soldado, Jânio encarregou o ministro da Justiça de entregar ao
presidente do Senado sua carta-renúncia e voou para a Base Aérea de Cumbica,
levando consigo a faixa presidencial (que a essa altura não mais lhe pertencia) e a
esperança de o pedido não ser aceito — ou de o renunciante de festim ser reconduzido
ao cargo por uma manifestação de apoio popular, o que lhe permitira governar sem ser "incomodado pelo Congresso". Mas faltou combinar com os russos.
Mais preocupados em impedir a posse de Jango, os militares esqueceram Jânio, e o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista se seu líder tivesse permitido sua existência.
Assim, enquanto o país mergulhava na crise provocada pelo veto à promoção do vice a titular, o já ex-presidente embarcou com a mulher num cargueiro com destino à Europa, o presidente da Câmara assumiu (decorativamente) a chefia do Executivo e os ministros militares (que governaram de fato nas semanas seguintes) implementaram a toque de caixa o parlamentarismo.
Com os poderes limitados e tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, o “vice comunista” foi autorizado a assumir a presidência como chefe de Estado. Mas a experiência parlamentarista foi tão conturbada quanto curta: um plebiscito realizado em 6 de janeiro de 1963 restabeleceu o presidencialismo.
Jango finalmente assumiu o cargo que era seu por direito, mas foi deposto, quinze meses depois, pelo golpe de 1964. Fica evidente, portanto, que a incipiente democracia tupiniquim havia entrado em parafuso em 25 de agosto de 1961, com a renúncia do populista cachaceiro.
Sobre o golpe: Em 1964, partidos de esquerda, grupos comunistas e seus associados discutiam qual a maneira de derrubar o capitalismo burguês e implantar a ditadura do proletariado, se pela luta armada ou pelo caminho reformista. Naquela época, a ampla maioria da esquerda era reformista — pelas chamadas reformas de base, processo que começava com a agrária e incluía um amplo cardápio de estatizações.
Jango, filiado ao PTB getulista, estava claramente no campo da esquerda. Ainda que houvesse comunistas em seu governo e no entorno, o presidente nada tivesse de comunista, a exemplo de ilustres membros do seu gabinete durante o curto período parlamentarista, como os primeiros-ministros Tancredo Neves e Santiago Dantas, que eram, no máximo, socialdemocratas, trabalhistas ou nacionalistas.
Como o grupo comunista era claramente minoritário, o sucesso de Jango levaria o Brasil a uma economia mais estatizada, com o aumento dos gastos públicos em todos os setores, dos sociais à infraestrutura (mais ou menos como aconteceu no governo ditatorial do general Ernesto Geisel, um nacionalista e estatizante da primeira linha, e no governo Lula, mas isso é outra conversa).
Em 1964, no auge da “Guerra Fria” o mundo estava dividido entre os EUA e a URSS. As plataformas reformistas — aqui, no Chile, na Argentina etc. — procuravam se aproximar não propriamente da União Soviética, mas do “Bloco do Terceiro Mundo”, que se declarava independente, mas pendia para a esquerda, ou seja, era adversário dos EUA, que, nessa disputa, patrocinavam ditaduras direitistas para, como se dizia na época, evitar a ditadura comunista.
Não havia a menor possibilidade de uma vitória comunista. Nem pela via reformista, nem pela luta armada. A melhor chance de uma guerrilha no Araguaia ou no Vale do Ribeira era a de ser massacrada, como de fato aconteceu. Mas foi nesse quadro que parte da elite brasileira, representada por partidos e associações civis, bateu às portas dos quartéis.
Os militares atenderam rapidamente, pois a doutrina que aprendiam
era simplesmente Ocidente versus Pacto de Varsóvia (a frente militar da
URSS). O Congresso chancelou a derrubada de Jango e elegeu
presidente o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, marechal Humberto
de Alencar Castello Branco. Mas só o fez porque a alternativa era o
fechamento.
Muitos democratas e
liberais apoiaram o golpe, achando que seria um interregno necessário para
garantir a eleição presidencial de 1965, que seria disputada entre Juscelino
Kubitschek (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador,
liberal, democrata). Mas não tardaram a se arrepender, e foram abandonando o
governo militar à medida que este radicalizava, transformava-se numa verdadeira
ditadura e dava sinais de que tencionava se perpetuar no poder. Lacerda,
apoiador do golpe, terminou cassado e se uniu a JK, também cassado,
numa frente pela democracia.
O Congresso funcionou durante os 21 anos de ditadura — noves fora os breves momentos em que ousou discordar do regime — e “elegeu” todos os presidentes, mas somente depois que os generais de quatro estrelas decidiam quem seria o mandatário de turno.
Partidos políticos foram proibidos, a imprensa, censurada, opositores — tanto democratas quanto comunistas —, presos, torturados e mortos. Quando a política econômica finalmente fracassou — com recessão, dívida externa explosiva e inflação —, a ditadura caiu e os militares se retiraram, liderados por colegas de bom senso num processo conduzido por políticos habilidosos.
Em 1985, Tancredo
Neves (MDB) derrotou Paulo Maluf (ARENA) por
480 a 180 votos de um colégio eleitoral formado por senadores, deputados
federais e membros das assembleias legislativas estaduais. Mas quis o destino o presidente eleito fosse
internado 12 horas antes da posse e dado como morto 38 dias e
7 cirurgias depois — ironicamente, no dia 21 de abril, feriado que
homenageia Tiradentes, o Mártir da Independência.
Observação: Segundo a versão oficial, uma diverticulite obrigou Tancredo a ser submetido a uma cirurgia de emergência horas antes da posse. Também oficialmente, sua morte se deu no dia 21 de abril, depois de outras sete cirurgias. O general João Figueiredo se recusou a passar a faixa ao vice, José Sarney — um reles traidor, segundo o fardado, já que o ex-presidente da ARENA e representante do regime militar no Congresso deixara o partido governista e se juntara à oposição. “Faixa a gente transfere para presidente. Não para vice, esse é um impostor”, disse o general, que deixou o Planalto assim que a votação no Congresso foi encerrada. Ainda assim, a mágoa que o último presidente da ditadura guardava do repulsivo oligarca maranhense era menor que a resistência da caserna ao deputado Ulysses Guimarães.
Continua...
terça-feira, 12 de outubro de 2021
NÃO PODE DAR CERTO — QUARTA PARTE
Jânio Quadros levou apenas sete anos para passar de advogado e professor de Português e Geografia a vereador. Na sequência, foi prefeito de São Paulo, governador do Estado e presidente da República. Mas suas idiossincrasias e falta de traquejo com o Congresso levaram-no a renunciar à Presidência antes de completar sete meses no cargo.
Irritado com os sucessivos boicotes impostos pelos parlamentares, o manguaceiro despachou para a China seu vice, João Goulart, numa missão comercial e diplomática cujos reais propósitos eram reforçar a imagem de comunista que Jango conquistara quando ministro do Trabalho no governo Vargas.
Em 25 de agosto de 1961, tendo sido desancado de véspera, em rede nacional de rádio e televisão, pelo desafeto e rival Carlos Lacerda, o pé-de-cana apresentou a carta-renúncia que, em seus delírios etílicos, não seria aceita pelo Congresso — e ainda que fosse, o povo o reconduziria ao cargo por aclamação, permitindo-lhe governar sem ser "incomodado" pelos parlamentares. Mas faltou combinar com os russos.
Jânio voou para a base aérea de Cumbica, em Guarulhos (SP), levando consigo a faixa que não mais lhe pertencia, e lá permaneceu durante horas, aguardando a aclamação popular que não aconteceu — dizem que uma tramoia foi urdida para impedir a população de saber onde ele se encontrava quando a notícia da renúncia foi divulgada. Sem alternativa, ele deixou a base num DKW rumo ao porto de Santos, onde embarcou para a Europa com Dona Eloá Quadros, deixando atrás de si um país imerso na crise política que pavimentaria o caminho para o golpe de 1964 e os 21 anos de ditadura militar que viriam a reboque.
Informado da renúncia, Jango deixou a
China rumo ao Uruguai, onde ficou até a poeira baixar. Nesse entretempo, o presidente
da Câmara Federal, Ranieri
Mazzilli, assumiu interinamente o comando do Executivo, mas quem de fato governou o
país até a implementação do parlamentarismo foi uma
junta formada pelos três ministros militares do governo Jânio.
Adotar o parlamentarismo foi a solução encontrada para vencer a
resistência dos militares à posse de Jango e evitar uma guerra civil, e a PEC
foi aprovada a toque de caixa em 2 de setembro de 1961. A princípio, ficou
definido que um plebiscito seria realizado em 1965, permitindo ao povo referendar ou não o novo sistema de governo. A consulta acabou sendo
antecipada para 1963, e o sempre mui eleitorado tupiniquim optou pela
volta do presidencialismo.
Ainda que a mudança do sistema de governo limitasse os poderes do presidente, parte das FFAA se mantiveram contrárias à posse
do vice. O governador gaúcho Leonel Brizola, cunhado de Jango, organizou o “Movimento de Resistência Democrática” e a
“Voz da Legalidade” visando granjear apoio ao parente. E prometeu pegar
em armas contra a tentativa de golpe dos fardados.
Nesse entretempo, foi divulgado que Jango voltaria por terra de Montevidéu a Porto Alegre, quando na verdade ele e sua comitiva embarcaram num Caravelle da Varig (empresa aérea do Rio Grande do Sul), que voou todo o tempo com as luzes apagadas e a uma velocidade que inviabilizou uma possível interceptação por caças da FAB.
Uma vez na capital gaúcha, Jango
demoveu Brizola da ideia de marchar sobre
Brasília para fechar o Congresso. Mesmo não sendo partidário do
parlamentarismo, o vice-presidente temia que os conflitos armados evoluíssem para uma guerra
civil, de modo que se resignou a dar os anéis para não perder os dedos.
No dia 5 de setembro, Jango embarcou em outro Caravelle
da Varig com destino a Brasília — sua posse estava marcada para dali a
dois dias, no feriado da Independência. A aeronave voou a uma altitude de 11,1
mil pés, de modo a permanecer fora do alcance do radar e dos caças da FAB
durante quase todo o trajeto. A precaução se mostrou justificada: pilotos da FAB
haviam recebido ordens de abater o avião em algum ponto do caminho.
Roberto Baere, que à época era tenente aviador do 1º Grupamento de Aviação de Caça da Base Aérea de Santa Cruz, no RJ, revelou posteriormente ter recebido ordens do tenente-coronel Paulo Costa, comandante da base, para preparar os caças que seriam usados no ataque. Baere e outros três colegas que se recusaram a cumprir a missão foram expulsos 3 anos depois.
Em contrapartida à Operação Mosquito, foi urdida uma tática que visava impedir a ação dos aviadores golpistas. A ideia dos apoiadores
de Jango era evitar que os demais aeroportos que ficavam no trajeto obtivessem
informações sobre o plano de voo, bem como divulgar dados meteorológicos falsos
sobre a Região Sul. Nas bases de Porto Alegre e Belém, soldados chegaram a prender
seus superiores e furar os pneus dos aviões.
O governo Jango se dividiu em duas fases: a parlamentarista
se estendeu até janeiro de 1963 e a presidencialista, até o golpe militar de 31
de março de 1964. A primeira fase durou 14 meses e teve três primeiros-ministros:
Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes de Lima. O país
enfrentava graves problemas, como a inflação, que vinha num crescendo desde
1940. Para além disso, havia o racha político — com a UDN movendo
montanhas em prol da desestabilização do governo. Jango tentou promover
o desenvolvimento e reduzir a inflação mediante um plano de austeridade
(batizado de Plano Trienal), que fracassou e foi abandonado em 1963.
Com a realização do plebiscito em janeiro de 1963, o presidencialismo foi restabelecido, dando início à segunda fase do governo Jango — que também foi tumultuada pelos debates causados pelas "Reformas de Base" (agrária, tributária, bancária, urbana, educacional e eleitoral). A reforma mais bem elaborada, e que resultou num monumental debate político, foi a agrária, que defendia a desapropriação de propriedades rurais improdutivas com mais de 500 hectares.
Observação: A Constituição de 1946 estipulava que a reforma agrária só poderia ser realizada mediante indenização em dinheiro para quem tivesse sua terra desapropriada, mas o governo Jango tentou negociar a propositura de uma emenda constitucional que lhe permitiria indenizar os proprietários com títulos da dívida pública atualizados pela inflação.
Desentendimentos entre os partidos que apoiavam o governo (muitos dos quais eram ligados aos latifundiários) levaram à radicalização, propiciando um aumento exponencial no número de sindicatos de camponeses. Em meio a essa balbúrdia, grupos civis, militares e defensores dos interesses dos EUA — os americanos achavam o governo "muito à esquerda" — passaram a apoiar conservadores e reacionários em prol da desestabilização política do governo.
A interferência americana na política tupiniquim contribuiu
para deixar o cenário ainda mais instável, com mobilizações eclodindo no campo
e nas grandes cidade e militares defendendo a implantação de um governo
autoritário para impor um programa de desenvolvimento econômico no país. Carlos Lacerda,
então governador do antigo Distrito Federal e grande agitador
político, se contrapunha a Brizola, cunhado de Jango, trabalhista
ardoroso e defensor da não-flexibilização das Reformas de Base.
Em meio a esse turbilhão, militares se rebelaram e tomaram de assalto diversos prédios governamentais. Em outubro de 1963, em resposta a uma declaração de Lacerda, Jango decretou estado de sítio no país, o que desagradou tanto os esquerdistas e direitistas quanto os direitistas. Em 1964, grupos que conspiravam contra o governo articularam sua derrubada.
Para evitar a deposição, Jango proferiu o célebre discurso da Central do Brasil, no qual reafirmou publicamente seu compromisso de realizar, a todo custo, as Reformas de Base. A réplica conservadora não tardou: em 19 de março, meio milhão de pessoas mobilizadas por grupos direitistas realizaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, na qual houve inúmeros pedidos de tomada do poder pelos militares.
Na "virada" de 31 março para 1º de abril de 1964 teve início no município mineiro de Juiz de Fora o levante militar que serviu de estopim para o golpe. Os fardados marcharam para o Rio de Janeiro e tomaram a cidade sem sofrer qualquer tipo de resistência por parte do governo. Jango foi instado a resistir, mas preferiu evitar uma guerra civil, e o golpe foi completado em 2 de abril de 1964, quando o presidente do Senado, Auro de Moura, declarou vaga a presidência do Brasil. Dias depois foi decretado o Ato Institucional nº 1, e a posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco deu início aos 21 anos de ditadura militar.
Continua...
quarta-feira, 25 de agosto de 2021
ERA UMA VEZ...
"TODOS AMAM O PODER, MESMO QUE NÃO SAIBAM O QUE FAZER COM ELE".
Era uma vez um mau
militar que foi expelido da Escola de Oficiais do Exército por indisciplina e insubordinação (mas acabou
sendo absolvido
das acusações pelo STM). Que ingressou na vida pública
como vereador, foi deputado federal por sete mandatos e, em 28 anos no baixo
clero da Câmara, aprovou
dois míseros projetos e colecionou mais de trinta
ações criminais. E que foi alçado
à Presidência por uma esdrúxula conjunção de fatores — entres os quais a
facada que levou no ato de campanha de 7 de setembro de 2018.
Era uma vez um candidato improvável que, uma vez eleito, reconheceu (num raríssimo
rompante de lucidez) que não
nasceu para ser presidente, nasceu para ser militar, mas, a despeito da
promessa de campanha de
propor o fim da reeleição, cria uma nova crise a cada santo dia, visando mobilizando sua
base eleitoral e tirar o foco dos principais problemas do país
(decorrentes, em grande medida, de seu despreparo), enquanto articula sua cada vez
mais improvável reeleição.
Era um vez um presidente incompetente que, inconformado com os índices de reprovação a seu governo e rejeição a sua pessoa (64% dos entrevistados desaprovam sua gestão e 58% querem seu impeachment), passou a promover motociatas, vituperar contra o STF, pedir o impeachment de ministros da Corte e "esticar (ainda mais) a corda", ameaçando discursar nas manifestações marcadas para o próximo dia 7 — na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, pela manhã, e na Avenida Paulista, em São Paulo, na parte da tarde.
Observação: O STF deve ser o principal alvo desses pronunciamentos — que podem incluir também a defesa da "liberdade de se manifestar a favor da interpretação de que o artigo 142 da Constituição permite uma intervenção militar para garantir a lei, a ordem e os poderes da República". O objetivo dessas manifestações é mostrar força política e eleitoral, e a expectativa é que os atos contem com grande adesão popular (seria isso que o capitão quis dizer quando afirmou a apoiadores que eles teriam uma "fotografia para o mundo"), permitindo pressionar o presidente do Senado a dar andamento aos pedidos de impeachment de ministros do STF e o Congresso a aprovar pautas de interesse do governo.
Era uma vez um presidente que colocou o Brasil numa situação tão constrangedora quanto Jânio Quadros, o populista manguaceiro que se elegeu prometendo "varrer a corrupção", passou 206 dias mandando "bilhetinhos" para auxiliares e se preocupando com rinhas de galo e outras questiúnculas... E que, no dia 25 de agosto de 1961, "movido por forças terríveis", apresentou sua carta-renúncia e voou para a Base Aérea de Cumbica, levando consigo a faixa presidencial (que a essa altura não mais lhe pertencia) e a esperança de ser reconduzido ao cargo por aclamação popular, o que lhe permitiria governar sem ser "incomodado pelo Congresso". Era uma vez um ex-presidente que acabou num cargueiro, rumo ao exílio no Inglaterra. porque a manguaça o fez esquecer de combinar sua tramoia com o povo.
Bolsonaro não é dado a libações alcoólicas, ressalta André Gustavo Stumpf em artigo transcrito por Ricardo Noblat no portal Metrópoles, mas seu comportamento mercurial deve ter origem em algum problema que só a psiquiatria política poderá explicar. Ele alimenta o conflito para manter sua claque unida e garantir espaço no noticiário, mas seus maus bofes e declarações desastradas causam ruído, derrubam a bolsa de valores, provocam o aumento do dólar e frustram qualquer possibilidade de diálogo.
Bolsonaro produz fofoca, onda, espuma, mas governar, que é bom, néris de pitibiriba. O empresariado já está com um pé atrás; o investidor estrangeiro foge do mercado brasileiro; o botijão do gás de cozinha custa 10% do salário-mínimo e o do litro da gasolina beira os R$ 7.
O tradicional elenco de feira de horrores que deverá postular o Planalto em 2022 ainda não deu as caras. Há esforços de uma ala do PSDB para lançar o governador gaúcho Eduardo
Leite, mas o ex-presidente FHC
apoia o paulista João Doria. Fala-se, ainda, em Rodrigo
Pacheco e não se descarta Sérgio
Moro. O cearense de Pindamonhangaba Ciro
Gomes também é uma possibilidade (e outra tragédia anunciada).
Segundo as mais recentes pesquisas de intenções de voto, Lula
derrotaria Bolsonaro no segundo turno, mas simulações sem o molusco
abjeto dão conta de que o
capitão perderia de qualquer outro candidato no segundo turno.
E aí, então, era uma vez um capitão...