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quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

RETROSPECTIVA — TERCEIRA PARTE

Conhecimentos não-empíricos, como os obtidos através de inexatos livros de História, não autorizam ninguém a pleitear volta dos fardados ao poder. 

A ditadura instituída pela assim chamada Revolução de 1964 foi um golpe militar desfechado na madrugada de 1º de abril, quando líderes civis e militares conservadores depuseram o então presidente João Goulart e empossaram o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo. 

Em 1968, o “linha-dura” Costa e Silva decretou o AI-5, produzindo um elenco de ações arbitrárias que prevaleceram durante o período mais repressivo do regime. Em 1974, Geisel deu início ao lento processo de abertura que poria fim, dali a 11 longos anos, à malfadada ditadura — que se estendeu por intermináveis 21 anos, durante os quais, além de Castello, outros quatro generais presidiram o país, a saber: Costa e SilvaMédiciGeisel Figueiredo

O desgaste do governo militar propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves, que derrotou Paulo Maluf no Colégio Eleitoral (por 480 votos a 180), em 15 de janeiro de 1985. graças à união do PMDB à chamada Frente Liberal (formada por dissidentes do partido que dava sustentação ao militares). 

O fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” de Geisel e Figueiredo nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. O processo só foi concluído graças a manifestações populares pró-diretas que reuniram cerca de 1,5 milhão de pessoas na Candelária e 1 milhão no Vale do Anhangabaú. A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé, em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE”.

ObservaçãoOs movimentos pró “Diretas Já” pugnavam pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas. Os manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes políticos do quilate de Ulysses GuimarãesTancredo NevesLeonel BrizolaFernando Henrique Cardoso e Lula, além de artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone. Em meados dos anos 1980, a Internet ainda era uma ilustre desconhecida, e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

O deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março — data prevista para a posse do primeiro civil na Presidência em 21 anos. Mas o que deveria ser a festa da democracia se transformou em luto nacional: Tancredo foi internado 12 horas antes da cerimônia e morreu 38 dias e 7 cirurgias depois, levando para o túmulo a esperança de milhões de brasileiros.

O sepultamento do político em São João Del Rey (MG) produziu um dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país: o féretro foi seguido por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho da cidade natal daquele que foi, sem jamais ter sido, o maior presidente do Brasil.

Após algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara ser guindado ao Palácio do Planalto, prevaleceu o entendimento de que o rebotalho do coronelismo nordestino José Sarney, vice na chapa vencedora, deveria assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

É no mínimo curioso o fato de que muita gente que nem era nascida quando a eleição de Tancredo marcou o fim da ditadura se diz saudosa dos "anos de chumbo". Essa caterva compareceu em peso nas manifestações de 7 de Setembro último, para beber as palavras golpistas de seu despirocado “mito”.

Enquanto os brasileiros não se conscientizarem de que voto é coisa séria — e não perceberam a força que têm —, continuaremos amargando agentes públicos fisiologistas, vendilhões e ladrões. E, guardadas as devidas proporções, o mesmo raciocínio vale para o Poder Judiciário.

Como instituição, tanto a Presidência da República quanto o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal merecem nosso mais profundo respeito. Mas daí a dizer que o atual chefe do Executivo (bem como os que o precederam desde a "redemocratização"), os 513 deputados federais, os 81 senadores e os 11 togados supremos merecem o mesmo tratamento é confundir alhos com bugalhos.

ObservaçãoConfundir alhos com bugalhos é o mesmo que trocar as bolas, ou, por extensão, meter os pés pelas mãos. O que muita gente não sabe é que bugalhos são bulbos comestíveis de textura semelhante à do alho, cujo formato de pênis inspirou um fado que os marujos lusitanos cantavam nos tempos de Cabral: “Não confundas alhos com bugalhos / Nem tampouco bugalhos com caralhos”.

Continua...

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

COISAS QUE SÓ ACONTECEM NO BRASIL


Dizem que a jabuticaba (fruta) e a saudade (palavra) são exclusividades tupiniquins, mas não é verdade. Apesar de ser nativa da Mata Atlântica, a jabuticabeira está presente em outros países da américa latina, como México e Argentina. E o vocábulo "saudade" tem similares em espanhol (soledad), no catalão (soledat) e em várias outras línguas neolatinas.

A originalidade portuguesa foi a extensão do termo a situações que não a "solidão devida à falta do lar". Para nós, "saudade" é algo como "a dor de uma ausência que temos prazer em sentir" — ou, na definição dos dicionaristas, um "sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas". Aliás, quem tem prazer em sentir dor é masoquista.

Não restam dúvidas de que o Brasil está longe de ser um país sério. A propósito, quem proferiu a célebre frase "le Brésil n’est pas un pays serieux", frequentemente atribuída ao general francês Charles de Gaulle, foi na verdade o diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho, genro do presidente Artur Bernardes. E quem disse que "O Brasil não é para principiantes" (ou para "amadores", conforme a versão dessa história) foi mesmo o saudoso maestro Tom Jobim (brasileiro até no nome).

Saudosistas não raro idolatram um passado que nunca existiu. No Brasil, alguns vão mais além: gente que nem sequer era nascida quando a eleição de Tancredo Neves pôs termo à ditadura militar diz "sentir saudades dos anos de chumbo" e (pasmem!) apoia o desgoverno do inquilino de turno do Planalto — uma aberração que apoiamos para evitar a volta do lulopetismo corrupto, sem imaginar, àquela altura, que estávamos removendo o pino de uma granada de efeito retardado, desarrolhando a garrafa que prendia um efrite (ou ifrit) megalômano, abrindo a caixa de Pandora, enfim, deixo por conta do freguês a escolha da melhor analogia.

Desde a posse, esse mau militar e parlamentar medíocre nada fez senão articular sua reeleição. Quanto aos inúmeros problemas que o país enfrenta (em parte pela incompetência chapada de seu mandatário de fancaria), sua excelência vem fazendo o que continuará a fazer se não for impedido — ou seja, o que ele disse ter feito para a CPI do Genocídio. E assim, de cagada em cagada, o cagão vai esmerdeando o lema chauvinista e enjoadinho que associou à sua campanha: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".

Conhecimentos não-empíricos, de segunda-mão, obtidos através de inexatos livros de História não autorizam quem quer que seja a pleitear volta dos fardados ao poder. A ditadura militar, instituída em março de 1964 com a deposição do então presidente João Goulart e a posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco se estendeu por intermináveis 21 anos, ao longo dos quais ocuparam o Palácio do Planalto os generais Costa e SilvaMédici, Geisel e Figueiredo, nessa ordem. 

Em 1968, o “linha-dura” Costa e Silva decretou o AI-5, produzindo um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros que prevaleceram durante o período mais repressivo do governo militar. Em 1974, Geisel deu início ao lento processo de abertura que poria fim, 11 anos depois, ao regime de exceção com a eleição (indireta) de Tancredo Neves — o primeiro presidente civil em mais de duas décadas (que baixou ao hospital 12 horas antes da cerimônia de posse e morreu 38 dias e 7 cirurgias depois).

O fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” de Geisel e Figueiredo nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. Aliás, o processo de abertura só foi concluído devido a manifestações populares pró-diretas que reuniram, em 1983, cerca de 1,5 milhão de pessoas na Candelária (na Cidade Maravilhosa) e 1 milhão no vale do Anhangabaú (em Sampa). A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé (também na capital paulista), em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE”.

Observação: Os manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes como Ulysses Guimarães, Tancredo NevesLeonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Lula e outros políticos, além de artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone. Em meados dos anos 1980, a Internet ainda era uma ilustre desconhecida e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

A “Revolução de 1964” — cuja data comemorativa é 31 de março — foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril, quando líderes civis e militares conservadores derrubaram Jango — a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo. Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas, que havia sido suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada — em outras palavras, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que, infelizmente, é um mal necessário.

O desgaste do governo propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves, que venceu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral (por 480 votos a 180), depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal, formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar. Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra o pedessista Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos e, consequentemente, a volta dos militares às casernas. Mas o que deveria ser a festa da democracia se transformou em luto nacional: Tancredo foi internado 12 horas antes da cerimônia de posse morreu 38 dias e 7 cirurgias depois. O sepultamento do político — em São João Del Rey (MG) — produziu um dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país: o féretro foi seguido por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho da cidade natal daquele que foi, sem jamais ter sido, o maior presidente do Brasil.

Após algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara dos Deputados (Ulysses Guimarães) ser guindado ao Palácio do Planalto, prevaleceu o entendimento de que o rebotalho do coronelismo nordestino José Sarney, vice na chapa de Tancredo, deveria assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Sem embargo, há por estas bandas gente que — repito — sequer era nascida quando a eleição de Tancredo marcou o fim da ditadura, mas se diz saudosa dos "anos de chumbo". E tudo indica que essa escumalha comparecerá em peso às manifestações pró-governo marcadas para o próximo dia 7. Quem viver verá que haverá, então, mais jovens rinchando bestagens do que sessentões — que cresceram e adolesceram em meio à ditadura — defendendo o fechamento do Congresso e a prisão dos ministros do STF, entre outras sandices.

Longe de mim passar a impressão de que, em minha desvaliosa opinião, nossos parlamentares façam jus a rasgados elogios. E o mesmo se aplica a atual composição da mais alta corte de Justiça tupiniquim. Como instituições, tanto a Presidência da República quanto o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal merecem nosso mais profundo respeito. Mas daí a dizer que o atual chefe do Executivo (assim como os que o precederam desde a "redemocratização"), os 513 deputados federais, os 81 senadores e os 10 togados supremos (seriam 11 se alguém já tivesse ocupado a vaga aberta com a aposentadoria do primo de Collor) merecem o mesmo tratamento é confundir alhos com bugalhos.

Observação: Confundir alhos com bugalhos é o mesmo que trocar as bolas, ou, por extensão, meter os pés pelas mãos. O que muita gente não sabe é que bugalhos são bulbos comestíveis de textura semelhante à do alho, cujo formato de pênis inspirou um fado que os marujos lusitanos cantavam nos tempos de Cabral: “Não confundas alhos com bugalhos / Nem tampouco bugalhos com caralhos”.

Retomando o fio da meada, ou melhor, remetendo ao título desta postagem — que tomei emprestado do artigo publicado por Ricardo Rangel em Veja — e que transcrevo mais adiante —, há coisa que parecem acontecer somente no Brasil (e ainda dizem que Deus é brasileiro!).

Ao contrário do que escreveu Karl Marx, a história nem sempre se repete como tragédia ou farsa. Às vezes — para o bem ou para o mal — ela reproduz fielmente o passado.

A julgar pelo exercício de futurologia que institutos como Datafolha, Ibope, Vox Populi, Paraná Pesquisas e assemelhados chamam de pesquisas de intenções de voto, o ex-presidiário travestido de "ex-corrupto" e o maníaco que (ainda) ocupa o Palácio do Planalto abrilhantarão o segundo turno do pleito presidencial de 2022. E a menos que o imprevisto tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, o picareta dos picaretas fará picadinho do capitão despirocado. Ao que parece, tudo depende do que acontecer no próximo dia 7 (vide postagem anterior). Enfim, quem viver verá. Enquanto isso, passo a palavra a Rangel.  

O presidente da República declarou que o Supremo não tem direito de abrir inquérito de ofício. O governo federal entrou com ação no Supremo pedindo ao Supremo que revogue o artigo do regimento interno do Supremo que permite ao Supremo que abra inquérito de ofício.

O advogado do presidente da República cantou uma mulher casada e fugiu correndo quando o marido da mulher o perseguiu com uma faca.

O presidente da República convocou para o golpe (que ele chama de “contragolpe”). Quando a convocação vazou, irritou-se.

Um cantor convocou para o golpe. Quando a convocação vazou, declarou-se magoado, triste, depressivo e chorou em entrevista. Ao sofrer busca e apreensão, declarou que não tem medo de ir para a cadeia, que não é frouxo, não é mulher. E novamente pediu desculpas em nova entrevista, desta vez na cama.

Um deputado aventou a hipótese de que o cantor tenha usado dinheiro público para comprar uma prótese peniana. O líder da associação dos produtores de soja desmentiu o cantor, que havia citado seu nome como participante do golpe, e deu como explicação a hipótese de ele ter “tomado umas pingas”. Após sofrer busca e apreensão, o líder desfilou com tratores na porta da Polícia Federal.

O presidente da República entrou com ação de impeachment contra ministro do Supremo.

Um comediante fez ameaças aos ministros do Supremo e pediu o fechamento do tribunal e do Congresso.

Vários coronéis da PM, inclusive um da ativa, comandante de cinco mil homens, convocaram para o golpe — que tem data, hora e local marcados com um mês de antecedência e conhecidas pelo público.

Os militares avisaram que não vão poder comparecer.

EM TEMPO: Na manhã do último sábado, durante o 1° Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás, nosso indômito capitão compartilhou com a récua de muares que vão ao Nirvana com suas bolsonarices a seguinte profecia: "Eu tenho três alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter certeza de que a primeira alternativa não existe. Estou fazendo a coisa certa e não devo nada a ninguém. Sempre onde o povo esteve, eu estive". Esqueceu-se sua excelência de uma quarta possibilidade, que, pelo andar da carruagem, tende a ser a mais provável: a derrota.

No âmbito judicial, Bolsonaro é investigado em cinco inquéritos. O assim chamado inquérito das fake news, que tramita no STF, investiga um esquema de disseminação sistemática e organizada de informações falsas com o objetivo de fragilizar as instituições e a democracia. Outro inquérito, no TSE, investiga o mandatário por ataques sem provas às urnas eletrônicas e tentativa de deslegitimar o sistema eleitoral brasileiro. Além disso, nos últimos dias, aliados do presidente foram alvo de operações contra atos ofensivos à democracia e às instituições do Estado.

Bolsonaro também enfrenta desgaste nos campos político e econômico, com inflação, desemprego e pobreza em alta, e o risco de apagão no fornecimento de energia elétrica, diante do baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas. Em Goiânia, ao lado de líderes evangélicos, o presidente discursou por cerca de 20 minutos. No fim, disse: "Deus me colocou aqui, e somente Deus me tira daqui", repetindo uma frase já comum em declarações do presidente. Já do lado de fora da igreja, tirou fotos com apoiadores e tomou caldo de cana. Depois de falar com o público, ele se encontrou com políticos e empresários de Goiás em um local onde foram colocadas tendas e montado um palco. 

Alea jacta est.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — QUINTA PARTE



Com o golpe de 1964, o AI-1 e Castello Branco no Planalto, iniciou-se a ditadura militar que só terminaria com a eleição indireta de Tancredo Neves (que foi hospitalizado horas antes da cerimônia de posse e declarado morto 38 dias e 7 cirurgias depois) e a posse do "coroné" José Sarney (a quem o general Figueiredo se recusou a transferir a faixa presidencial). Os 21 anos sob o comando dos fardados dividiram-se em três fase distintas: 1) O Disfarce Legalista para a ditadura (1964-1968), os Anos de Terror de Estado (1969-1978) e a Reabertura Política (1979-1985).

Vale destacar que o mundo vivia um clima de animosidade política devido à Guerra Fria, e que os EUA contribuíram sobremaneira para a deposição de Jango (tido e havido como comunista) e o término do curto período democrático (de 1946 a 1964) que o Brasil viveu com o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas. Com a consolidação do golpe e a assunção do governo provisório, o presidente deposto se exilou no Uruguai. Sob a égide dos fardados, intensificam-se as perseguições políticas, a censura, as torturas e o desaparecimento de uma miríade de pessoas — assassinadas a mando dos milicos. 

O Ato Institucional nº 5, decretado em dezembro de 1968, deu início aos chamados "anos de chumbo" — período mais repressivo da ditadura militar, que se estendeu até o final do governo Médici, em março de 1974, durante o qual era comum jornalistas serem demitidos por criticarem o governo (alguns, como Vladimir Herzog, foram covardemente assassinados).

Observação: Limitados pela Constituição de 1946, os militares precisavam de instrumentos legais para aplicação de suas ações políticas, e assim surgiram os Atos Institucionais, que "pairavam" acima da própria Constituição. Entre os anos de 1964 e 1969, foram decretados nada menos que 17 atos institucionais. O AI-2 instituiu a eleição indireta para presidente e o AI-4 convocou o Congresso para a construção de uma nova Constituição, afinada com os ideais dos militares no poder, mas foi o AI-5 que conferiu ao presidente de turno o poder de suspender direitos políticos, cassar mandatos, fechar o Congresso, e por aí afora. Não à toa, o AI-5 foi considerado um “golpe dentro do golpe”, já que foi gestado e parido por segmentos específicos dentro das FFAA.

Uma parcela substantiva da imprensa apoiou o golpe de 1964, mas esse apoio foi se desvanecendo à medida em que o regime foi endurecendo. A Constituição de 1967, promulgada às vésperas da decretação do AI-5, instituiu o Ministério Público — o que poderia ser considerado um avanço não fosse o fato de o órgão ser subordinado ao Executivo Federal. Já a Constituição Cidadã, de 1988, mudou essa história, mas a dupla Bolsonaro/Aras reverteu-a ao status quo ante, ainda que de modo informal.

Durante a "longa noite de 21 anos" (de 1964 a 1985), governaram o Brasil cinco presidentes-generais. Humberto de Alencar Castello Branco, "eleito" no dia 11 de abril de 1965 e empossado no dia 15; Costa e Silva, que governou de 1967 a 1969; Médici, de 1969 a 1974; Geisel, de 1974 a 1979; e Figueiredo, de 1979 a 1985. Por ocasião da cassação de Jango, em 2 de abril de 1964, Ranieri Mazzilli foi reconduzido ao cargo, mas sua segunda passagem pela presidência durou míseros 13 dias.

Em 31 de agosto de 1969, Costa e Silva se afastou da presidência devido a uma trombose, mas os ministros militares impediram a posse do vice, Pedro Aleixo, que havia se posicionado contra a edição do AI-5 e elaborado uma revisão da Constituição de 1967 — seu mandato foi extinto pelo AI-16, decretado em 14 de outubro de 1969.

O descontentamento com a ditadura se intensificou em meados dos anos 1970, quando começaram a pipocar os primeiros movimentos pelo fim do regime de exceção (cito as greves operárias no ABC Paulista, de 1978 a 1980, e o movimento das Diretas Já, em 1983). Coube a Geisel dar início ao processo de reabertura política lenta, gradual e segura, que se consumou com a eleição indireta de Tancredo, em 1985, e a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988.

Como o lobo, que perde o pelo mas não larga o vício, Jânio se candidatou ao governo de São Paulo no ano seguinte ao da sua renúncia, mas foi derrotado por Adhemar de Barros e teve seus direitos políticos cassados pela ditadura militar. Em 1978, já apto a disputar eleições, o ex-presidente manifestou a intenção de concorrer à sucessão de Paulo Maluf — gatuno de marca maior, que passou uma temporada na Papuda, mas foi despachado para casa graças ao bom coração do ministro Dias Toffoli — ao governo de São Paulo.

Jânio se filiou ao PTB, que deixou 7 meses depois, para ingressar no PMDB. Como sua filiação foi recusada pela executiva nacional da sigla, ele votou ao PTB e tornou a disputar o governo de São Paulo em 1982, quando foi derrotado por André Franco Montoro. Com o fim da ditadura, o manguaceiro declarou apoio a Tancredo Neves e venceu Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy na disputa pela prefeitura de Sampa, contrariando os prognósticos dos institutos de pesquisa. FHC, na condição de primeiro colocado nas sondagens, chegou a tirar uma foto sentado na cadeira de prefeito (que foi publicada pela Revista Veja). Na cerimônia de posse, Jânio fez questão de ser fotografado com um tubo de inseticida nas mãos para, segundo ele, desinfetar a poltrona porque nádegas indevidas a usaram".

Em sua derradeira empreitada político-administrativa, Jânio repetiu seus lances populistas habituais: pendurou uma chuteira em seu gabinete (para ilustrar o suposto desinteresse em prosseguir na política), proibiu o uso de sunga e de biquini fio-dental no Parque do Ibirapuera (onde ficava a sede da prefeitura), obrigou a direção da Escola de Balé do Teatro Municipal a expulsar alunos tidos como homossexuais, mandou publicar no Diário Oficial do Município os “bilhetinhos” que enviava a seus assessores, aplicou multas de trânsito pessoalmente, posou para a imprensa com a camisa do Corinthians e fechou os oito cinemas que iriam exibir o filme A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, por considerar a obra desrespeitosa à fé cristã.

Jânio adotou posturas autoritárias em diversas situações. Seu governo foi marcado por insatisfações de vários setores do funcionalismo público, materializadas através de greves e protestos nas proximidades de seu gabinete, aos quais quase sempre respondia com demissões em massa. Também se mostrou inflexível diante de manifestações de movimentos sociais (como o MST). Por outro lado, ele criou a Guarda Civil Metropolitana — para reforçar o policiamento na cidade, embora seus adversários o acusassem de utilizá-la como mais um de seus instrumentos de repressão.

Jânio se afastou diversas vezes do cargo para cuidar tanto da própria saúde quanto da saúde da mulher, Dona Eloá (falecida em 1990). Ao fim de sua gestão, quando já se encontrava desgastado perante a opinião pública (apenas 30% dos paulistanos aprovaram sua administração), foi acusado pelo então vereador Walter Feldmann de manter uma conta bancária na Suíça. Nas eleições de 1988, apoiou João Leiva, embora Mellão Neto e Mastrobuono, integrantes de seu secretariado, disputassem a sucessão. Dada a vitória da então petista Luíza Erundina, ele deixou o cargo dias antes do final do mandato para passar o réveillon em Londres (cidade pela qual era apaixonado), mas não sem antes incumbir seu Secretário dos Negócios Jurídicos, Cláudio Lembo, de transferir o bastão para a maior calamidade travestida de alcaide paulistano que esta cidade já viu (noves fora Fernando Haddad).

Com a saúde debilitada — em parte devido à manguaça, da qual era fã incondicional —, Jânio declinou do convite do PSD para disputar a presidência da República em 1989, preferindo apoiar o pseudo caçador de marajás — um populista como ele, como viríamos a descobrir mais adiante, da pior forma possível. Naquele mesmo ano, Jânio anunciou sua aposentadoria definitiva da política. A morte de Dona Eloá, no ano seguinte, contribuiu para agravar ainda mais seu estado de saúde do velhote, que passou os últimos meses de vida entre casas de repouso e quartos de hospitais e acabou falecendo no Hospital Israelita Albert Einstein, em 16 de fevereiro de 1992, em estado vegetativo decorrente de três derrames cerebrais.

Jânio deixou de herança para a filha cerca de 70 imóveis. Ironicamente, Dirce “Tutu” Quadros chegou o pai por corrupção — e ela parecia saber das coisas: durante a Operação Castelo de Areia, a PF revelou que Jânio tinha US$ 20 milhões em uma conta secreta na Suíça. Em agosto de 1991, exatos 30 anos após abrir mão da Presidência, Jânio confidenciou ao neto (no mesmo leito do hospital onde viria a falecer dali a menos de 6 meses) os verdadeiros motivos de sua renúncia — não sem antes definir a presidência como “a suprema ironia, pois por um lado era um inferno, mas por outro era melhor que um orgasmo”). Em entrevista concedida ao Fantástico em 1999, Jânio Quadros Neto revelou o "segredo de Polichinelo". 

Continua...

sábado, 7 de janeiro de 2017

SAUDOSISMO - CUIDADO COM O QUE VOCÊ DESEJA

Para alguns, a palavra “saudade” existe somente no português; para outros, isso não passa de um mito. Verdade ou não, o termo ficou em 7º lugar no ranking das palavras mais difíceis de traduzir da empresa britânica Today Translations.

Saudade deriva do latim solitas, solitatis, que, em latim, significa “solidão”, “desamparo”, “abandono”. Daí o significado de “desejo de um bem do qual se está privado”; “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las”.

Segundo a professora Luísa Galvão Lessa, Doutora em Língua Portuguesa pela UFRJ e membro da Academia Brasileira de Filologia, os demais idiomas têm dificuldade em traduzir ou atribuir um significado preciso a “saudade”, mas o fato de uma língua não ter palavra que, por si mesma, possa traduzir-se por “saudade” não significa que o povo que a fala não conheça tal sentimento. Tal conceito pode ser, nessa língua ou em outras, expresso por mais de uma palavra. No inglês, por exemplo, têm-se várias tentativas: homesickness (equivalente a saudade de casa ou do país), longing e to miss (sentir falta de uma pessoa); no castelhano, te extraño; no francês, j’ai regret, e no alemão, Ich vermisse dish.

Talvez essas expressões não definam com exatidão o sentimento luso-brasileiro de saudade, mas aí já é outra história; para os propósitos deste preâmbulo, interessa dizer que a lembrança é o elo que liga o passado ao presente, e que é fundamental separar a saudade do saudosismo de achar que tudo era melhor, mais bonito e mais feliz.

Saudosistas, não raro, idolatram um passado que nunca existiu. Um exemplo disso é que, diante do calamitoso cenário político atual, algumas pessoas dizem ter saudades dos tempos da ditadura, mas, quando se vai se ver, nem se conheciam por gente nos assim chamados “anos de chumbo”. E conhecimentos não-empíricos, de segunda-mão, obtidos através de inexatos livros de História, não autorizam, salvo melhor juízo, pleitear volta dos militares.

A ditadura militar foi instituída em março de 1964, com a deposição do então presidente João Goulart e a posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, e se estendeu ao longo de 21 anos, sob o comando dos generais Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, nessa ordem. 

Em 1968, o “linha-dura” Costa e Silva decretou o AI-5, produzindo um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros que prevaleceram durante os “anos de chumbo”, o período mais repressivo do governo militar. Em 1974, Geisel deu início ao lento processo de abertura que, 11 anos depois, poria fim no regime de exceção com a eleição (indireta) de Tancredo Neves ― o primeiro presidente civil em mais de duas décadas ―, embora quem assumiu o posto foi seu vice, José Sarney.

O fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” de Geisel e Figueiredo, e tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. Aliás, o processo de abertura só foi concluído devido às manifestações populares pró-diretas, que em 1983, reuniram 1,5 milhão de pessoas na Candelária (RJ) e 1 milhão no vale do Anhangabaú (SP). A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé (também em São Paulo), em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE” ― note que os manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Lula e outros políticos, artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone, pois a internet era então uma ilustre desconhecida e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

Observação: Em rápidas pinceladas, a “Revolução de 1964” ― cuja data “comemorativa” é 31 de março ― foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril daquele ano, quando líderes civis e militares conservadores derrubaram o presidente João Goulart, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo.

Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados, e a emenda foi rejeitada, a despeito do clamor das ruas. Em outras palavras, o povo foi traído pelos políticos, para variar. Mas o desgaste do governo propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves, que venceu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral (por 480 votos a 180), depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal, formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar.

Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses Guimarães ― que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra o pedessista Paulo Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney ― entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses. Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos e a volta dos militares às casernas. Mas o que deveria ser a festa da democracia se transformou em luto nacional: Tancredo foi internado na véspera da posse e faleceu em 21 de abril (num dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país, seu esquife foi acompanhado por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho de São João Del Rey, onde o corpo do político foi sepultado).

Depois de algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara dos Deputados (Ulysses Guimarães) assumir a presidência, prevaleceu o entendimento de que José Sarney, vice na chapa de Tancredo, deveria ser empossado. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal, como veremos no próximo capítulo desta retrospectiva. Abraços a todos e até lá.

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domingo, 8 de janeiro de 2017

AINDA SOBRE O PERIGOSO SAUDOSISMO


Ontem, na abertura desta sequência, eu falei brevemente sobre o golpe de 1964, a ditadura militar, o processo de redemocratização do país, a campanha pelas Diretas Já, a eleição (indireta) do primeiro presidente civil após 21 anos e a posse do vice, José Sarney, devido à morte de Tancredo ― consequência de uma diverticulite aguda, embora não faltem teorias da conspiração que defendem outras versões). Disse também que se cogitou a possibilidade de Ulysses Guimarães assumir a presidência ― até porque ele havia sido indicado pelo PMDB para disputar com Maluf os votos do Colégio Eleitoral ―, mas o político paulista acabou preterido pela coligação PMDB/PFL, com o mineiro Tancredo candidato a presidente e o maranhense Sarney a vice. Mesmo assim, o Sr. Diretas ― como Ulysses ficou conhecido ― teve um papel preponderante na Nova República, sobretudo na liderança da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou nossa Carta Magna de 1988 ―, até um trágico acidente de helicóptero, em 12 de outubro de 1992, pôr fim à carreira e à existência desse ícone da política tupiniquim (e dar margem a mais teorias da conspiração).

Observação: A Constituição Cidadã não foi exatamente uma pérola jurídica, como comprovam dezenas de emendas incorporadas ao texto nos anos subsequentes e a necessidade premente de reformas ― como a Política, a Trabalhista, a Tributária e a Previdenciária ― que nenhum presidente teve peito para fazer (com a possível exceção de Temer, que já conseguiu promulgar a PEC do teto dos gastos, mas isso é outra conversa). Aliás, ao discursar durante a promulgação da nova Constituição, o próprio Ulysses reconheceu as imperfeições da Lei, que contribuíram para elevar a carga tributária dos 22,4% do PIB, em 1988, aos atuais 36%, como forma de sustentar as novas obrigações do Estado (direitos básicos de cidadania, como educação, previdência social, maternidade e infância).

Retomando o fio da meada: Embora houvesse apoiado o regime militar e votado contra a emenda Dante de Oliveira (detalhes no capítulo anterior), Sarney procurou cumprir as promessas de campanha ― aliás, foi a partir do seu governo que os prefeitos dos municípios voltaram a ser escolhidos pelo voto popular. Mas faltavam-lhe o carisma e o traquejo administrativo da velha raposa mineira, e, para piorar, ele herdou dos 21 anos de ditadura um país arruinado, com inflação, desemprego e dívida externa nas alturas.

No início de 1986, Sarney implantou o primeiro de seus muitos “pacotes econômicos”, que ficou conhecido como Plano Cruzado. Nossa moeda, que até então era o cruzeiro, sofreu um corte de 3 zeros e foi rebatizada com o nome de cruzado, e tanto os preços quanto os salários foram congelados. Todavia, faltou a equipe econômica combinar o jogo com o “dragão da inflação”, que ignorou solenemente o decreto presidencial ― aqui entre nós, será que Sarney e o então ministro da Fazenda Dilson Funaro acreditavam mesmo que cortar 3 zeros, mudar o nome da moeda e congelar preços e salários e extinguir a correção monetária seria suficiente para extirpar o câncer inflacionário?

Observação: Essa não foi a primeira vez que se utilizou esse expediente para resgatar a credibilidade do dinheiro brasileiro: do real, herdado do padrão monetário português e que era mais usado no plural (“réis”, “mirréis”, “contos de réis”), passamos ao cruzeiro em 1942, que perdeu os centavos em 1964, ao cruzeiro novo em 1967 (depois de novo corte de 3 zeros) e voltamos ao cruzeiro em 1970. Em 1984, suprimiram-se os centavos, e dois anos depois, após novo corte de 3 zeros, a moeda passou a se chamar cruzado. Novo corte de zeros ocorreria em 1989, dando origem ao cruzado novo, que voltou a se chamar cruzeiro em 1990, foi promovido a cruzeiro real em 1993 e, após ter o valor nominal dividido por 2.750, voltou às origens, ou seja, tornou a se chamar real em 1º de julho de 1994, durante o governo de Itamar Franco (veja a tabela de conversão na imagem que ilustra esta matéria).     

O Plano Cruzado fez água em poucos meses, embora a população tenha apoiado a iniciativa do governo (o que faz o desespero, não é mesmo?), fiscalizado os aumentos e denunciado as remarcações de preços. Mas a euforia durou pouco: os produtos sumiram das prateleiras, os fornecedores passaram a cobrar ágio e a inflação voltou a subir. Sarney e seus notáveis responderam com outros “choques econômicos”, como os planos Cruzado II, Bresser e Verão, mas nenhum deles vingou. Depois de reinar por 5 anos (pois é, Sarney garantiu que a “Constituição Cidadã” estendesse de 4 para 5 anos a duração de seu mandato), o bode velho passou a faixa para Fernando Collor de Melo ― esse, sim, o primeiro presidente pós-ditadura eleito pelo voto popular. E deu no que deu.

Observação: No final de 1989, havia 22 candidatos à Presidência da Banânia, dentre os quais Ulysses Guimarães (líder do PMDB), Paulo Maluf (do PDS), Leonel Brizola (PDT), Mário Covas (PSDB) e o apresentador Silvio Santos, que acabou tendo a candidatura impugnada pelo TSE, por irregularidades no registro partidário. Mas os principais postulantes ao cargo acabaram sendo Collor, do nanico PRN, e Lula, do PT.

Collor derrotou Lula no segundo turno e herdou de Sarney um país com uma inflação de quase 2.000% ao ano. Um dia depois da posse, a pretexto de dar “o tiro certeiro no dragão da inflação”, o marajá caçador de marajás anunciou o Plano Brasil novo (ou Plano Collor, para os íntimos). Na concepção de sua equipe, capitaneada pela ministra Zélia Cardoso de Mello ― que, mais adiante, se casaria com Chico Anysio, que por seu turno, ficaria conhecido como “o humorista que casou com a piada” ―, conter a pressão inflacionária exigia reduzir a quantidade de dinheiro em circulação. Para tanto, o governo confiscou as economias dos brasileiros, bloqueando o acesso a tudo que excedesse 50 mil cruzados novos, tanto nas contas correntes quanto nas cadernetas de popança e outros investimentos. A moeda voltou a se chamar cruzeiro, mas os cruzados novos retidos continuaram a existir e foram devolvidos, mas em 12 parcelas, já na moeda nova, corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de 6% a.a. ― o que acarretou perdas substanciais e provocou um aumento significativo nas taxas de suicídio. Do ponto de vista prático, todavia o Plano Collor serviu apenas para gerar uma brutal recessão (para se ter uma ideia, o PIB encolheu 4,5% no primeiro ano de seu governo).

Observação: Em valores atuais, os NCz$ 50 mil correspondem a R$ 5 mil ― quantia que Zélia admitiu, mais adiante, ter sido escolhida de forma aleatória (segundo alguns, por sorteio).   

O governo do hoje senador por Alagoas teve aspectos positivos, dentre os quais o início do processo de desestatização e a abertura comercial do país, com o fim da reserva de mercado e a redução gradual das tarifas de importação, Como eu costumo dizer, se não fosse por ele, talvez a gente ainda dirigisse “carroças” como as que eram fabricadas aqui nos 70 e 80, embora pagasse por elas preços de automóvel de primeiro mundo. Um bom exemplo é o Galaxie Standard ― versão empobrecida do luxuoso Landau, lançada pela Ford no início dos anos 1970 para fazer frente a concorrentes como o Opala, da GM, e o Dodge Dart, da Chrysler. Atualizado pelo IGP-DI/FGV, o preço daquela “carroça”, que era de NCr$ 25.950, corresponde atualmente a R$ 160 mil.    

Hoje, comparado ao petrolão, o “Esquema PC” ― que embasou o processo de impeachment contra Collor ― parece coisa de ladrão de galinha, de bandido pé-de-chinelo, mas levou o marajá dos marajás a renunciar, visando evitar a cassação de seus direitos políticos. Todavia, o Congresso julgou-o assim mesmo, e Collor ficou inelegível por 8 anos. Paulo César (PC) Farias, seu amigo pessoal e tesoureiro de campanha, morreu assassinado poucos anos depois, o que até hoje dá margem a diversas teorias da conspiração (eu, particularmente, acredito em “queima de arquivo”, mas até aí...). Com a deposição de Collor, Itamar Franco, que já era presidente interino desde 2 de outubro, foi efetivado no cargo. Mas isso já é conversa para a próxima postagem. Abraços e até lá.

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quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

... E PODE PIORAR AINDA MAIS

 

Desde sempre que os brasileiros são vocacionados a eleger representantes ladrões e mandatários populistas e imprestáveis. Jânio Quadros é um bom exemplo. Sua renúncia levou ao golpe de 64 e aos subsequentes 21 anos de ditadura militar. Senão vejamos.

Eleito em outubro de 1960, no apagar das luzes do governo de Juscelino Kubitschek — que se notabilizou por construir Brasília do nada, no meio do nada, para suceder ao Rio como Distrito Federal —, o advogado, professor de português, político e cachaceiro inveterado “homem da vassoura” assumiu a Presidência em janeiro do ano de 1961, prometendo “varrer” toda a sujeira da vida pública brasileira. Depois de passar 206 dias mandando “bilhetinhos” para auxiliares e se preocupando com questiúnculas — como rinhas de galo, corridas de cavalo, biquinis nas praias e maiôs cavados em concursos de misses —, o demagogo, "movido por forças terríveis", renunciou ao cargo. 

Na manhã do dia 25 de agosto, após ser acusado por Carlos Lacerda — que viria a ser um dos articuladores civis do Golpe de 1964 e a ganhar o epíteto de “demolidor de presidentes” — de tramar um “golpe de gabinete”, Jânio informou à primeira-dama, dona Eloá, que deixariam Brasília naquela tarde. No Planalto, antecipou aos ministros-chefes das casas Civil e Militar a manchete dos jornais do dia seguinte: “Comunico aos senhores que renuncio, hoje, à Presidência da República. Ajustem o novo Brasil às exigências do Brasil novo. Com esse Congresso, eu não posso governar”.

Findo o desfile do Dia do Soldado, Jânio encarregou o ministro da Justiça de entregar ao presidente do Senado sua carta-renúncia e voou para a Base Aérea de Cumbica, levando consigo a faixa presidencial (que a essa altura não mais lhe pertencia) e a esperança de o pedido não ser aceito — ou de o renunciante de festim ser reconduzido ao cargo por uma manifestação de apoio popular, o que lhe permitira governar sem ser "incomodado pelo Congresso". Mas faltou combinar com os russos.

Mais preocupados em impedir a posse de Jango, os militares esqueceram Jânio, e o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista se seu líder tivesse permitido sua existência. 

Assim, enquanto o país mergulhava na crise provocada pelo veto à promoção do vice a titular, o já ex-presidente embarcou com a mulher num cargueiro com destino à Europa, o presidente da Câmara assumiu (decorativamente) a chefia do Executivo e os ministros militares (que governaram de fato nas semanas seguintes) implementaram a toque de caixa o parlamentarismo. 

Com os poderes limitados e tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, o “vice comunista” foi autorizado a assumir a presidência como chefe de Estado. Mas a experiência parlamentarista foi tão conturbada quanto curta: um plebiscito realizado em 6 de janeiro de 1963 restabeleceu o presidencialismo. 

Jango finalmente assumiu o cargo que era seu por direito, mas foi deposto, quinze meses depois, pelo golpe de 1964. Fica evidente, portanto, que a incipiente democracia tupiniquim havia entrado em parafuso em 25 de agosto de 1961, com a renúncia do populista cachaceiro.

Sobre o golpe: Em 1964, partidos de esquerda, grupos comunistas e seus associados discutiam qual a maneira de derrubar o capitalismo burguês e implantar a ditadura do proletariado, se pela luta armada ou pelo caminho reformista. Naquela época, a ampla maioria da esquerda era reformista — pelas chamadas reformas de base, processo que começava com a agrária e incluía um amplo cardápio de estatizações. 

Jango, filiado ao PTB getulista, estava claramente no campo da esquerda. Ainda que houvesse comunistas em seu governo e no entorno, o presidente nada tivesse de comunista, a exemplo de ilustres membros do seu gabinete durante o curto período parlamentarista, como os primeiros-ministros Tancredo Neves e Santiago Dantas, que eram, no máximo, socialdemocratas, trabalhistas ou nacionalistas.

Como o grupo comunista era claramente minoritário, o sucesso de Jango levaria o Brasil a uma economia mais estatizada, com o aumento dos gastos públicos em todos os setores, dos sociais à infraestrutura (mais ou menos como aconteceu no governo ditatorial do general Ernesto Geisel, um nacionalista e estatizante da primeira linha, e no governo Lula, mas isso é outra conversa). 

Em 1964, no auge da “Guerra Fria” o mundo estava dividido entre os EUA e a URSS. As plataformas reformistas — aqui, no Chile, na Argentina etc. — procuravam se aproximar não propriamente da União Soviética, mas do “Bloco do Terceiro Mundo”, que se declarava independente, mas pendia para a esquerda, ou seja, era adversário dos EUA, que, nessa disputa, patrocinavam ditaduras direitistas para, como se dizia na época, evitar a ditadura comunista.

Não havia a menor possibilidade de uma vitória comunista. Nem pela via reformista, nem pela luta armada. A melhor chance de uma guerrilha no Araguaia ou no Vale do Ribeira era a de ser massacrada, como de fato aconteceu. Mas foi nesse quadro que parte da elite brasileira, representada por partidos e associações civis, bateu às portas dos quartéis. 

Os militares atenderam rapidamente, pois a doutrina que aprendiam era simplesmente Ocidente versus Pacto de Varsóvia (a frente militar da URSS). O Congresso chancelou a derrubada de Jango e elegeu presidente o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, marechal Humberto de Alencar Castello Branco. Mas só o fez porque a alternativa era o fechamento.

Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe, achando que seria um interregno necessário para garantir a eleição presidencial de 1965, que seria disputada entre Juscelino Kubitschek (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador, liberal, democrata). Mas não tardaram a se arrepender, e foram abandonando o governo militar à medida que este radicalizava, transformava-se numa verdadeira ditadura e dava sinais de que tencionava se perpetuar no poder. Lacerda, apoiador do golpe, terminou cassado e se uniu a JK, também cassado, numa frente pela democracia.

O Congresso funcionou durante os 21 anos de ditadura — noves fora os breves momentos em que ousou discordar do regime — e “elegeu” todos os presidentes, mas somente depois que os generais de quatro estrelas decidiam quem seria o mandatário de turno. 

Partidos políticos foram proibidos, a imprensa, censurada, opositores — tanto democratas quanto comunistas —, presos, torturados e mortos. Quando a política econômica finalmente fracassou — com recessão, dívida externa explosiva e inflação —, a ditadura caiu e os militares se retiraram, liderados por colegas de bom senso num processo conduzido por políticos habilidosos.

Em 1985, Tancredo Neves (MDB) derrotou Paulo Maluf (ARENA) por 480 a 180 votos de um colégio eleitoral formado por senadores, deputados federais e membros das assembleias legislativas estaduais. Mas quis o destino o presidente eleito fosse internado 12 horas antes da posse e dado como morto 38 dias e 7 cirurgias depois — ironicamente, no dia 21 de abril, feriado que homenageia Tiradentes, o Mártir da Independência.  

ObservaçãoSegundo a versão oficial, uma diverticulite obrigou Tancredo a ser submetido a uma cirurgia de emergência horas antes da posse. Também oficialmente, sua morte se deu no dia 21 de abril, depois de outras sete cirurgias. O general João Figueiredo se recusou a passar a faixa ao vice, José Sarney — um reles traidor, segundo o fardado, já que o ex-presidente da ARENA e representante do regime militar no Congresso deixara o partido governista e se juntara à oposição. “Faixa a gente transfere para presidente. Não para vice, esse é um impostor”, disse o general, que deixou o Planalto assim que a votação no Congresso foi encerrada. Ainda assim, a mágoa que o último presidente da ditadura guardava do repulsivo oligarca maranhense era menor que a resistência da caserna ao deputado Ulysses Guimarães.

Continua...  

sábado, 9 de março de 2024

NÃO HÁ NADA COMO O TEMPO PARA PASSAR E O VENTO... CONTINUAÇÃO



Muita coisa precisa mudar para o Brasil deixar de ser um país com muitas leis e pouca vergonha na cara e se tornar uma democracia como manda o figurino (detalhes nesta postagem). A Constituição Cidadã foi uma conquista, mas não a panaceia esperada após 21 anos de ditadura. Ao discursar na cerimônia de promulgação, o deputado Ulysses Guimarães frisou: "A Constituição certamente não é perfeita; ela própria o confessa ao admitir a reforma." E haja reforma! em 35 anos de vigência, nossa Carta Magna foi emendada 128 vezes. 

Infelizmente, podem-se contar nos dedos as PECs que visaram aos interesses da população. Um exemplo de emenda que ficou pior que o soneto foi a da reeleição — um casamento que parecia ser o passaporte para o paraíso, mas se transformou na antessala do inferno. Ela foi promulgada na primeira gestão de Fernando Henrique, ao som do tilintar de verbas e das vozes de deputados pilhados falando sobre uma "cota federal" destinada à compra dos votos (detalhes nesta postagem). 

Como "quem parte e reparte e não fica com a melhor parte é burro ou não tem arte", o tucano de plumas vistosas impulsionou sua recandidatura com um ruinoso populismo cambial. Reeleito, desvalorizou o real no primeiro mês de seu segundo mandato. Mas o problema das consequências é que elas sempre vêm depois

Observação: Em 2020, com 23 anos de atraso, o eterno presidente do honra do PSDB reconheceu o desastre político que produziu, e que foi uma ingenuidade "imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a eleição". Mas o problema das autocríticas, que elas sempre chegam tarde.

A maioria dos presidenciáveis prometeu propor o fim da reeleição, mas nenhum manteve a promessa depois de se aboletar no trono do Planalto. E Bolsonaro levou a perversão às fronteiras do paroxismo: a despeito de todo o populismo eleitoral, tornou-se o primeiro presidente da história a pleitear um segundo mandato e ser barrado nas urnas. Ao tentar um golpe de Estado, imaginou que o impossível é apenas um vocábulo que traz o possível injetado dentro de si. 
 
O Senado deve votar em breve o fim da recondução ao cargo de presidente, governador e prefeito, o aumento dos mandatos de quatro para cinco anos e a unificação de eleições municipais e gerais. Apôs expor as alternativas a Rodrigo Pacheco e líderes partidários, o relator Marcelo Castro, virtual coveiro da reeleição, exaltou o óbvio: "Não está funcionando.

Observação: Lula é contra a mudança, mas a opinião de um admirador confesso de Maduro, Castro et caterva, que culpa a Ucrânia pelo conflito no Leste Europeu e diz que democracia é "um conceito relativo", não pode ser levada a sério. 
 
Outra mudança que se impõe tem a ver com o STF, mais exatamente como a forma como são indicados os substitutos dos ministros que trocam a suprema toga pelo supremo pijama — ou pelo pijama de madeira, como aconteceu com Menezes Direito em 2009 e Teori Zavascki em 2016 
—, lembrando que a aposentadoria é compulsória quando o togado completa 75 anos, mas nada impede suas excelências de antecipá-la, como fez Joaquim Barbosa em 2012, aos 59 anos. 
 
De acordo com o artigo art. 104 da CF, os candidatos devem ser brasileiros natos, ter entre 35 e 65 anos e gozar de reputação ilibada e notável saber jurídico. Não é preciso ser juiz de carreira, advogado ou mesmo bacharel em Direito. Na prática, basta cair nas boas graças do PR de turno (que é o responsável pela indicação), de pelo menos 14 dos 28 integrantes da CCJ do Senado e 41 dos 81 senadores na sessão plenária. 

Observação: A sabatina é eminentemente protocolar: em 134 anos de república, os senadores rejeitaram apenas 5 indicações, todas durante o governo de Floriano Peixoto (confira essa e outras curiosidades no estudo publicado pelo decano Celso de Mello em 2014).
 
A posse acontece numa cerimônia realizada no próprio STF, quando então o novo minitro veste a toga e se acomoda na poltrona de onde passará a julgar e condenar os pobres, absolver os ricos, soltar traficantes e chefes de organizações criminosas e amoldar a Constituição para favorecer políticos corruptos e outros criminosos de estimação. 

Entre juízes auxiliares, estagiários, capinhas e terceirizados, o Supremo emprega 2.500 funcionários (média de 222 por ministro) e custa mais de R$ 1 bilhão por ano aos contribuintes. E enquanto os "padrinhos" ficam no Planalto por 4 ou 8 anos (Lula é um ponto fora da curva, mas isso é outra convexa), seus apadrinhados permanecem inamovíveis até sabe Deus quando. O impeachment é previsto na Constituição, e nunca faltaram pedidos, mas nenhum ministro jamais foi penabundado.
 
Continua...

terça-feira, 21 de setembro de 2021

COISAS DO BRASIL (PARTE II)

 

Albert Einstein dizia que o universo e a estupidez humana são infinitos (mas, no tocante ao universo, ele não estava 100% convencido) e Karl Marx, que a história sempre se repete como tragédia ou farsa. Diante de tanta estupidez, fica mais difícil a cada dia distinguir tragédia de farsa num país em que o passado se harmoniza em toda a sua mediocridade.

Se há um elemento que não se pode subestimar, atualmente, é o limite da estupidez humana. Vivesse no Brasil de hoje e não na França do século XVII, Descartes teria dito “penso, logo desisto” em vez de “penso, logo existo”. Como não há nada mais frustrante do que tentar ver a realidade sob o prisma da lógica, o pensamento cartesiano foi descartado. 

Nas manifestações do último dia sete (e em outros protestos antidemocráticos que aconteceram antes delas), bolsonaristas boçais pugnavam pela volta dos "anos de chumbo" — um passado que a maioria deles jamais conheceu e, portanto, não sabe (ou sabe apenas pelos livros de história) o que foi a ditadura militar implementada pelo golpe de Estado de 1964. Em atenção a essa récua, relembro que a renúncia de Jânio Quadros (em 25 de agosto de 1961) deu azo à malsucedida experiência parlamentarista que resultou na deposição do vice de Jânio,  João Goulart e guindou ao Planalto o marechal Humberto de Alencar Castello Branco

Ao longo dos 21 anos seguintes, outros quatro estrelados presidiram esta banânia — Artur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Beckmann Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo, nessa ordem. Em 1974, porém, Geisel deu início a um lento processo de reabertura que propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves (em 1995). Mas o fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” do "alemão" e de seu sucessor, nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso.

Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a Presidência pelo PMDB, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo um programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pelo dia 15 de março — data prevista para a posse do primeiro presidente civil da "Nova República". Mas o que deveria ser uma festa da democracia transformou-se em luto nacional: Tancredo foi internado na véspera da cerimônia e faleceu 38 dias e 7 cirurgias depois — em 21 de abril, que, ironicamente, homenageia Tiradentes, o "Mártir da Independência".  

Depois de algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara Federal (Ulysses Guimarães) assumir o posto, foi acertado que José Sarney — vice na chapa de Tancredo — seria empossado. E foi o que aconteceu, conforme eu também já comentei em outras oportunidades.

O Brasil polarizado pelo execrável discurso lulista do "nós contra eles" vem reproduzindo uma frase que estava na boca de alguns saudosistas de tempos em que notícias sobre violência e economia em marcha lenta pareciam raras: “Na época dos militares era melhor”, dizem os que sequer tinham nascido e, portanto, ignoram a repressão e a filtragem de notícias negativas à ditadura.

Por alguma razão que escapa ao meu limitado entendimento, jovens apoiadores da tragédia em forma de gente que (ainda) ocupa o Palácio do Planalto parecem acreditar que no tempo do regime militar o Brasil era mais alentador — ideia que seu "mito" alimenta tecendo elogios aos anos de chumbo. Entre os argumentos mais utilizados por essa ospália está a conquista do "milagre econômico", que teria ocorrido entre 1968 e 1973.

De fato, naquela época o Brasil conseguiu crescer exponencialmente — cerca de 10% ao ano — e atingir, em 1973, uma marca recorde do PIB, que aumentou 14%. O avanço veio acompanhado de uma forte queda de inflação — a taxa medida na época pelo Índice Geral de Preço (IGP) caiu de 25,5% para 15,6% no período.

O que não se explica diante desse número, entretanto, é o fato de o crescimento ter sido muito bom para banqueiros e empresários, mas ruim para os trabalhadores. Para que o plano de crescimento funcionasse, os militares mudaram a fórmula que previa o reajuste da remuneração pela inflação, levando a perdas reais para a população em geral.

A melhora na atividade econômica se explica pela conjuntura mundial mais favorável, que oferecia crédito externo farto e barato e favorecia a criação de novos postos de emprego no mercado formal e a expansão do consumo interno. Mas o "milagre" se deveu principalmente ao dinheiro proveniente de multinacionais — que encontraram no Brasil um terreno propício para a expansão sob a tutela dos militares — e de empréstimos advindos de fundos internacionais.

Por outro lado, a concentração de renda também aumentou muito naquele período, fazendo com que a desigualdade social conhecesse atingisse patamares nunca antes alcançados, e os altos índices de crescimento do PIB não produziram uma melhora nos indicadores sociais — o índice Gini quase quadruplicou entre 1964 e 1977. E o investimento maciço dos governos militares na industrialização resultou no êxodo rural — segundo o IBGE, apenas 16% da população morava no interior do país em 2010).

Para equilibrar as contas públicas, controlar a inflação e desenvolver o mercado de créditos, a gestão de Castello Branco adotou um ambicioso programa de reformas (Plano de Ação Econômica do Governo) que criou diversos mecanismos de incentivo às exportações, mas foi no governo Médici, com Antonio Delfim Netto à frente do ministério da Fazenda, que o projeto econômico mirou o crescimento rápido, com destaque para indústria automobilística e grandes obras de infraestrutura, como a construção da Ponte Rio-Niterói (que começou em 1969 e foi inaugurada em 1974) e a nunca terminada Rodovia Transamazônica.

No início dos anos 1970, a crise do petróleo, resultante de conflitos entre países membros Opep, elevou o preço do barril de US$ 3 para US$ 11,60, castigando drasticamente países importadores, como era o caso do Brasil, e quebrando o modelo econômico baseado no alto endividamento externo. Como a estabilidade econômica era um argumento essencial para a manutenção do governo militar, os economistas chapa-branca decidiram que o país deveria continuar crescendo a qualquer custo, ainda que se endividando cada vez mais.

Foi nesse cenário que o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (IIPND), mais ousado que o primeiro, investiu especialmente na criação e expansão de empresas estatais. A Petrobrás, por exemplo, ganhou subsidiárias, e a usina hidrelétrica de Itaipu foi construída, visando tornar o país independente da importação de energia, gerar renda através da produção própria e se valer de parte dessa renda para quitar a dívida externa.

Como o imprevisível costuma ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, a crise se prolongou além do previsto e a conta do crescimento baseado em um alto grau de endividamento ficou para a redemocratização. Quando os fardados voltaram para a caserna, em 1984, a dívida externa tupiniquim representava 54% do PIB — vinte anos antes, por ocasião do golpe militar, esse percentual correspondia a 15,7% do PIB. Como não poderia deixar de ser, a inflação disparou, chegando a 223% em 1985 e a 1782% durante o malfadado governo Sarney.

Outro falácia tão escabrosa quanto a de ter acabado com a Lava-Jato porque não existe mais corrupção no governo é a de que não havia corrupção durante a gestão dos militares. No mundo real atual, o sem-número de fatos que estão apurados por investigações que miram Bolsonaro e quatro de seus cinco filhos, as relações promíscuas do clã-presidencial com milicianos e toda sorte de cambalachos descobertos pela CPI do Genocídio falam por si. 

No mundo real dos tempos de antanho, foi durante a ditadura militar que as relações espúrias entre órgãos públicos e interesses privados mais floresceram, tanto porque não havia investigação quanto porque os censores chapa-branca não permitiam a publicação de notícias desfavoráveis ao governo. 

Mas isso é conversa para a próxima postagem.