AO BRASIL NÃO FALTAM LEIS; FALTA É VERGONHA NA CARA AOS
BRASILEIROS.
Todos são iguais perante a lei, diz nossa mui cidadã
Constituição. Mas, na vida real, alguns são mais iguais que os outros. Quem um exemplo? Então vamos lá: nossos conspícuos magistrados
usufruem de dois meses de férias por ano.
A lógica desse privilégio é como o
fenômeno paranormal: eles juram que existe, mas ver, mesmo, o brasileiro que
financia o mimo nunca viu. E Dias Toffoli conseguiu deixar a coisa ainda
mais ilógica.
Presidente do STF e do CNJ desde setembro de
2018, quando sucedeu à ministra Cármen Lúcia, o
togado que foi reprovado não em um, mas em dois concursos para Juiz de Direito
em São Paulo (ambas as vezes na fase preliminar, que testa apenas conhecimentos
gerais e noções elementares de Direito dos candidatos), ordenou aos tribunais
que comprem
20 dias das férias dos magistrados que quiserem fazer ao país o favor de reduzir o ócio anual a "apenas" 40 dias.
A ordem do ministro cuja
farda de militante petista foi recoberta com a suprema toga graças aos bons
serviços prestados a Lula, a Dirceu e ao PT é um escracho a serviço do
esbulho.
Dizia-se que os juízes precisam de 60 dias de repouso porque ralam
como mouros e ainda levam trabalho para casa. O despacho eminente julgador —
que encerra hoje sua nada venturosa e muito apequenadora passagem pela
presidência da Corte — é a quintessência da teratologia. Quando mais não seja porque a conversão obrigatória de 20
dias das férias das excelências em dinheiro é evidência de que os dois meses de
repouso são desnecessários.
O
impacto orçamentário será "baixíssimo", disse Toffoli, surfando a pandemia para sustentar que o home office provocado pela Covid-19 resultou em redução de despesas. O lero-lero tem cara de esbulho
porque expõe o lado mais delicioso de um privilégio: o direito de torrar o
dinheiro alheio como se fosse verba grátis.
Num cenário de normalidade, as férias de 60 dias dos
magistrados já seriam inaceitáveis. A coisa se torna ainda mais escandalosa com mais de 30 milhões de brasileiros ralando na informalidade,
sem direitos trabalhistas, e quase 13 milhões desfrutando das férias
compulsórias do desemprego.
Dizer que os juízes brasileiros perderam o contato
com as pessoas que lhes pagam os salários é muito pouco para traduzir a
alienação. Na verdade, os magistrados se desconectaram da realidade.
A edição
mais recente (#123) da revista eletrônica Crusoé traz uma extensa matéria
sobre Antonio Dias Toffoli, o ministro mais jovem a presidir o STF em toda a história da Corte, e que ora deixa o posto desgastado, seja por conta de
decisões que ele próprio jamegou — algumas resgatando entendimentos já
ultrapassados que salvaram o futuro de companheiros que o colocaram no Tribunal —, seja pela reação desproporcional a notícias e opiniões críticas
a ele e seus pares, muitas delas provenientes das falanges bolsonaristas.
O togado que assumiu a presidência do STF pregando “harmonia” e invocando
o papel de “mediador” deixa como legado um inquérito sem fim, que transformou a Corte em polícia e censor, a pretexto de defender a instituição de ofensas,
ameaças e fake news. Ao ser guindado à presidência, Toffoli parafraseou a filósofa alemã Hannah Arendt para enaltecer a democracia
e combater o totalitarismo. Ao longo de sua gestão, esmerou-se para impor travas
à Lava-Jato e ao combate à corrupção. Em dois anos, foram três golpes
capitais:
1) Foi derrubado por 6 votos a 5 o
entendimento que permitia a prisão de réus após condenação em segunda instância
— o que resultou na soltura de condenados na Lava-Jato, como seus ex-chefes
e benfeitores Lula e Dirceu;
2) Foram transferidas para a Justiça Eleitoral ações envolvendo crimes comuns — como corrupção e lavagem
de dinheiro — que guardavam relação com campanhas;
3) Ficou decidido por maioria que, em ações onde há réus
delatores e delatados e estes últimos não apresentaram seus memoriais depois de
os delatores terem apresentado os deles, a
condenação em primeira instância pode ser anulada e a instrução processual,
reaberta para a juntada de novos memoriais.
“Se não fosse este Supremo Tribunal Federal, não haveria
combate à corrupção no Brasil”, bradou Toffoli, após proferir seu voto no
julgamento que sacramentou esta última decisão, em outubro de 2019. As decisões
beneficiaram, entre outros, políticos que ajudaram a próprio ministro a ascender na
carreira.
Advogado nascido em Marília, no interior de São Paulo, Toffoli trabalhou como assessor em gabinetes petistas na Alesp e na Câmara dos Deputados na década de 1990, após tentar se tornar juiz por meio de concurso público e ser reprovado duas vezes.
Toffoli
se especializou em direito eleitoral na função de advogado do PT e transferiu-se para Brasília quando
Lula chegou ao poder, em 2003. Foram mais de
dois anos assessorando José Dirceu na Casa Civil e, depois, defendendo o
governo petista como advogado-geral da União.
No meio jurídico, o Maquiavel de Marília é visto como o ministro
mais político do Supremo — e sua passagem pela presidência acentuou
essa percepção. Os primeiros sinais vieram logo na largada, quando ele propôs um
“pacto” entre os três Poderes e se dispôs a exercer o papel de “moderador” no
tumultuado cenário nacional.
“Ao se apresentar como moderador, Toffoli
mostra uma absoluta ignorância da Constituição, porque poder moderador se
aplica a monarquias constitucionais e não a uma República como o Brasil. (...) Com suas posições políticas, ele assume as fragilidades
de formação jurídica, mostra que ainda não percebeu o que é ser juiz e como
um político a fazer cortesias com poderosos e potentes”, afirma o jurista Walter
Maierovitch, que exerceu a magistratura por 35 anos.
Além da participação em agendas do presidente Bolsonaro para
divulgar programas do governo e almoços com vários ministros da Esplanada, só
nos últimos doze meses Toffoli recebeu em seu gabinete mais de uma
centena de deputados, senadores, governadores, ex-parlamentares e dirigentes
partidários. Na lista estão figuras como o deputado Paulinho da Força, do
Solidariedade, o senador Ciro Nogueira, do Progressistas,
e o Pastor Everaldo, do PSC, todos alvos de investigação ou
denunciados por corrupção — este último, por sinal, está preso.
Decisões de Toffoli agradaram a políticos enrolados
com a Justiça, incluindo os novos ocupantes do poder. Bolsonaro, que
antes o chamava de petista, passou a elogiá-lo e a ouvi-lo, numa
aproximação que começou ainda antes da posse, com a escolha do general Fernando
Azevedo e Silva para comandar o Ministério da Defesa. Até então, Azevedo era
assessor de Toffoli no Supremo; iniciado o governo Bolsonaro, o
estrelado passou a funcionar como um elo entre o Planalto e os togados.
Em tese, decisões de ministros de Cortes superiores não são balizadas em conveniência políticas. Mas Bolsonaro não tem do que reclamar do ministro que outrora
chamava de petista. Por meio de uma liminar, Toffoli suspendeu por mais
de quatro meses a investigação das rachadinhas no gabinete que o então deputado
e hoje senador Flávio Bolsonaro ocupava na Alerj, em razão do
compartilhamento de dados do Coaf e da Receita Federal com o Ministério
Público. A decisão, assinada durante o recesso de julho do ano passado,
paralisou mais de mil investigações em todo o país. Três semanas antes, o Fisco
havia cobrado explicações de empresas que contrataram os serviços do escritório
de advocacia de Roberta Rangel, mulher de Toffoli.
A decisão que atendeu os anseios do primogênito de Bolsonaro pegou mal, inclusive entre os colegas de toga. No
fim de novembro, quando o caso do compartilhamento de dados do Coaf foi levado
ao plenário, o presidente da Corte sofreu uma fragorosa derrota. Quando oito
ministros já haviam se manifestado contra a liminar, o próprio Toffoli
decidiu mudar o próprio voto.
Na ocasião, mesmo os ministros que costumam
ser mais comedidos não conseguiram se conter. “Tem uma pergunta mais fácil?”,
disse Edson Fachin ao ser indagado por jornalistas sobre o confuso voto
de Toffoli. Luís Roberto Barroso foi ainda mais irônico, dizendo
que seria
preciso “chamar um professor de javanês” para interpretar a mudança de
entendimento do colega.
Embora o presidente do Supremo seja o “dono da pauta”, ou
seja, detém a prerrogativa de decidir quando e quais processos serão levados a
julgamento no plenário, é por meio das decisões monocráticas, como foi a do
Coaf, que Toffoli exerceu seu poder de forma mais direta. Aliás, o vice-decano
deu-lhe um puxão de orelha, em novembro do ano passado. Disse Marco
Aurélio Mello:
“É inconcebível visão totalitária e autoritária no
Supremo. Os integrantes ombreiam, apenas têm acima o colegiado. O presidente é
coordenador e não superior hierárquico dos pares. Coordena, simplesmente, os
trabalhos do colegiado. Fora isso é desconhecer a ordem jurídica, a
Constituição Federal, as leis e o regimento interno, enfraquecendo a
instituição, afastando a legitimidade das decisões que profira. Tempos
estranhos em que verificada até mesmo a autofagia. Aonde vamos parar?”
Nos últimos 15 anos, o rol de procedimentos que podem ser
analisados e decididos individualmente pelo presidente do STF só cresceu,
incluindo recursos que suspenderam processos e habeas corpus que libertaram
presos. Isso ocorreu com maior frequência durante o período de plantão
judiciário, em janeiro e julho, quando todas os casos vão para análise da
presidência.
Levantamento
feito pelo Supremo em Números, projeto da Escola de Direito da FGV do
Rio de Janeiro, mostra que entre os últimos oito presidentes, Toffoli
foi o segundo que mais proferiu decisões monocráticas — ele fica atrás apenas da
sua antecessora, Cármen Lúcia. Foram 102 despachos diários, na média. Só nos
meses de plantão judiciário, o ministro proferiu 1,1 mil decisões.
Para o
jurista Joaquim Falcão, professor titular de Direito Constitucional da
FGV do Rio, há uma “concentração de poder” demasiada na figura do presidente do
Supremo. Além disso, ele enxerga excessos no que chama de “plantonismo” para
definir a profusão de decisões monocráticas durante os plantões judiciários.
As
consequências desses problemas, por óbvio, variam de acordo com o perfil de
quem está com a caneta. Para Falcão, o STF se divide em duas
alas: a dos ministros institucionais, mais técnicos e imunes aos vírus da
política, e a dos ministros de conjuntura, que rompem a neutralidade e atuam de
forma estratégica conforme as circunstâncias. “Esse modelo de conjuntura foi
a prioridade do presidente Toffoli, que colocou em jogo a impessoalidade
e a neutralidade, extrapolando os limites dos Três Poderes. A função do ministro
é dizer se aquilo é constitucional ou não e não fazer acordos com o governo, se
encontrar com presidente para discutir pautas e estratégias”, afirma.
Além de Flávio Bolsonaro, estão entre os figurões da
política beneficiados pelas decisões monocráticas de Toffoli o
governador do Rio, Wilson Witzel, que conseguiu uma decisão favorável
para protelar o processo de impeachment na Alerj, e
o senador tucano José Serra, que teve duas investigações suspensas pelo ministro.
Ambas as decisões ocorreram no último plantão judiciário.
Ao mesmo tempo que decidia sobre os pleitos judiciais de políticos enrolados, Toffoli não poupava tinta para fustigar a
Lava-Jato. Foi, aliás, a revelação do apelido dele nas mensagens internas
trocadas por Marcelo Odebrecht com executivos da empreiteira que levaram
o ministro Alexandre de Moraes a censurar Crusoé e O
Antagonista, em abril do ano passado, no famigerado inquérito do fim do
mundo.
O pedido para que fossem adotadas providências em relação à
reportagem foi feito a Moraes pelo próprio Toffoli, por
mensagem de texto. O inquérito havia sido instaurado de ofício por Toffoli,
e Moraes, escolhido por Toffoli para conduzi-lo.
O inquérito, que tem partes mantidas até hoje em segredo,
empilha medidas polêmicas. De instrumento pensado inicialmente para conter eventuais
arroubos do projeto de poder bolsonarista, virou um buraco sem fundo repleto de
decisões que afrontam o texto constitucional, aquele mesmo que o Supremo
deveria guardar.
Como no Brasil são as circunstâncias que mandam, o
procedimento acabou ganhando a chancela do plenário — ante a franca campanha da
militância contra a corte àquela altura, reconhecer os excessos da apuração
secreta significaria curvar-se aos ataques.
Em seu último plantão como presidente da Corte, Toffoli
despachou mais um torpedo que atingiu em cheio a Lava-Jato. Atendendo a
um polêmico pedido de Augusto Aras, o ministro determinou que forças-tarefas da
operação enviassem todas as suas bases de dados, incluindo informações
sigilosas, para a PGR. A invasão de competência desagradou o ministro Edson
Fachin, juiz natural da ação, que revogou a decisão assim que retornou no
recesso.
Há tempos que Toffoli vem criticando a maior operação de
combate a corrupção já deflagrada no país. Entre seus argumentos está o de
que a Lava-Jato “destruiu empresas”. Foi com base nessa premissa que ele costurou o acordo de cooperação com o governo federal e o TCU que excluiu o Ministério Público das negociações envolvendo os acordos de leniência.
A decisão representou mais um tijolo na muralha que continua a ser erguida
contra a Lava-Jato.
“Toffoli tentou assumir um papel de
moderador que não cabe ao Supremo. Não é atribuição do presidente do STF
fazer acordos com o Poder Executivo. A corte precisa ser absolutamente
independente. Foi uma gestão muito contraditória, que se comprometeu em atender
aos interesses dos detentores do poder para tentar manter uma política de boa vizinhança”,
afirma o jurista Miguel Reale Júnior, que foi ministro da Justiça no
governo FHC.
Mais recentemente, a veia política de Toffoli colocou-o na articulação para tentar emplacar o atual ministro da Justiça, André
Mendonça, na vaga que será aberta com a aposentadoria do decano, em novembro.
Com tantos retrocessos alcançados nos dois últimos anos, é improvável que o
próximo presidente do Supremo, Luiz Fux, tenha condições de reparar
rapidamente os danos da gestão que termina hoje.
Como o próprio Toffoli
profetizou em seu discurso de posse, citando trecho de uma música de Renato
Russo, “o futuro não é mais como era antigamente”.
Enfim, tchau, querido! Já vai tarde!