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terça-feira, 7 de novembro de 2023

DE VOLTA ÀS INDICAÇÕES AO STF

 

A fé move montanhas, mas, por via das dúvidas, o chanceler Mauro Vieira continua empurrando, enquanto os 34 nomes que o Itamaraty enviou às autoridades de Israel e do Egito rezam para que mísseis não lhes caiam sobre a cabeça. Já não há força no universo capaz de deter no primeiro escalão do governo Lula a maledicência segundo a qual o "fator revide" retarda a repatriação. Cada minuto a mais é uma eternidade a menos na taxa de sanidade mental dos que esperam. Diz-se nos bastidores que o pavio de Lula ficou mais curto. Nada melhor do que a impotência para esticar o pavio. Resta a quem não dispõe da força lembrar que a diplomacia traz a maciez injetada no nome.

***

Ao chancelar a indicação do advogado de estimação de D. Lula III para o STF, que viola claramente o princípio da impessoalidade, o Senado ratificou sua vocação para repartição cumpridora das ordens do Planalto. Mas estamos no Brasil, onde não há inocentes na política. E isso tabmém se aplica a quem vota em candidatos como ErundinaAgnaldo Timóteo, Romário, Tiririca (sem mencionar o rinoceronte Cacareco e o Macaco Tião), lembrando que maus políticos não "brotam" nos gabinetes por geração espontânea. 

Observação: Acusado de protecionismo durante a criação do Mundo por favorecer a porção de terra que futuramente tocaria ao Brasil, disse o Senhor das Esferas: "Esperem para ver o povinho de merda que eu vou botar lá." Dito e feito.

Churchill ensinou que a "democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras
— mas disse também que "o melhor argumento contra a democracia é cinco minutos de conversa com um eleitor mediano. Já o general Figueiredo lecionou que "um povo que não sabe sequer escovar os dentes não está preparado para votar".

De acordo com o art. 101 da Constituição Cidadã, os aspirantes à suprema toga são escolhidos pelo presidente da República e empossados depois que a CCJ do Senado e o plenário aprovam a indicação. A sabatina é meramente protocolar: desde a proclamação da República, apenas cinco candidatos foram reprovados (todos no final do século 19). 
 
No período pós-ditadura, Sarney indicou Celso de Mello, e Collor, o primo Marco Aurélio. Suas vagas foram preenchidas respectivamente por Nunes Marques e André Mendonça. Fernando Henrique indicou Gilmar Mendes, e TemerAlexandre de Moraes. As demais togas foram distribuídas por Lula e por Dilma ao longo dos 13 anos, 4 meses e 14 dias de jugo lulopetista.
  
Há no Supremo diversas esquisitices 
 como ministro reprovado em concurso para juiz ou que mantém negócio privado. Com a chegada de Nunes Marques, a supremacia da corte foi tisnada pelo currículo-tubaína do substituto do libertador de traficantes. Com essa indicação, Bolsonaro enfiou "10% de si mesmo na corte", e com a do pastor André Mendonça, cumpriu a promessa de nomear um ministro terrivelmente evangélico. 
 
Observação: A aprovação do dublê de ministro da Justiça e pastor presbiteriano foi comemorada com pulinhos, gritinhos de “Aleluia”, “Glória a Deus” e frases ininteligíveis por Micheque (ou Mijoias), que, a exemplo do marido, jamais ouviu falar em "liturgia do cargo". Jobim (o ex-ministro, não o maestro) disse certa vez que o Brasil não é para amadores. Mas o país está ficando esquisito até para os profissionais.
 
Qual a imparcialidade que se pode esperar de Zanin, que até outro dia recebia e cumpria ordens do atual presidente? Não dá. Na sabatina, os nobres senadores não examinaram nada; fizeram de conta que perguntavam e o candidato fez de conta que respondia. E teria sido aprovado mesmo que falasse em aramaico para a banca examinadora, uma vez que essa era a vontade de Lula.
 
Entre as muitas coisas inúteis da vida brasileira, poucas competem com essas sabatinas. Por que montar esse circo mambembe, com a simulação de que estão sendo tomadas decisões importantes para o país, se essas decisões não têm importância nenhuma? Zanin estava aprovado antes mesmo de seu nome ser oficialmente apresentado. Nunca foi um candidato; sempre foi um novo ministro. Quem decidiu tudo foi Lula, não o Senado. Ninguém procurou seque manter as aparências.

Qual é o "notável saber jurídico" do ex-advogado de Lula? Não se sabe. Não há registro de que exista, não no mundo das realidades. Ele não fez pós-graduação em Direito, não escreveu nenhum livro ou artigo que chamasse a atenção por sua qualidade como exposição de conhecimentos jurídicos, não comandou seminários nem tampouco deu cursos dos quais alguém se lembre. Sua única qualificação é ter sido nomeado por Lula — que é a única que realmente vale no Brasil de hoje.
 
A nomeação do nobre causídico reacendeu o debate acerca da escolha das togas. Nos últimos dez anos, foram apresentadas 23 PECs propondo mudanças na formatação da corte, no processo de indicação e na fixação de tempo de mandato das ministros. Dessas, cinco foram protocoladas no Senado, mas somente a PEC 16/2019 continua tramitando (as demais foram arquivadas no final da legislatura). Na Câmara, 14 das 18 PECs seguem em tramitação, mas, como algumas foram apensadas a outras, esse número gira em torno de seis.

Com J.R. Guzzo

sexta-feira, 19 de maio de 2023

ALI BABÁ E OS 40 LADRÕES



Depois que Alexandre de Moraes colocou Anderson Torres em liberdadeMauro Cid, que mandou dizer a Bolsonaro que não pretendia enredá-lo em seus futuros depoimentos à PF,  troca o advogado Rodrigo Roca, avesso a delações, pelo criminalista Bernardo Fenelon, especialista em delações.
 
A senha que conduziu a PF às nuvens conectadas ao celular do ex-ajudante de ordens do capetão abriu a caverna do ex-primeiro casal. Em meio a cartões de vacina falsificados e diálogos golpistas, os investigadores esbarraram na caixa registradora de Michelle Bolsonaro. Aos pouquinhos, vai sendo exposto o lado Ali Babá dos ex-inquilinos do Alvorada.
 
Numa das mensagens, Cid compara as transações à rachadinha de Zero Um. Micheque fazia compras com um cartão de crédito da amiga Rosemary Cardoso Cordeiro, e ele, Cid, pagava as faturas em dinheiro vivo, sacado em uma agência do Banco do Brasil dentro do Planalto. Para piorar, uma empresa com contratos firmados com a estatal Codevasf fez pelo menos 12 depósitos na conta do sargento Luis Marcos dos Reis (coisa de R$ 25.360), subordinado a Cid, e que, segundo a PF, o realizou pagamentos de despesas atribuídas à ex-primeira dama.

Preso numa unidade militar e cercado por indícios de fraude, Cid depôs no inquérito sobre a fraude nos cartões de vacina, reconhecendo em privado que se encontra num local bastante parecido com um buraco. E a vida ensina que a primeira regra dos buracos é singela: quando se cai dentro de um, deve-se parar de cavar. Se contar aos investigadores que apenas cumpria ordens quando entrou no sistema do Ministério da Saúde para injetar vacinas falsas nos cartões de Bolsonaro e da filha do ex-chefe, o coronel abandona a picareta e reduz o tamanho de sua pena. Se endossar a versão segundo a qual agiu por conta própria, sem o conhecimento do ex-chefe, jogará terra sobre si mesmo. Na dúvida, ele preferiu ficar em silêncio.


Observação: Até bem pouco, Cid era festejado como avis rara do bolsonarismo, um eficiente faz-tudo do então presidente. Hoje, está abandonado à própria sorte. Ao interrogar Bolsonaro 48 horas antes da inquirição de Cid, a PF ofereceu ao coronel uma oportunidade para refletir sobre o próprio futuro. Em quase três horas de interrogatório, Bolsonaro limitou-se a entoar o bordão "eu não sabia". Acomodou todas as culpas sobre os ombros de CidLançando mão dos melhores estratagemas para atingir os piores subterfúgios, o ex-mito negou a própria fama. De presidente mandão, converteu-se num coadjuvante nato.

Ficou mais difícil sustentar a tese de que Cid agiu sozinho. Notícia do Globo informa que a PF descobriu que a senha de acesso de Bolsonaro ao aplicativo ConecteSUS, que estava associado ao email de Cid, foi transferida para o coronel Marcelo Costa Câmara, que integra a equipe de oito assessores a que o ex-mandatário tem direito, mas tornou-se inviável para esse estrupício reeditar o bordão "eu não sabia." 

Por baixo das narrativas falaciosas do verdugo do Planalto, seus protetores precisam acomodar outras camadas de mentiras — como a declaração categórica do ex-mandatário feita após a batida policial em sua casa: "Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina. Ponto final" e a sinalização de que o Cid se dispõe a assumir as culpas sozinho, isentando o ex-chefe.

No tempo em que Brasília ainda tentava fazer sentido, os valores pareciam mais nítidos. Bolsonaro se considerava um deus onipresente e Cid, pau mandado do capetão, um militar cioso da hierarquia. Subitamente, a nitidez perdeu a função. Nada é o que parece. Bolsonaro virou um antilíder e o coronel puxa-saco foi brindado com a alternativa de se reposicionar em cena, de se comportar como o sujeito que reclama do barulho quando a oportunidade bate à porta.


Pintou um clima entre o bolsonarismo e a picaretagem financeira. Tornou-se difícil ouvir falar em Deus, pátria e família sem reprimir um sorriso interior. Doravante, sempre que o ex-primeiro casal escorar suas atitudes na tríade predileta do fascismo, uma voz no fundo da consciência dos brasileiros avisará: "Farsantes!" Mal comparando, o convívio com Bolsonaro é mais ou menos como o sarampo, cuja falta de cuidado deixa marcas indeléveis. 
 
Michelle já convivia com as erupções dos R$ 89 mil que Fabrício Queiroz borrifara em sua conta bancária. Surgem agora em sua biografia imaculada infecções que potencializam o caráter criminal da moléstia. São sete os pecados capitais: soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça. Madame se enroscou no oitavo, ainda não catalogado: o pecado do capital propriamente dito. Sua pose de cristã limpinha perdeu o prazo de validade. Virou um inquérito policial esperando na fila para acontecer. Os dados extraídos do celular de Cid transformam-na de coadjuvante de uma rachadinha do enteado a estrela do seu próprio escândalo financeiro. 
 
No despacho em que autorizou a extensão das quebras de sigilos de Cid a funcionários da Presidência e pessoas ligadas à ex-primeira-dama, o ministro Alexandre anotou que os dados colecionados pela PF revelaram "fortes indícios de desvio de dinheiro público, por meio da Ajudância de Ordens da Presidência da República" para pessoas indicadas pelas duas assessoras da ex-primeira-dama. Aos pouquinhos, os indícios vão se convertendo em provas duras de roer. Vêm à luz coisas que deixariam Ali Babá e os 40 ladrões ruborizados.
 
Deus, como se sabe, está em toda parte. Mas, ao sentir os odores que exalam das finanças de Michelle, o Senhor das Esferas achou melhor cuidar de outras coisas.

Com Josias de Souza

domingo, 19 de fevereiro de 2023

MAS É CARNAVAL...

DE SACO CHEIO. NÃO AGUENTO MAIS!

Etimologicamente, carnaval vem de carnis levale — o jejum da carne e de outros prazeres mundanos que a intrometida santa madre igreja proibia seus fieis de fruir durante a Quaresma

O Brasil é conhecido como o "país do Carnaval, mas a festa pagã foi trazida pelos colonizadores com o entrudo. Tempos depois vieram os cordões. os ranchos, os bailes de salão, os corsos, as escolas de samba, os afoxés, os frevos e os maracatus.

Observação: O Brasil é um país laico. Embora a maioria da população se declare católica, evangélicos e protestantes vêm se reproduzindo feito coelhos.

Deus criou a fé e o amor, e o Diabo, invejoso, trouxe as religiões e o casamento. Eu acho que a versão bíblica de Adão, Eva, a maçã e a serpente não passa de mera cantilena para dormitar bovinos, mas acredito que o Senhor das Esferas, questionado por favorecer o Brasil durante a criação do mundo, disse aos opositores que colocaria aqui um "povinho de merda". 
 
Promessa feita, promessa cumprida: graças à falta de discernimento dessa escumalha, a parcela minimamente eleitorado do eleitorado tupiniquim teve de se juntar aos sectários do lulopetismo para evitar que uma súcia de imbecis travestidos de patriotas reelegesse um imbecil travestido de presidente.
 
Continua...

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O CORAÇÃO DE D. PEDRO I (PARTE FINAL)


Para escamotear o autoritarismo, D. Pedro I convocou eleições para uma nova Constituinte, mas não estabeleceu data, e o decreto foi logo esquecido. Quatro meses depois, pela "graça de Deus e unânime aclamação dos povos", ele outorgou a nossa primeira Constituição e, dos 179 artigos, reservou 88 para o Poder Legislativo. Mas seu apreço pelo Parlamento não era sincero. Tanto que o manteve fechado por dois anos e meio, e, quando o reabriu, limitou seu período de funcionamento a quatro meses por ano. 

"Democrático", o imperador definiu que as eleições seriam indiretas. Nos municípios, votariam os maiores de 25 anos, livres (30% da população era escrava), excluídos os criminosos, criados e quem não tivesse renda anual mínima de 200 mil-réis — a restrição da renda tinha como referência alqueires de farinha de mandioca, daí a expressão Constituição da mandioca. Os eleitos nos municípios seriam eleitores para as esferas provincial e nacional. 
 
"O Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros", rezava a Constituição. Todos, para sua alteza, era uma ínfima minoria: os livres e que tivessem renda mínima. Democracia era boa, mas desde que controlada. O Senado seria eleito — de forma restrita, como era estipulado —, mas os eleitores somente indicariam suas preferências ao imperador. Dos três mais votados, um deles seria escolhido. O mandato seria vitalício (com o claro objetivo de evitar tanto quanto possível as eleições para o Senado). 
 
Observação: Machado de Assis retratou como a vitaliciedade transformava aquela Casa em um cenáculo de anciãos: "o Marquês de Itanhaém, quando chegava ao Senado, "mal se podia apear do carro, e subir as escadas; arrastava os pés até à cadeira [...] Era seco e mirrado [...]. Nas cerimônias de abertura e encerramento agravava o aspecto com a farda de senador. Se usasse barba, poderia disfarçar o chupado e engelhado dos tecidos, a cara raspada acentuava-lhe a decrepitude".
 
Precavido, D. Pedro I reservou 11 artigos para tratar da "família imperial e sua dotação". Determinou que caberia ao país manter seus príncipes e à Assembleia, determinar os valores das dotações. Pensando em si mesmo, estabeleceu, no artigo 108, que “a dotação assinada ao presente imperador e à sua augusta esposa deverá ser aumentada, visto que as circunstâncias atuais não permitem que se fixe desde já uma soma adequada ao decoro de suas augustas pessoas e dignidade da nação". Sem distinguir os recursos familiares daqueles originários do Erário nacional — uma prática nociva que perdura até hoje —, ele impôs, no artigo 115, que "os palácios e terrenos nacionais, possuídos atualmente pelo senhor D. Pedro I, ficarão sempre pertencendo aos seus sucessores; e a nação cuidará nas aquisições e construções que julgar convenientes para a decência e o recreio do imperador e sua família".
 
A despeito do manto de imperador constitucional, D. Pedro I impôs mais um artigo centralizador: "o governador provincial seria nomeado pelo imperador, que o poderá remover, quando entender que assim convém ao bom serviço do Estado". Como, no Brasil, os maus exemplos são sempre seguidos, o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar implantada em 1964 também se valeram desse artifício e impuseram à força os governadores estaduais como meros delegados do poder central.
 
Dentro desse perfil autoritário, nosso primeiro imperador reservou apenas 14 artigos constitucionais para o Judiciário — três a mais que os dedicados aos recursos pecuniários da família real — e restringiu o quanto pôde a autonomia dos juízes. Mesmo afirmando que "o poder judicial é independente", o artigo 154 determinava que "o imperador poderá suspendê-los [os juízes] por queixas contra eles feitas, precedendo audiência dos mesmos juízes, informação necessária, e ouvido o Conselho de Estado". Como se não bastasse tamanha concentração de mando, sua majestade criou o quarto poder — o Moderador —, que era "delegado privativamente ao Imperador como chefe supremo da nação". Além disso, determinou que “o Imperador é o chefe do Poder Executivo" e que "a pessoa do Imperador é inviolável e sagrada, não estando sujeita a responsabilidade alguma". 
 
Esse sentimento de poder absoluto explica como, em 1831, sem apoio militar e sob forte pressão popular, D. Pedro I optou pela renúncia. No texto de cinco linhas, em um papel sem timbre, escreveu: "Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei mui voluntariamente abdicado na pessoa do meu mui amado e prezado filho o senhor D. Pedro de Alcântara". O documento não tem destinatário nem explicita do que ele abdicou — não precisava: para o imperador, o poder era uma extensão de si mesmo. E pior é que essa mentalidade fez escola.
 
Não é acidental que o autoritarismo esteja tão presente no Brasil. O país já nasceu com uma organização política antidemocrática. E o poder nunca se reconheceu como arbitrário. Ao contrário, D. Pedro I inaugurou o arbítrio travestido de defensor das liberdades — a esquizofrenia de um discurso liberal e uma prática repressiva. No mesmo ano da Constituição outorgada, escreveu que era indigno "um governante que não ama a liberdade de seu país e que não dá aos povos aquela justa liberdade" Continuou: "Amo a liberdade e, se me visse obrigado a governar sem uma Constituição, imediatamente deixaria de ser imperador, porque quero governar sobre corações com brio e honra, corações livres". Encontrou resposta dos autênticos liberais, como Cipriano Barata: "Os habitantes do Brasil desejam ser bem governados mas não se submeter ao domínio arbitrário". E foi ainda mais direto: ele "não é o nosso dono".
 
No fim da Constituição, D. Pedro I incluiu algumas garantias políticas e civis no artigo 179. Mesmo perseguindo, ameaçando e prendendo jornalistas que criticavam seus atos, a Carta fala que "todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura". Não foi o que a prática imperial demonstrou: em junho de 1823, o jornalista Luís Augusto May, redator de A Malagueta, acreditando no “liberalismo”, fez duros ataques ao governo. Em vez do respeito à liberdade de imprensa, ele foi alvo de um bárbaro espancamento na própria casa por um grupo de quatro mascarados (algumas fontes informam que o imperador teria participado pessoalmente do ato). Ironicamente, o mesmo artigo constitucional dispunha que "todo cidadão tem em sua casa um asilo inviolável".
 
Ainda proclamando os direitos do cidadão, e mantendo a dissociação entre o Brasil real e o legal, a Constituição determinava que "as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes". Mas pior, muito pior, é o parágrafo 19 do mesmo artigo: "Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as penas cruéis". 
 
A ironia e a crueldade desse parágrafo são enormes. Até 1886, dois anos antes da Lei Áurea, os escravos continuavam a ser castigados barbaramente por seus senhores. Durante todo o Império vigorou o Código Criminal, que, no artigo 60, determinava que, "se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado à de açoites, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro, pelo tempo e maneira que o juiz determinar". 

Já o artigo 44 dispunha que "a pena de galés sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados". Tal castigo só foi abolido após a morte de dois escravos que tinham recebido uma pena de 300 açoites cada um. O fato, ocorrido a 70 quilômetros do Rio de Janeiro, teve enorme repercussão, e o Parlamento acabou aprovando a eliminação desse castigo corporal. Mas não foi tão simples assim. Parlamentares defensores da escravidão argumentaram que, com a extinção da pena de açoites, restariam as de galés e de prisão com trabalho, e nenhuma delas seria eficaz com relação ao escravo. Para muitos, a de prisão com trabalho, sendo este, como deve ser, regular, tornar-se-ia até um melhoramento da condição senão um incentivo ao crime.
 
Dos países latino-americanos, foi no Brasil que o trabalho escravo negro permaneceu por mais tempo. Em 1870, todos os 643 municípios do Império possuíam escravos. O primeiro golpe na escravatura foi a abolição do tráfico, ocorrido depois de 40 anos de pressões britânicas, pela Lei Eusébio de Queirós (1850). Em 1871, depois de intensos debates, foi aprovada a Lei do Ventre Livre, com o propósito de transformar o regime de trabalho gradualmente, sem abalar a estrutura econômica — mesmo assim, encontrou forte resistência, especialmente nas províncias cafeeiras. Na Câmara, a lei foi aprovada por 65 votos; dos 45 contrários, 30 foram de representantes dos produtores de café, principal produto de exportação do país. O fundo de emancipação criado pela lei obteve poucos resultados: os proprietários aproveitaram para libertar escravos doentes, portadores de deficiência física, cegos, em suma, aqueles "imprestáveis" para o trabalho.
 
A Constituição de 1824 foi a mais longeva — não exatamente por suas qualidades, mas pelas características do regime imperial. Tudo indicava que ela passaria por modificações com o reinado da Princesa Isabel, mas a abolição e as transformações oriundas do grande desenvolvimento da economia cafeeira estavam levando ao nascimento de uma sociedade mais plural, e o golpe militar republicano de 1889 acabou interrompendo esse processo.
 
Fonte: A História das Constituições Brasileiras — Prof. Marco Antonio Villa

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

RESTAURE-SE O IMPÉRIO DA MORALIDADE OU LOCUPLETEMO-NOS TODOS! — CONTINUAÇÃO


Em setembro do ano passado, Jair Bolsonaro chamou o ministro Alexandre de Moraes de “canalha” e avisou que não iria cumprir suas decisões. Intimado por Moraes a depor, Bolsonaro não deu as caras. Se a única resposta à desobediência for o processo por crime de responsabilidade, como previu o ministro Luiz Fux há quatro meses, o Supremo flerta com a desmoralização. Há no gavetão de pendências do réu que preside a Câmara mais de 140 pedidos de impeachment. Remunerado por um orçamento secreto que recebeu o aval da própria Corte, o Centrão, em vez de derrubar o mandatário de fancaria, prefere controlar o cofre.

Mas tem mais: Segundo apurou a CPI do Genocídio, o capitão deu de ombros para a denúncia feita pelo deputado Luís Miranda e seu irmão, Luís Ricardo, que flagrou a tentativa de pagamento antecipado de US$ 45 milhões pela vacina indiana Covaxin. Diante do escândalo, o ministro Onyx Lorenzoni e o coronel Elcio Franco, número 2 da gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde, acusaram os irmãos Miranda de usar uma nota fiscal falsa. Quando se soube que o documento era autêntico, alegou-se, que Bolsonaro avisara Pazuello sobre os malfeitos às vésperas da saída do general do ministério da Saúde. Não convenceu. Informou-se na sequência que o ministro demissionário encarregara seu segundo de tomar providências. Com a velocidade de um raio, Franco constatou que não havia irregularidades na compra das vacinas que custariam R$ 1,6 bilhão ao governo. Posteriormente, alegando “irregularidades insanáveis”, o ministro Marcelo Queiroga anunciou a anulação do contrato. 

Agora a cereja do bolo: O delegado federal William Marinho chegou à inusitada conclusão de que presidente da República não comete crime de prevaricação quando ignora uma denúncia de corrupção que lhe chega ao conhecimento, podendo ser acusado, no máximo, de descumprir um "dever cívico". No final de um processo com mais de 2 mil páginas, o policial — que dispensou até o depoimento de Bolsonaro — anotou que “não faz parte do "dever funcional do presidente comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento a órgãos de investigação como a Polícia Federal”. Em prevalecendo essa posição, ficará entendido que todo funcionário público tem o dever de agir quando souber de irregularidades, sob pena de prevaricar. Mas o presidente, servidor número um do país, pode ignorar os malfeitos ao redor. Não será acusado senão de desatenção com o seu "dever cívico". 

Não é que o crime não compensa. A questão é que, quando compensa, é chamado de descuido cívico.

***

Segundo o Gênesis (do grego Γένεσις, que significa "origem", "criação", "princípio"), “no princípio era o Caos, e do Caos Deus criou o Céu e a Terra (...). Em apenas 6 dias, o Senhor das Esferas transformou o Caos em ordem, criou a luz e separou-a em duas (uma, grande, para governar o dia, e outra, menor, para governar a noite); criou as águas e dividiu-as em duas (e juntou as da porção inferior num só lugar, para que ali emergisse parte seca); cobriu a terra de plantas, povoou-a com todo tipo de seres vivos e, no sexto dia, a cereja do bolo: “Agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. Após concluir Sua obra e ver que tudo era bom (?!), o Criador abençoou e santificou o sétimo dia, e nele descansou.

Do Gênesis bíblico à teoria do Big Bang, diversos povos construíram versões próprias da origem do universo. Na maioria delas, o Caos é tido como uma matéria sem forma definida, mas nenhuma delas menciona que foram os políticos que criaram tanto o caos quanto a corrupção

Não sei como eram as coisas por aqui antes da chegada de Cabral e sua trupe, mas sei que o primeiro registro de corrupção em solo tupiniquim foi anotado por Pero Vaz de Caminha no último parágrafo de sua “Carta de achamento do Brasil”, quando o escriba rogou ao rei de Portugal que intercedesse pelo marido de sua única filha.

Também não sei qual foi a duração do castigo imposto ao genro de Caminha, ou mesmo se D. Manuel atendeu seu pedido (uma vez transitada em julgado, a sentença só podia ser comutada pelo monarca, que tinha poderes previstos em lei para conceder indulto aos apenados). Mas sei que a epístola foi subscrita em 1º de maio de 1.500, de modo que essa é a data em que a praga da corrupção foi semeada na terra em que “em se plantando tudo dá”. E como deu!

Mem de Sá, governador-geral do Brasil entre 1558 e 1572, foi acusado de enriquecimento ilícito, e o governador da capitania do Rio de Janeiro, de cobrar propina dos mercadores de escravos que saíam da África rumo ao Rio da Prata e lá paravam para abastecer. O contrabando foi, de longe, a prática ilícita que mais lucro deu às “elites”, e El-Rei fazia vistas grossas, já que a corrupção tinha efeito benéfico para Portugal. Talvez os hábitos nacionais fossem outros se o Brasil tivesse sido “descoberto” pelos ingleses ou se a colonização do nordeste pelos holandeses tivesse prosperado.

Embora seja um problema mundial, a corrupção teve maior destaque no Brasil-colônia, onde as “elites” se especializaram em passar a perna nos portugueses — que só apareciam para cobrar impostos e barrar a iniciativa privada. Como o que menos presta costuma ser o que mais dura, os políticos de hoje continuam praticando os mesmos atos espúrios que seus antepassados praticavam no século XVI.

A corrupção continua firme e forte porque está profundamente enraizada na sociedade. Em setembro do ano passado, referindo-se à economia mundial, Bolsonaro nos ensinou que “não há nada tão ruim que não possa piorar”. Seu governo (ou desgoverno, melhor dizendo) é a prova provada de que ele está coberto de razão. Até porque os estratagemas usados pela elite colonial persistem até hoje nas práticas ilícitas daqueles que se dizem representantes do povo — haja vista o mensalão petista e o “orçamento secreto” da atual gestão, como já foi detalhado em outras oportunidades.

Até 2019, apenas duas ações penais da Lava-Jato haviam sido julgadas no Supremo. Numa delas — que investigou a presidente do PTGleisi Hoffmann, e seu ex-marido, Paulo Bernardo —, os réus foram absolvidos. Por 3 votos a 2, prevaleceu o entendimento de que os elementos eram “apenas indiciais”, sem comprovação efetiva.

Quando condenaram o primeiro parlamentar no âmbito da Lava-Jato — o deputado federal Nelson Meurer —, os supremos togados declararam a extinção de punibilidade de Cristiano Augusto Meurer, filho do dito-cujo, por prescrição. Entenderam os eminentes ministros que a única conduta que geraria a sanção penal seria de junho de 2008, e que o Estado já não teria mais o direito de puni-la.

Segundo matéria publicada na revista Exame em março de 2019, quando a Lava-Jato colocou o ex-presidente Temer atrás das grades, o único ex-mandatário da “Nova República” que não corria risco iminente de ir parar na cadeira era Fernando Henrique (em que pese o escândalo da compra de votos pela aprovação da PEC da Reeleição).

Naquela época (bons tempos, aqueles), Lula estava cumprindo pena em Curitiba, Sarney era alvo de duas denúncias no âmbito da Lava-JatoCollor respondia a sete inquéritos no STF (e havia se tornado réu num deles em 2017); Dilma era ré por corrupção e lavagem de dinheiro; e o vampiro do Jaburu, tetra réu (duas vezes no Rio, uma em São Paulo e outra no DF). E deu no que deu.     

Depois que o Legislativo deixou de ser confiável — dado o número significativo de deputados e senadores que, mesmo enrolados na Justiça, continuavam (e continuam) transitando livremente pelos corredores do Congresso —, o Judiciário se tornou o último bastião dos brasileiros de bem. Mas alegria de pobre dura pouco, diz o ditado, e também deu no que deu.

Cooptado pela “maritaca de Diamantino”, o STF formou maioria para exumar e ressuscitar uma jurisprudência que vigeu durante míseros 7 anos ao longo das últimas 8 décadas. Em novembro de 2019, graças ao voto de Minerva do então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, ficou decidido que condenados em segunda instância que deveriam permanecer em liberdade até o trânsito em julgado de suas sentenças.

Com quatro instâncias e um formidável cardápio de recursos, apelos, embargos e toda sorte de chicanas criadas sob medida para impedir que corruptos poderosos vejam o sol nascer quadrado, o trânsito em julgado da condenação de corruptos de alto coturno só se dá (e quando se dá) no Dia de São Nunca. Para piorar, na improvável hipótese de um caso fugir à regra, sempre haverá um magistrado de bom coração  pronto a conceder de ofício um alvará de soltura “por razões humanitárias” (como Dias Toffoli concedeu a Paulo Maluf)

Nossas leis são criadas pelo Congresso Nacional, que é formado pela Câmara Federal (composta por 513 deputados) e pelo Senado da República (composto por 81 senadores). Em 2017, nada menos que 238 parlamentares eram investigados ou respondiam a processos no STF. E quando são as raposas que tomam conta do galinheiro e investigam eventuais sumiços de galinhas.... Deu pra entender ou quer que eu desenhe?

A corrupção é um problema endêmico, mas o fato de sermos obrigados a conviver com essa dura realidade não significa que devamos aceitá-la passivamente. Lula não aceitava. Tanto que fundou o PT para implementar “uma maneira diferente de fazer política”. Faltou combinar com a quadrilha do Mensalão. Quando a roubalheira veio à público, o guerrilheiro de araque José Dirceu, então braço direito do picareta dos picaretas, disse em entrevista ao Roda-Viva: “Este é um governo que não rouba, não deixa roubar e combate a corrupção“. 

Pausa para as gargalhadas (ou para as lágrimas, a critério do freguês).

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

VERGONHA NACIONAL


Na política não há inocentes, só culpados. E isso vale também para o eleitorado, uma vez que maus políticos não brotam em seus gabinetes por geração espontânea. 

Vale relembrar a velha anedota segundo a qual o Senhor das Esferas, acusado de protecionismo durante a criação do Mundo por favorecer a porção de terra que futuramente tocaria ao Brasil, assim se pronunciou: "esperem para ver o povinho de merda que eu vou botar lá." Dito e feito.

Churchill dizia que a "democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras". Mas que "o melhor argumento contra a democracia é cinco minutos de conversa com um eleitor mediano. Já o general Figueiredo (que era um sábio e não sabia) disse certa vez que "um povo que não sabe sequer escovar os dentes não está preparado para votar".

A nefasta dicotomia político-ideológica semeada por Lula et caterva, regada pelos tucanos e estrumada pelo bafo do capetão e seus soldadinhos de chumbo alastrou-se país afora, alcançando, inclusive, as cúpulas dos Poderes. Foi por isso que a parcela pensante do eleitorado apoiou o bolsonarismo boçal em 2018, já que a alternativa era a volta do lulopetismo corrupto. E deu no que deu.

Três anos sob os desmandos de um anormal não foram suficientes para a récua de muares munidos de título de eleitor aprender a lição. A julgar pelas pesquisas, teremos novamente eleições plebiscitárias neste ano, e seremos obrigados — mais uma vez — a apoiar quem não queremos para evitar a vitória de quem queremos menos ainda. 

Resta-nos a esperança de o imprevisto ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, fazendo com que um dos dois “salvadores da pátria” saia de cena. Mas isso é apenas um exercício de futurologia baseado não em fatos, mas na esperança que acalentamos de um futuro melhor.

Desgraçadamente, falta ao Congresso probidade e vergonha na cara. Mas o que esperar de uma instituição composta em grande parte por investigados, denunciados e réus — e os insignes parlamentares que não se enquadram numa dessas categorias certamente viriam a se enquadrar se a alta cúpula do Judiciário não estivesse tomada por defensores atávicos da impunidade? Volto a dizer que quando se dá a chave do galinheiro a uma raposa e ela encarrega outras raposas de investigar o sumiço das galinhas... enfim, acho que deu para entender.

Nossas leis são criadas por políticos que se elegem para roubar, roubam para se reeleger e se escudam no abjeto foro especial por prerrogativa de função. Esqueça a história de que “todos são iguais perante a lei”. Sempre houve, há e continuará havendo “os mais iguais que os outros”. 

Presidente e vice, ministros de Estado, senadores e deputados federais só podem ser processados e julgados no STF, e os eminentes togados são rápidos como guepardos quando se trata de conceder habeas corpus a seus bandidos de estimação, aumentar os próprios salários e conceder a si próprios toda sorte de mordomias, mas lerdos como cágados pernetas na hora de julgar ex-presidentes corruptos e sanguessugas aboletados no parlamento.

Fala-se muito da politização do Supremo, mas os ministros só agem quando são provocados. E são os próprios congressistas, descontentes com essa ou aquela situação, que pedem a interferência dos magistrados em assuntos que caberia ao parlamento decidir. Foi assim com a instalação da CPI do Genocídio, que só seguiu adiante depois que uma liminar do ministro Luís Roberto Barroso pôs fim à fleuma (também chamada de “mineirice”) do presidente do Senado. E esse é só um exemplo.

Não quero dizer com isso o STF não erra. Erra, e muito, até porque os ministros são seres humanos (alguns se julga semideuses, mas isso é outra história). Em dezembro de 1914, em aparte à um discurso do senador Pinheiro Machado, Ruy Barbosa disse que o Supremo pode se dar ao luxo de errar por último. Décadas depois, Nelson Hungria, príncipe dos penalistas brasileiros, fez eco ao “Águia de Haia” dizendo que o STF tem “o supremo privilégio de errar por último”.

Todos os poderes da República são guardas da Constituição. A Administração pode se considerar isenta de cumprir lei inconstitucional, mas jamais estará isenta de cumprir decisões do STF. A menos, é claro, que se mude esse entendimento constitucional.

Não há democracia que funcione sem “toma-lá-dá-cá” se mais de 30 partidos disputam fatias de poder e verbas do Erário. E o apetite dessa escumalha é pantagruélico. Haja vista o valor absurdo que foi estabelecido para o “fundão” eleitoral  dinheiro que é roubado de nós para ajudar a eleger quem vai nos roubar na próxima legislaturaE fodam-se os 14 milhões de desempregados, os não sei quando milhões de brasileiros que não têm dinheiro sequer para uma refeição decente por dia. E assim por diante.

Gastar bilhões para eleger essa caterva quando falta dinheiro para investir em segurança, saúde e educação, por exemplo, é um escárnio. E a divisão desse butim é feita levando em conta, entre outros fatores, os votos para Câmara e Senado recebidos pelos partidos na eleição anterior. Em 2018, o “fundão” foi de cerca de R$ 2 bilhões — pouco mais de um terço do valor estabelecido para as eleições de 2022. 

É muita demagogia qualquer um chegar aqui e dizer que nós não vamos ter um fundo eleitoral público para financiamento das campanhas”, disse o tal deputado-réu que preside a Câmara. “Hoje a única maneira que temos para evitar que tráfico, milícias e contraventores financiem e façam a má-gestão da política é com um financiamento público, claro e transparente.”

Continua...

sábado, 9 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO

 

"Tem de dar certo" é conselho de mãe de miss. Mas a expressão "dar certo" é usada também com a acepção de "produzir bons resultados". E foi com esse sentido em mente que eu intitulei esta sequência sobre o país do futuro que nunca chega porque tem um longo passado pela frente.

Tudo começou milhões de anos antes de Cabral — falo do navegante português, não do ex-governador carioca que por algum motivo continua preso (o fato de ter sido condenado a 400 anos de prisão não é motivo para mofar na cadeia; não no Brasil). 

Depois de transformar o Caos em ordem, criar o dia e a noite, separar as terras das águas, criar as plantas, as aves, os peixes, o Criador fez no sexto dia a maior de todas as burradas: “Agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”, disse o Senhor das Esferas. E ao ver que "tudo era bom (?!)", Ele abençoou e santificou o sétimo dia e nele descansou. 

Comenta-se que, ao ser acusado de protecionismo devido ao tratamento dispensado à porção global que se tornaria o Brasil, Deus respostou: "vocês vão ver o povinho de merda que eu vou colocar lá". A meu ver, isso resume de maneira lapidar a história da nossa republiqueta de bananas. Mas nunca é demais relembrar alguns aspectos insólitos dessa tragicomédia, a começar pela chegada da esquadra de Cabral ao litoral do que estava destinado a ser a costa da Bahia.

Registram os livros de História que, aos 22 dias do mês de abril do Anno Domini 1.500, depois de ter sido desviada de seu destino original (Calicute, nas Índias Ocidentais), não se sabe ao certo se por uma tempestade ou uma calmaria, a esquadra cabrália aportou na costa brasileira. Em epístola endereçada a D. Manuel, "O Venturoso", comunicando a "descoberta" de terra brasilis, o escriba Pero Vaz de Caminha anotou que "em se plantando tudo dá", e aproveitou o ensejo para rogar a sua majestade que intercedesse em favor do marido da filha, inaugurando a corrupção em solo tupiniquim, ainda que na forma de nepotismo.

O Brasil foi colônia portuguesa até o início do século XIX, quando a família real, ameaçada pelo Tratado de Fontainebleau, mudou-se de mala e cuia para o Rio de Janeiro, depois de uma breve escala em Salvador (BA). Em 1822, D. Pedro I proclamou a independência, e dali a 67 anos o marechal Deodoro da Fonseca pôs fim à monarquia constitucional parlamentarista, apeou o monarca e implementou o presidencialismo republicano como forma de governo, protagonizando o primeiro dos muitos golpes de Estado que se sucederiam a partir de então.

Ao longo da história republicana do Brasil, ao menos quatro presidentes renunciaram — Deodoro da Fonseca, em 1891; Getúlio Dornelles Vargas, em 1945; Jânio da Silva Quadros, em 1960; e Fernando Affonso Collor de Mello, em 1992. Dos cinco que foram eleitos pelo voto direto desde o fim da ditadura militar, Collor e Dilma foram expulsos de campo antes do final do jogo. 

O pseudo caçador de marajás foi alvo de 29 pedidos de impeachment — mas nunca foi chamado de genocidaItamarFHCLula e Temer foram agraciados com 4, 27, 37 e 33 pedidos de impeachment, respectivamente, mas concluíram seus mandatos sem jamais ser chamados de genocidas. Madame foi alvo de 68 pedidos — e acabou penabundada porque estava quebrando o país —, mas ninguém jamais a acusou de genocídio.

Desde que se tornou um\ República, o Brasil amargou 38 presidentes (o número varia de 35 a 44, dependendo de como é feita a contagem). De 1926 para cá houve 25 mandatários, mas somente quatro dos que foram eleitos pelo voto popular concluíram seus mandatos — Eurico Gaspar DutraJuscelino KubitschekLula Fernando Henrique. Seriam seis se Collor e Dilma não tivessem ingressado na seleta confraria dos depostos, onde já se encontravam Washington LuísJúlio PrestesGetúlio Vargas, Carlos Luz, João Goulart.

Fosse esta banânia um país que se desse ao respeito e o mandatário de turno já teria sido devidamente despejado e internado. Pedidos de impeachment não faltam: em fevereiro, quando o deputado-réu Arthur Lira assumiu a presidência da Câmara, havia 60 petições protocoladas em desfavor da permanência do motoqueiro fantasma no Palácio do Planalto. Atualmente, são cerca de 140 — e contando.

Continua...

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

A LEI, ORA, A LEI.

Atribui-se a Otto Von Bismarck a máxima segundo a qual “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis" e a Augusto Nunes a de que "o Brasil é um país com muitas leis e falta de vergonha na cara". Mas é impossível viver em sociedade sem observar determinadas regras, como a de que o direito de um vai até onde começa o direito do outro e vice-versa.

Até onde sabemos, as leis são feitas para melhorar a vida das pessoas, daí ser espantosa a quantidade de leis em vigor, neste país, que não melhoram coisa nenhuma e, ao mesmo tempo, conseguem piorar tudo.

Talvez essa idiossincrasia seja explicada (pelo menos em parte) pelo fato de os legisladores (agentes público-políticos que integram o poder Legislativo nas esferas municipais, estaduais e federais) criarem as leis como os açougueiros de Bismarck produziam as salsichas, e o Judiciário ― sobretudo suas mais altas esferas ― fazer o oposto do que é sua obrigação.

Imagino que tanto os membros do Legislativo quanto os do Judiciário façam o que fazem porque estão metidos numa luta desesperada pela sobrevivência do Brasil velho, corrupto, subdesenvolvido e desigual, paraíso dos parasitas da máquina pública, da venda de favores e dos privilégios para quem tem força, inimigo do trabalho, do talento e do mérito individual. Mas nada destrói tanto o respeito pelos governos, dizia Einstein, do que a sua incapacidade de fazer com que as leis sejam cumpridas. E é o risco que foi construído no Brasil.

Vivemos numa democracia representativa, onde todo poder emana do povo e em seu nome é exercido — pausa para as gargalhadas — e a população interfere no funcionamento do governo através do voto, ainda que, dada a qualidade do nosso eleitorado, melhores resultados são obtidos através das redes sociais e manifestações populares. 

Os 3 poderes da República — ExecutivoLegislativo e Judiciário — são instituições independentes, cada qual com suas funções específicas. Aos nobres integrantes da Câmara Federal cabe elaborar e revisar as leis, de acordo com as demandas populares e os ditames da Constituição — podem rir de novo —, bem como cobrar as contas do Executivo, autorizar a abertura de processo de impeachment contra o presidente da República por crime de responsabilidade e por aí vai.

Aos conspícuos senadores compete aprovar a escolha de magistrados, ministros do TCU, presidentes e diretores do Banco Central, embaixadores e o Procurador Geral da República, bem como autorizar operações financeiras de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, fixar limites da dívida pública e avaliar periodicamente o funcionamento do Sistema Tributário Nacional. Adicionalmente, suas insolências podem elaborar projetos de lei — que são debatidos e votados por seus pares e pelos membros da Câmara —, bem como analisar, avaliar e aprovar ou rejeitar projetos de lei propostos pelos deputados federais ou pelo chefe do Executivo.

Congresso Nacional (que é formado pela CâmaraSenado e TCU) tem como principais atribuições votar medidas provisórias, vetos presidenciais, leis de diretrizes orçamentárias e o orçamento geral da União, além de dar posse ao presidente da República e seu vice, autorizá-los a se ausentar do país por período superior a 15 dias, autorizar o presidente da República a declarar guerra, celebrar a paz, permitir que forças estrangeiras entrem ou saiam do país, aprovar o estado de defesa, a intervenção federal, o estado de sítio — e suspender essas medidas —, deliberar sobre tratados, fixar a remuneração dos parlamentares (a raposa tomando conta do galinheiro, como veremos mais adiante), apreciar os atos de concessão de rádio e televisão, autorizar referendos, convocar plebiscitos, aprovar iniciativas do Executivo no que tange a atividades de energia nuclear, e por aí afora.

ObservaçãoAs atribuições do Congresso estão especificadas nos artigos 48 e 49 da Constituição Federal, sendo que aquelas elencadas no primeiro exigem a participação do Executivo — mediante sanção presidencial —, enquanto que as do segundo tratam de competências exclusivas do Congresso, estabelecidas por meio de Decreto Legislativo. O presidente do Senado acumula a função de presidente do Congresso, o mandato é de 2 anos e, a despeito de os membros da mesa diretora das duas Casas de leis não poderem ser reconduzidos aos mesmos cargos na eleição imediatamente subsequente ao mandato, prevalece o entendimento de que essa proibição não se aplica quando se trata de uma nova legislatura, de modo que sua reeleição é, sim, possível.

A questão que se coloca é: como respeitar o poder público nesta banânia se o Código Penal diz que é proibido praticar crimes, mas o STF decide impedir a punição dos crimes praticado? 

Cito como exemplo o absurdo que aconteceu com a Lava-Jato, a "suspeição" de Sergio Moro, as condenações de Lula em Curitiba — e o próprio Lula, que cumpriu míseros 580 dias dos 26 anos e lá vai fumaça das penas que lhe foram impostas em  dois processos e ungido à estapafúrdia condição de "ex-corrupto", que lhe permite vender aos convertidos a ideia de que foi absolvido (quando na verdade não foi) porque era inocente (quando na verdade não era).

Mudando de um ponto a outro (sem prejuízo de retomar o curso original no próximo post), há que dedicar meia dúzia de linhas a mais uma ação vergonhosa de um presidente que, tudo indica, nasceu com a único (e portanto precípuo) objetivo de diminuir aos olhos do mundo, o país que foi eleito para governar. E que, enquanto se desincumbe alegremente dessa tarefa, busca criar toda sorte de constrangimentos, como que se visasse sepultar a retomada econômica juntamente com os corpos das vítimas fatais da Covid. E que, num futuro distante (isso se houver futuro no país que, enquanto não aprender a votar, terá um enorme passado pela frente), terá o nome incluído nos dicionários como sinônimo de bucéfalo, cusco, caguira, mastafé, tratalhão...

No momento em que desembarcou do avião da FAB (que me fez lembrar os blindados fumacentos que a Marinha estacionou defronte à Câmara Federal, em agosto, horas antes da votação da famigerada "PEC do voto impresso auditável"), Bolsonaro parecia uma versão de carregação do Jeca Tatu. Por determinação do serviço secreto americano, teve de entrar no hotel pela porta dos fundos para evitar contato com manifestantes que gritavam na entrada: "Fora, Bolsonaro." À noite, foi obrigado a mastigar pizza com auxiliares na calça — o que poderia ser um dos melhores programas da cidade, mas ficar na porta do restaurante porque não pode entrar sem a comprovação da vacina é um vexame sem precedentes para um presidente de qualquer República que se preze. Não é sinal de populismo, nem de ser popular, mas de desleixo com as vidas alheias, que é a marca registrada do "mito".

Sob Bolsonaro, a imagem do Brasil no estrangeiro tornou-se um borrão no qual se misturam o vexame sanitário, os arroubos antidemocráticos, a estagnação econômica e a destruição ambiental — não necessariamente nessa ordem. O presidente realizou o pesadelo que frequentava os sonhos de Ernesto Araújo — para quem, se a atuação do governo bolsonarista fazia do Brasil "um pária internacional, então que sejamos fossemos esse pária."

Em matéria de diplomacia, Bolsonaro fez o pior o melhor que pôde. Conseguiu desfazer a boa imagem do Brasil no estrangeiro. Para começar a refazer o que desfez, teria de conciliar duas necessidades conflitantes: ser Bolsonaro e preservar minimamente o interesse nacional. Mas as manifestações prévias reforçam a suspeita de que o presidente e o interesse nacional são mesmo dois elementos inconciliáveis.

Só num país dirigido por um desequilibrado seria possível ter acontecido a abjeta experiência que resultou em 200 mortes entre 645 pacientes de Covid que foram usados para uma pesquisa sobre os efeitos da proxalutamida completamente fora de controle técnico, como acusa a Comissão de Ética em Pesquisa. O endocrinologista Flavio Cadegiani, que agora está sendo acusado na PGR por ter ampliado sem consulta a pesquisa inicialmente aprovada, foi o criador do sistema de tratamento usado no aplicativo TrateCov, que o governo também usou em Manaus no auge da crise de falta de oxigênio.

O que esperar de um governo cujo presidente se vangloria de não se ter vacinado? O vexame internacional em que está se configurando mais essa viagem de Bolsonaro teve um toque tupiniquim de burla das normas sanitárias nova-iorquinas, com a churrascaria brazuca Fogo do Chão dando demonstração de que o famoso "jeitinho brasileiro" pode sempre ser usado para mau exemplo.

Depois de improvisar um "puxadinho" na calçada e uma barreira para que Bolsonaro e seus convivas não fossem perturbados, o restaurante serviu um churrasco bem brasileiro aos ilustres visitantes. Para completar, o lutador Renzo Gracie acompanhou a comitiva brasileira na caminhada de volta até o hotel, para evitar qualquer incômodo ao presidente. O que não impediu que uma brasileira o saudasse com gritos de “genocida”.

Nova Iorque, governada pelo liberal — que significa esquerdista nos Estados Unidos — Bill de Blasio, já havia atrapalhado a entrega do prêmio Homem do Ano a Bolsonaro, pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, que aconteceria no Museu de História Natural, mas acabou não acontecendo porque o prefeito insinuou que não gostaria de ver aquele “homem perigoso” ser homenageado numa instituição que recebia verba pública. Agora, Blasio mandou um recado ao presidente do Brasil: se não se vacinou, não precisa nem vir à cidade.

Salvou a pátria (figurativamente) o fato de a sede da ONU ser território internacional dentro de Nova Iorque. Assim como Fidel Castro não podia entrar no país, mas podia discursar na ONU,, o capitão não precisou se vacinar para fazer seu "discurso em braile". Talvez ele tenha usado essa metáfora para ironizar aqueles que não querem ver as maravilhas que vem fazendo no Brasil. O mundo será, então, inundado de fake news.

Como quem sai aos seu não degenera — ou "o fruto não cai muito longo de pé", como queiram os leitores —, Jair Renan, que, juntamente com seu papai e seus três irmãos mais velhos, compõe o clã-presidencial de investigados, postou no Instagram um vídeo em que aparece ao lado de uma gaveta repleta de armas (que não podem ser identificadas como réplicas ou armamentos reais) e escreveu: “Alô, CPI kkkkk”. No Twitter, o senador Alessandro Vieira respondeu ao filho do presidente. “Apresentei requerimento para convocar o senhor Jair Renan, para que ele possa dar pessoalmente um alô para à CPI e preste esclarecimentos sobre seus vínculos com o lobista Marconny Faria e supostas ameaças a parlamentares. A lei vale para todos.”

Vivemos numa democracia capenga, mas, mesmo assim, regida por leis. As leis podem ser boas ou ruins, necessárias ou inúteis, razoáveis ou estúpidas. Se causam mais mal do que bem, elas podem — e devem — ser revogadas e substituídas por outras que as corrijam. Mas é fundamental que sejam cumpridas por todos e aplicadas a todos da mesma forma e com os mesmos critérios — pouco importando se o cidadão é ex-presidente da República ou punguista de feira, megaempresário ou ladrão de galinhas, médico-estuprador ou corretor zoológico — e que as decisões tomadas hoje para este ou aquele tipo de caso ou circunstância sejam iguais às que serão tomadas amanhã em casos e/ou situações análogas.

Qualquer pessoa com o Q.I. de um pé de alface é capaz de entender a lógica de um sistema assim, mas nossos homens públicos preferem a morte a se sujeitarem à previsibilidade da lei. E ninguém trabalha tanto para manter a insegurança jurídica no Brasil do que o próprio Poder Judiciário. Como esperar, então, coerência, lógica ou respeito às leis se procuradores, promotores, juízes, desembargadores e ministros são os primeiros a rasgar essas leis quando se trata de aplicá-las a si mesmos ou a seus “bandidos preferidos”?

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A VALSA DA DESPEDIDA


Se há uma coisa que dignifica o Brasil é sua capacidade de sobreviver a maus governantes e à mediocridade do eleitorado. Dizia-se antigamente (quando o país ainda crescia) que seguíamos adiante não graças aos mandatários que tínhamos, mas apesar deles. Mais cedo ou mais tarde (torçamos para que seja mais cedo), tanto a pandemia quanto Bolsonaro vão passar (não necessariamente nessa ordem). É possível até que esse presidente já "tivesse passado" se não insistíssemos em lhe dar palanque, levando a sério as estultices que ele diz ou faz dia sim, noutro também.

Por outro lado, como ignorar um presidente que convoca um desfile de tanques defronte ao Congresso Nacional para pressionar os deputados a aprovarem a PEC do voto impresso? Se você prefere acreditar que tudo não passou de "mera coincidência", sinta-se à vontade, cara Velhinha de Taubaté. Tudo bem que a blindadociata acabou virando motivo de chacota e o retrocesso defendido pelo mandatário, sepultado não uma, mas duas vezes. Mas o assunto deu pano pra manga, e era exatamente isso que Bolsonaro queria. Por essas e outras, melhor seria impedi-lo de continuar dizendo e fazendo besteiras — por mais deselegante que seja calar um idiota, deixá-lo prosseguir é de uma crueldade a toda prova. Com o Brasil.

Observação: Vale lembrar que "idiota" significava originalmente “homem privado”, isto é, metido com seus próprios afazeres. Etimologicamente, a palavra não carrega juízo de valor, mas ao sentido de "leigo em questões do Estado" somou-se a conotação de “pessoa simples, sem instrução, iletrada”, e, mais adiante, de “pateta, parvo, tolo”. No século 19, o vocabulário psiquiátrico se encarregou de agravar o peso da palavra transformando-a em sinônimo de “retardo mental grave”. É interessante notar como aquela acepção relativamente branda de idiota — hoje inteiramente obsoleta — persistiu nas línguas que herdaram a palavra, ao lado do sentido moderno, durante a Idade Média e mesmo além dela. Dois exemplos deixam isso claro. O Webster’s registra que, em meados do século 15, o teólogo inglês John Capgrave podia se referir aos apóstolos de Cristo como “doze idiotas” sem temer a Inquisição. De modo semelhante, o filólogo brasileiro João Ribeiro conta no livro “Curiosidades verbais” que “[no século 16] havia nas aldeias portuguesas juízes idiotas, simples juízes de paz e de quem não se exigia mais que os bons costumes, a experiência, a probidade”.

O ideal seria não termos precisado apoiar Bolsonaro para evita um mal maior (que agora eu já nem sei se seria mesmo maior). Mas não vivemos num mundo ideal, e a vida nem sempre é justa. Fato é que, para escantear o patético bonifrate do presidiário de Curitiba, libertamos o ifrit do "bolsonarismo boçal", e agora não sabemos como prendê-lo de volta na garrafa. 

A técnica do capitão continua a mesma que ele vem usando desde o início de seu governo: sempre que surge um problema que transcende sua capacidade de resolver (o que, convenhamos, tem se repetido diuturnamente), Bolsonaro aciona sua usina de crises. Guardadas as devidas proporções, trata-se da mesma estratégia usada por ilusionistas de palco, que se fazem cercar de belas assistentes em trajes sumários para desviar a atenção da plateia enquanto executam seus truques de prestidigitação.    

Governar um país como o Brasil não é fácil. Sobretudo em meio à maior pandemia sanitária de toda a história recente. Mas também havia problemas quando Lula e Dilma se sentaram na poltrona mais cobiçada do Palácio do Planalto. 

Longe de mim negar que os 13 anos, 4 meses e 12 dias de gestão lulopetista produziram danos que o país levará décadas para superar, mas isso é outra conversa. Mas a questão que se coloca é a seguinte: se um retirante nordestino pobre e analfabeto (como o próprio Lula se definiu mais de uma vez), que se orgulha de nunca ter lido um livro na vida, conseguiu ser eleito Presidente em 2002 (depois de três tentativas malsucedidas, em 1989, 1994 e 1998), reeleger-se em 2006 (a despeito do escândalo do mensalão, que colocou na cadeia diversos cardiais da seita petista) e eleger um "poste" para sucedê-lo), presidir o Brasil está longe de ser uma tarefa que o escritor taubateano Monteiro Lobato — se ainda caminhasse entre os vivos e resolvesse atualizar sua obra — incluiria numa nova edição de Os Doze Trabalhos de Hércules.

Observação: A título de curiosidade, o esquema do mensalão só veio a público graças às revelações bombásticas do então deputado Roberto Jefferson (que foi preso preventivamente há pouco mais de duas semanas e denunciado pela PGR por incitação ao crime no último dia 30).

Durante a ditadura militar tal poste em curto-circuito permanente atendeu por Wanda, Lúcia e Maria. Lula levou-a à vitrine eleitoral travestida de "gerentona", mas ela não passava de uma incompetente de quatro costados. Basta lembrar que levou à falência, em apenas 17 meses, duas lojinhas de R$ 1,99 que havia montado em Porto Alegre

Só no Brasil um prodígio dessa catadura consegue, sem saber atirar, virar modelo de guerrilheira; sem ter sido vereadora, virar secretária municipal; sem passar pela Assembleia Legislativa, virar secretária de Estado; sem estagiar no Congresso, virar ministra; sem ter inaugurado nada de relevante, fazer posse de gerente de país; sem saber juntar sujeito e predicado, virar estrela de palanque; e sem ter tido um único voto na vida, virar presidanta da República (vale ressaltar que foi preciso expeli-la do cargo antes que ela acabasse de demolir a economia, mas isso também é outra conversa).

Voltando a Bolsonaro: O TSE cortou a fonte de recursos do gabinete do ódio e o ministro Alexandre de Moraes mandou prender Roberto Jefferson (que se tornou bolsonarista desde criancinha e virou carne e unha com o mandatário de turno). Chegou-se a falar até na possibilidade de prisão de Zero Dois — o pitbull da família, na definição de Zero Rachadinha Um. O próprio presidente é investigado em sete inquéritos, e a CPI do Genocídio deve arrolá-lo em mais meia dúzia de crimes. 

Há inflação alta, perspectiva de queda no crescimento e falta dinheiro para o necessário saco de bondades eleitoreiras. Paulo Guedes, mais perdido que cego em tiroteio, ora recorre (sem grande esperança) a expedientes estapafúrdios — como aumento de impostos, PEC do calote e até a venda de um tesouro cultural. Uma das perguntas que se colocam (pois há diversas) é: como alguém que é responsável um descalabro dessa magnitude ainda aspira à reeleição? Responda quem souber.

Em sua coluna na revista Veja, o jornalista Ricardo Rangel anotou que é hora de deixar Jair Bolsonaro ir embora. A meu ver, já passou da hora. A popularidade do governo despencou. A rejeição ao presidente cresceu. A vantagem de Lula, o ex-corrupto, tem aumentado dia após dia. Entidades civis, empresários, economistas já elaboraram manifestos em repúdio ao governo. Rodrigo Pacheco (que pode vir a ser pré-candidato à Presidência) passou de apoiador do despirocado a defensor da democracia. Senadores denunciaram o Passador-de-Pano-Geral da República (de quem um terço dos subprocuradores-gerais cobraram uma ação efetiva) pelo crime de omissão. Mais da metade dos ministros do STF demonstra irritação com a omissão do vassalo do capitão, mas, mesmo assim, o morubixaba da aldeia conseguiu reconduzi-lo ao comando do MPF com o aval de 55 senadores, 10 votos contrários e uma abstenção.

Para as Forças Armadas, Bolsonaro é fonte permanente de constrangimento e irritação, seja por destratar Mourão, seja por proibir a punição de Pazuello, humilhar o comandante do Exército, usar tanques para intimidar o Congresso e compactuar com um esquema de corrupção na Saúde que inclui uma dúzia de coronéis.

Assim como o escorpião da fábula, nosso indômito capitão é incapaz de agir contra a própria natureza. Sua reação à perda de apoio é mais agressividade — o que afasta ainda mais os apoiadores, alimenta as ações do Judiciário e torna mais difícil para seus aliados (ou cúmplices) defendê-lo. Ele parece mergulhado em areia movediça: quanto mais se afunda, mais se debate, e quanto mais se debate, mais se afunda. Mas também o país está na areia movediça, pois Bolsonaro nos impede de respirar. Collor e Dilma caíram por muito menos, mas o presidente da vez conta com a omissão deliberada de Augusto Aras (sempre ele!), o apoio escancarado de Arthur Lira (e do Centrão) e a aparente sustentação dos generais (não todos, é verdade). 

Aqueles que sustentam o presidente porque receberam e recebem dele inúmeras vantagens, precisam entender que o país não aguenta mais catorze meses sob um presidente que todo dia esgarça o tecido institucional. É hora de ter espírito público, sair da frente e deixar a institucionalidade seguir seu curso.

Resta saber até onde a instabilidade poderá nos levar. Dado seu viés nitidamente parlamentarista, a Constituição de 1988 buscou impedir que apenas uma força prevalecesse — de forma isolada — sobre as demais. Para tanto, limitou o poder do chefe do Executivo e impôs uma realidade multipolar de atores e de tendências. Daí por que Lula e Bolsonaro só conseguiram alguma governabilidade depois que fizeram alianças com forças políticas de outros campos ideológicos.

O molusco empreendeu uma caminhada ao centro ainda na campanha eleitoral de 2002, e consolidou-a com as ações permeadas pelo escândalo do mensalão, em 2005. Bolsonaro, que anunciou o fim do toma-lá-dá-cá, rendeu-se às coalizões em 2020 para assegurar alguma proteção política no final de sua gestão e conquistar a tão ambicionada (e cada vez menos provável) reeleição. 

Pelo andar da carruagem, Bolsonaro chegará a outubro de 2022 (caso o imprevisto não tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos) como um zero à esquerda. Para quem gosta (e acredita) em pesquisas, as mais recentes dão conta de que Lula passaria para o segundo turno com 40% dos votos, deixando o capitão no chinelo (24%). Numa hipotético embate final entre ambos, o petralha venceria por 51% a 32%. Por outro lado, nunca é demais lembrar o que disse Magalhães Pinto: "Política é como as nuvens no céu; a gente olha e elas estão de um jeito, olha de novo e elas já mudaram."

Considerando o conjunto da obra, a derrota do mandatário de turno será motivo de celebração. O detalhe — e o diabo mora nos detalhes — é que, em se mantendo as atuais condições de temperatura e pressão, o pior presidente que este país já teve desde a redemocratização será derrotado pelo ex-presidente corrupto, condenado a mais de 25 anos de cadeia, que teve a ficha-suja lavada a toque de caixa e os direitos políticos restituídos num passe de mágica. E mole ou quer mais?

Noves fora os bolsonaristas de raiz, ninguém mais vê graça nas ameaças e impropérios que o mandatário de fancaria regurgita cada vez que acha uma caixa de sabão para lhe servir de palanque. No último sábado, durante o 1° Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás, Bolsonaro brindou os "reverendos" com a seguinte pérola: "Eu tenho três alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter certeza de que a primeira alternativa não existe. Estou fazendo a coisa certa e não devo nada a ninguém. Sempre onde o povo esteve, eu estive" (esqueceu-se o petulante delirante de mencionar uma quarta alternativa, que é justamente a mais provável: sua derrota).

Ao final da peroração, o "mito" levou a audiência ao Nirvana repetindo um bordão que já está ficando cansativo de ouvir, mas vá lá: "Deus me colocou aqui, e somente Deus me tira daqui". Na humilde opinião deste obscuro articulista, o Senhor das Esferas não teve nada com isso. Talvez o Diabo (falo daquele com chifres e rabo, não o de nove dedos), mas isso também já é outra conversa.

Quanto maiores as probabilidades de Bolsonaro ser defenestrado ou não conseguir se reeleger, maior e mais barulhento ficará o repertório de blasfêmias contra o estado democrático de direito, pois Bolsonaro precisa manter desperta sua tropa miliciana e estimular o assalto à democracia. Quando mais não seja porque esse é o único recurso que lhe resta (governar, na acepção da palavra, está fora de cogitação). 

Mas, cá entre nós, alguém acha que o Messias aceitará placidamente a derrota? Que "acreditará" no resultado das urnas e na lisura do processo eleitoral? Não é bem essa a impressão que se tem ao vê-lo e ouvi-lo desancar a democracia, afrontar a Constituição, tripudiar das instituições e dizer que está cagando para a CPI. O presidente exsuda autogolpe por todos os poros, e a coisa pode piorar no feriado da Independência, durante as manifestações a favor e contrárias ao desastre que ele qualifica de "seu governo".

A pergunta que não quer calar é: Por que ninguém ainda puxou o freio desse trem fantasma? Estão esperando o quê? Que a composição descarrile? Que seja preciso atirar na cabeça do maquinista despirocado para evitar que sejamos todos atropelados por sua récua de apoiadores destrambelhados? 

Responda quem souber.