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domingo, 14 de agosto de 2022

ERA UMA VEZ, NO PAÍS DAS MARAVILHAS...

 

Por ter exercido apenas cargos de gestão até 2010, Dilma adquiriu o hábito de mandar. No Planalto, incorporou novas "virtudes", como a soberba, a arrogância e a agressividade. Impaciente, queria tudo “para ontem”. Ignorante, posava de onisciente. Contrariada, atirava objetos nas pessoas — grampeadores eram repostos regularmente em seu gabinete. 


As folclóricas "pedaladas fiscais" foram apenas a justificativa mais à mão para o pé na bunda. A estrupícia foi defenestrada por não ter jogo de cintura no trato com o Congresso. Mas seu vice, que foi o grande mentor e o maior beneficiário do impeachment, tinha traquejo político de sobra. 

 

Caçula temporão de oito irmãos, Michel Miguel Elias Temer Lulia graduou-se em Direito pela USP em 1963 e ingressou na política no ano seguinte, mas só se filiou ao PMDB (hoje MDB), em 1981. Depois de ocupar os cargos de procurador-geral do Estado e secretário de Segurança Pública de São Paulo, o futuro vampiro do Jaburu foi deputado federal por seis mandatos e presidente do PMDB por mais de 15 anos. Em 2009, Temer foi o primeiro colocado entre os parlamentares mais influentes do Congresso. No ano seguinte, aceitou o convite de Lula para disputar a vice-presidência na chapa encabeçada por Dilma


No final de 2015, o nosferatu enviou à "chefa" uma carta (que ele próprio se encarregou de vazar para a imprensa) reclamando de ser um "vice decorativo" e dizendo que sempre teve ciência da desconfiança de Dilma e do PT em relação a ele e ao PMDB. Em resposta, a mandatária afirmou que “não via motivos para desconfiar um milímetro de seu vice, que sempre teve um comportamento bastante correto”, mas logo percebeu que estava enganada. 

 

Assim que a Câmara votou a admissibilidade do impeachment, Temer vazou um arquivo de áudio em que ele falava como se estivesse prestes a assumir o governo. No dia seguinte, Dilma esbravejou que "havia um golpe em curso, e que tinha chefe e vice-chefe" (referindo-se a Temer e a Eduardo Cunha, então presidente da Câmara). 


Madame foi afastada no dia 11 de maio e penabundada em 31 de agosto, quando então o "golpista" passou de presidente interino a titular. Os puxa-sacos de plantão convenceram-no a trocar o Jaburu pelo Alvorada, argumentando que "a mudança atribuiria legitimidade a seu mandato". E assim foi feito. Mas Temer voltou ao Jaburu depois de pouco mais de duas semanas; segundo ele próprio afirmou a VEJA, o Alvorada é assombrado


Como se vê, o Brasil é um país tão surreal que até vampiro tem medo de fantasma.

 

Inicialmente, a troca de comando foi como uma lufada de ar fresco numa catacumba. Depois de mais de 13 anos ouvindo garranchos verbais de um semianalfabeto e frases desconexas de uma destrambelhada, ter um presidente que não só sabia falar como até usava mesóclises foi um refrigério. Para além disso, Temer conseguiu reduzir a inflação, baixar a Selic e aprovar a PEC do Teto dos Gastos e a Reforma Trabalhista. Mas seu ministério de notáveis se revelou uma notável agremiação de corruptos. 

 

Em pouco mais de um mês de governo, caíram os ministros do Planejamento, da Transparência e do Turismo. O primeiro, Romero Jucá — que defendeu um pacto para “estancar a sangria” produzida pela Lava-Jato —, ganhou do presidente uma secretaria criada especialmente para evitar que ele perdesse o foro privilegiado.  Na sequência, caíram o Advogado-Geral da União e os ministros da Cultura e da Casa Civil (foi num apartamento deste último que a PF apreendeu R$ 51 milhões em dinheiro vivo, armazenados em malas e caixas de papelão). Temer se empenhou em preservar Eliseu Padilha e Moreira Franco, que, nas palavras de Joesley Batista, ajudavam o presidente a comandar “a quadrilha mais perigosa do Brasil”.

 

Temer almejava entrar para a história como “o cara que recolocou o Brasil nos eixos”. O sonho durou pouco. Depois que sua conversa de alcova com Joesley Batista foi revelada por Lauro Jardim, o presidente passou a ser lembrado pela célebre frase “tem de manter isso, viu”. O então procurador-geral Rodrigo Janot (outra aberração da natureza) ofereceu duas denúncias contra ele, que não se deu por achado: com a ajuda de sua tropa de choque (capitaneada Carlos Marun, o ridículo), montou sua tenda de mascate libanês na porta da Câmara e passou a oferecer cargos e verbas em troca dos votos das marafonas parlamentares. 


Observação: Nada muito diferente do que Lula tentou fazer durante o impeachment de sua deplorável sucessora. Mas o petralha malhou em ferro frio, e Temer conseguiu que a maioria do lupanar entoasse a marcha fúnebre enquanto as denúncias de Janot eram sepultadas.

 

Corta para julho de 2022:  Um petista habituado às negociações e articulações políticas afirmou em off que o ex-presidente estava propenso a trabalhar por uma aliança em torno de Lula ainda no primeiro turno, em detrimento da candidatura da senadora emedebista Simone Tebet. Como contrapartida, o vampiro pediu que o PT deixasse de se referir a ele como “golpista”. 


Apesar de ser um exímio estrategista, Temer não só deu com os burros n'água como provocou a ira de Dilma, a irascível, ao destacar durante uma entrevista que madame era “honestíssima”. Não use minha honestidade para aliviar sua traição”, reagiu a estocadora de vento, exsudando ressentimento. 


Embora pudesse render bons frutos eleitorais, a aliança era considerada improvável. Querer que o PT deixe de tratar o impeachment como um golpe seria exigir demais da patuleia.

 

Continua...

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

SOBRE JUSCELINO, A CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA E OTRAS COSITAS MÁS


Pessoas normais se miram no espelho e veem a própria imagem. Ególatras, megalômanos e lunáticos tendem a a enxergar quase sempre aquilo que gostariam de ver — ou de ser. Isso explica por que o retirante pernambucano que vendeu laranjas, engraxou sapatos e trabalhou como office boy antes de se tornar torneiro mecânico, eneadáctilo, dirigente sindical, fundador de partido político e, pasmem!, presidente da República — mesmo que desta República — comparar-se a Juscelino Kubitschek de Oliveira.

Conforme eu antecipei no post anterior, nem tudo foram flores no governo do mineiro de Diamantino. Houve erros, parcerias condenáveis, indiferença à cupidez das empreiteiras e menosprezo ao poder de fogo do dragão inflacionário. Mas a construção de Brasília, em que pesem todas as controvérsias (veremos isso em detalhes mais adiante) foi determinante para a ocupação do Centro Oeste e da Amazônia brasileira.

A despeito da dificuldade em convencer o PSD a abraçar sua candidatura, de ter sido eleito com o menor percentual de votos alcançado pelos presidentes brasileiros no pós-guerra e de sua posse ter sido contestada por adversários golpistas e se dado em pleno estado de sítio (decretado por Nereu Ramos; para mais detalhes, clique aqui), Juscelino entregou a Jânio um pais muito melhor do que recebeu de seus predecessores (no governo anterior, pela primeira vez na história, o Brasil teve três presidentes numa única semana). 

Se compararmos o legado de JK com o de seus sucessores, talvez fosse exagero dizer que um estadista do quilate de Winston Churchill governou o Brasil de 1956 a 1960, mas certamente seria injusto não reconhecer que seu governo merece mais elogios do que críticas.

Sem querer discutir aqui questões laterais de semântica, há caso em que o termo "melhor" não define necessariamente aquilo que possui o máximo de atributos para satisfazer certos critérios de apreciação, mas apenas "menos pior", ou seja, o menor dos males envolvidos numa comparação. Assim, a pergunta é: o que tivemos desde então?

A resposta é: arroubos autoritários do populista cachaceiro que renunciou após seis meses no cargo; uma tão curta quanto improdutiva experiência parlamentarista, que resultou na volta do presidencialismo sob Jango e culminou com o golpe de ’64 e os 21 anos de chumbo, e a tão sonhada volta da democracia, que desde então vem sendo sistematicamente surrada, violentada e vilipendiada por uma corja de políticos desprezíveis, eleitos por uma choldra de apedeutas incapazes de encontrar o próprio rabo usando as duas mãos e uma lanterna. Mas não vou me estender sobre esse assunto, até porque já o fiz na sequência iniciada por esta postagem

Sobre Brasília... bem, vamos por partes, começando por relembrar que primeira capital desta banânia foi Salvador, na Bahia, que sediou o governo federal até 1753, quando ele foi transferido para a cidade do Rio de Janeiro (no então chamado Estado da Guanabara), e lá permaneceu por até ser transferida para Brasília, em 21 de abril de 1960, que foi construído do nada no meio do nada durante a gestão de JK

Observação: Palácio do Planalto é a sede oficial do governo; o Palácio da Alvorada, a residência oficial do chefe do Executivo de turno; a Granja do Torto, a casa de campo oficial da Presidência, e o Palácio do Jaburu, a residência oficial do vice-presidente da vez (palácios e mordomias palacianas bancadas pela ospália, naturalmente). Em atenção a quem não é íntimo das sutilezas do idioma, "ospália" é o coletivo de palhaços, mas pode designar, por extensão, o conjunto dos pagadores de impostos, indevidamente chamados de "contribuintes", já que "contribuir" pressupõe espontaneidade, e não há nada menos espontâneo que o pagamento de tributos.

Curiosamente, Michel Temer, que era vice de Dilma, mas passou a titular quando a anta foi expelida da Presidência, voltou de mala e cuia para o Palácio do Jaburu após poucos dias no Alvorada, a despeito dos R$ 20 mil gastos com a adaptação da residência oficial às necessidades de Michelzinho. Em entrevista concedida à revista Vejao Vampiro do Jaburu confessou que tem medo de fantasmas:

"O Palácio da Alvorada tem um monte de quartos, uns oito, todos muito grandes. Tudo muito amplo, bonito, mas senti uma coisa estranha lá. Eu não conseguia dormir; Desde a primeira noite, senti que a energia não era boa. A Marcela sentiu a mesma coisa. Só o Michelzinho, que ficava correndo de um lado para outro, gostou. Chegamos a pensar: será que tem fantasma?"  

No Rio, o Palácio do Itamaraty foi a primeira sede do governo federal, que de lá se mudou para o Palácio do Catete em fevereiro de 1897. O que pouca gente sabe é que Curitiba, capital do Paraná, foi nomeada capital do Brasil por três dias, de 24 e 27 de março de 1969.

Continua...

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

POR QUE NÃO TE CALAS, GUEDES?



Se Bolsonaro não aprendeu nada com Paulo Guedes nestes 11 meses de governo, o ministro parece ter absorvido por osmose a vocação inata do capitão para falar merda, como deixou bem claro duas vezes seguidas numa entrevista em Washington (EUA).

É fato que essa coisa de “AI-5”, que a maioria nem sabe o que é, virou uma tremenda chatice. Ninguém pode abrir a boca para dizer “AI-5” e a elite do bem entra em crise de nervos imediata. Nem é preciso defender, basta mencionar para ser excomungado. Sabendo disso, só não evita quem não quer.

Conhecido por seu pavio curto, o Posto Ipiranga de Bolsonaro mordeu a isca jogada pelo dublê de semeador do caos e sumo-pontífice da seita do inferno, que recuperou a liberdade por uma decisão do STF ainda mais estapafúrdia que as falas infelizes do ministro e agora assumiu o papel revolucionário-mor deste arremedo de república, onde ninguém parece ter colhões para pôr ordem no galinheiro e devolver esse crápula vermelho ao lugar a que ele pertence.

O primeiro troçulho veio à luz quando o ministro disse que "ninguém deve estranhar se alguém pedir o AI-5 diante de uma possível radicalização dos protestos de rua no Brasil", e o cagalhão seguinte, quando, face à redução da Selic, afirmou que "a cotação de equilíbrio do dólar tende a ir para um lugar mais alto", e que "flutuações no câmbio não são motivo de preocupação".

Diante dessas lamentáveis asnices, a cotação da moeda americana disparou — forçando o BC a intervir duas vezes para conter a alta — e o índice B3 da Bolsa de Valores despencou quase 2 pontos.

Torno a dizer que nosso presidente falastrão, admirador confesso dos tempos do "prendo e arrebento" (falo da ditadura que sucedeu ao golpe de 1964 e durou vinte e um anos), criticou os generais por prenderem demais e matarem de menos, e agora, por medo de melindrar os togados supremos que blindaram seu primogênito das investigações do "caso Queiroz", fecha-se em copas e engole calado todos os sapos a que têm direito. Lembro também que o próprio Lula, depois de ser conduzido coercitivamente para depor na PF do Aeroporto de Congonhas em 2016, ensinou que "para matar a jararaca é preciso bater na cabeça; como bateram no rabo, a jararaca continua viva como sempre esteve". 

Não se controla a hidrofobia acorrentando o cão raivoso; é preciso sacrificar o animal. Mas pensar está longe de ser nosso esporte nacional, daí o brasileiro ter tanta dificuldade para aprender as lições que vida dá. Dito isso, passo a palavra ao mestre Josias de Souza:

O medo tem múltiplos olhos. Eles são invisíveis. E enxergam coisas no subsolo da existência. Já se sabia que a família Bolsonaro cria as assombrações e depois se assusta com elas. Descobre-se agora que os fantasmas dos Bolsonaro apavoram também Paulo Guedes. Com pânico de Lula, o ministro da Economia teve um surto de inépcia. Aderiu ao radicalismo da estupidez. Numa viagem em que deveria acalmar investidores nos Estados Unidos, Guedes conseguiu inquietar observadores no Brasil.

Numa única entrevista, revelou-se alérgico ao cheiro de asfalto — "Acho uma insanidade chamar o povo pra rua pra fazer bagunça" —, sensível aos pendores repressivos de Jair Bolsonaro — "Ele só pediu o excludente de ilicitude" — e permeável a aventuras ditatoriais — "Não se assustem se alguém pedir o AI-5". Sob o impacto do ronco emitido pelas ruas em países vizinhos, atribuiu a letargia das reformas pós-Previdência ao medo do monstro: "Qualquer país democrático, quando vê o povo saindo para a rua, se pergunta se vale a pena fazer tantas reformas ao mesmo tempo."

Na sequência, o ministro elegeu Lula como culpado pela insanidade que o rodeia: "Assim que ele [Lula] chamou para a confusão, veio logo o outro lado e disse: "É, sai pra rua, vamos botar um excludente de ilicitude, vamos botar o AI-5, vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. Que coisa boa, né? Que clima bom!".

Lulafóbico, o ministro perdeu a noção do tempo e do ridículo. Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três, levou o AI-5 à vitrine antes do discurso de porta de cadeia em que a divindade petista exaltou as manifestações que sacodem a América Latina. De resto, os bolsonaristas é que tomaram gosto pelas ruas. Praticam a democracia direta, na qual o meio-fio e a internet produzem maioria parlamentar na marra.

Lula e o petismo não se auto atribuem tanto poder. No ano passado, ao discursar no comício que antecedeu a sua prisão, Lula testou seus poderes ao convocar os devotos para "queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas, as ocupações no campo e na cidade…" O orador foi em cana. E seus seguidores foram para casa.

No 7º Congresso do PT, encerrado no domingo passado, a ala esquerdista da legenda sugeriu a adesão ao "Fora Bolsonaro". O grupo majoritário, liderado por Lula, injetou no documento aprovado no encontro uma emenda que expõe os pés de barro do petismo. Ficou decidido que a direção do PT pode exigir a saída de Bolsonaro a qualquer momento, desde que se materialize uma "evolução das condições sociais", da "percepção pública sobre o caráter do governo" e da "correlação de forças".

Quer dizer: a insurreição das ruas não depende de Lula. O asfalto só vai roncar se Bolsonaro e Guedes fornecerem material. E a dupla parece decidida a corresponder às expectativas dos seus adversários. Há irresponsáveis na oposição. Mas nada supera a irresponsabilidade de um governo que, tendo 12 milhões de desempregados para atender, prefira transformar o país num trem-fantasma.

sábado, 13 de janeiro de 2024

O 8 DE JANEIRO E A POLARIZAÇÃO (CONTINUAÇÃO)


Sir Winston Churchill ensinou que "a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos", e que "o melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano." Anthony Downs ensinou que ganha a eleição quem conquista o eleitor mediano, pois os candidatos de esquerda e direita têm garantidos os votos dos eleitores que comungam de suas convicções político-ideológicas.
 
Conhecido como Teorema do Eleitor Mediano, esse axioma vicejou no Brasil de 1994 até 2014, quando então a reeleição de mulher sapiens gerou uma polarização que vazou da política para as ruas. Em 2016, a insatisfação popular deu azo ao impeachment da gerentona de araque e à ascensão de Michel Temer, que prometeu um ministério de notáveis e empossou uma notável confraria de corruptos. Sua "ponte para o futuro" era de vidro e se quebrou quando O Globo publicou uma conversa de alcova gravada à sorrelfa por certo moedor de carne bilionário travestido de x-9. 
 
Alvo de três "Flechadas de Janot" — o PGR que mais adiante reconheceu ter ido armado ao STF para matar o semideus togado e se suicidar —, 
vampiro que tem medo de fantasma empenhou nossas cuecas em troca de apoio das marafonas do Centrão, mas terminou sua gestão como um patético "lame duck" — termo usado pelos americanos para definir políticos que chegam tão desgastados ao final do mandato que até os garçons demonstram seu desprezo servindo-lhes o café frio.
 
Como desgraça pouca é bobagem, desse caldeirão infernal emergiu o amálgama mal ajambrado de mau militar e parlamentar medíocre que, em 2018, fantasiado de outsider antiestablishment e surfando na onda do antipetismo, impôs ao títere
 do então presidiário mais famoso do Brasil uma derrota acachapante. 
 
Observação: Como eu antecipei numa postagem de novembro de 2021, a maldita polarização transformou o pleito de 2022 em mais plebiscito, obrigando-nos (mais uma vez) a escolher o menor de dois males (lembrando que toda má escolha feita por falta de alternativa continua sendo uma má escolha). E não há nada como o tempo para passar. 
 
Sétimo filho (noves fora quatro que "não vingaram") de um casal de lavradores pernambucanos pobres e analfabetos, Luiz Inácio da Silva nasceu em 1945, conheceu o pai aos 5 anos e retirou para São Paulo aos 7, em 1952, onde morou com o pai, a mãe e os irmãos até que uma surra de mangueira levou dona Lindú a deixar o marido alcoólatra, rude e ignorante e se mudar para um cubículo nos fundos de um boteco do bairro paulistano do Ipiranga, onde Lula trabalhou como auxiliar de tinturaria, engraxate e office-boy até se formar torneiro mecânico e perder o dedo mínimo da mão esquerda num acidente pra lá de suspeito. 
 
Observação: Vale destacar que Aristides Inácio da Silva — que foi alcunhado de "homem das sete mulheres" pelos colegas estivadores, morreu de cirrose em 1978 e foi enterrado numa vala comum: nem dona Lindú, nem as amantes, nem os vinte e tantos filhos que ele espalhou Brasil afora lhe deram um túmulo e um epitáfio. 
 
Estimulado pelo irmão Frei Chico (que não era frade, mas ateu, não se chamava Francisco, mas José, e era membro do Partido Comunista Brasileiro), Luiz Inácio iniciou sua trajetória de sindicalista e ganhou o apelido pelo qual é conhecido até hoje, mas que só incorporou depois de fundar o PT e de ficar em 4º lugar na primeira eleição direta (pós-ditadura) para governador de São Paulo. 

Falando em apelidos, Brizola — que chamava Lula de "cachaceiro" — disse em 1989 que "política é a arte de engolir sapos" — daí o epíteto "sapo barbudo". Em 2002, quando se elegeu presidente pela primeira vez (após três tentativas fracassadas), o xamã do PT ficou conhecido como "Lulinha paz e amor"; em 2006, durante a campanha pela reeleição, ganhou da adversária Heloísa Helena a alcunha de "sua majestade barbuda"; nos bastidores do Planalto, era chamado de "chefe", "grande chefe" e "nine" (numa alusão ao dedo mindinho decepado em 1964, num acidente pra lá de duvidoso); nas planilhas de propina da Odebrecht, identificado como "Amigo" e "Brahma". 
 
Observação: Em meados dos anos 1980, Golbery do Couto e Silva — ex-chefe da Casa Civil em dois governos militares, idealizador do SNI da ditadura e arquiteto da "abertura lenta, gradual e segura" — confidenciou a Emílio Odebrecht que Lula nada tinha de esquerda, que não passava de 
um bon vivant

Em 1986, Lula foi o deputado federal mais votado do país; em 1989, no segundo turno da primeira eleição direta para presidente pós-ditadura, perdeu para Fernando Collor; em 1994, foi derrotado por Fernando Henrique, que tornou a vencê-lo em 1998, sempre no primeiro turno. Em 2002, sua vitória sobre José Serra deu início ao jugo lulopetista que só terminaria 13 anos 4 meses e 12 dias depois, com o afastamento da nefelibata da mandioca. Dois meses antes, ao ser conduzido coercitivamente à PF para depor, Lula esbravejou: "Quiseram matar a jararaca, mas bateram na cabeça, bateram no rabo, e a jararaca está viva como sempre esteve". 
 
Continua... 

sábado, 23 de outubro de 2021

A HORA DO IMPEACHMENT DE BOLSONARO

Sabemos que os políticos são eleitos, ou seja, que não brotam em seus gabinetes por geração espontânea. Também sabemos que a "qualidade" do eleitorado tupiniquim é a pior possível, e que quem vota em candidatos ímprobos e incompetentes não pode se queixar de estar mal representado. Mas a minoria mais esclarecida sabe quão mal representada esteve desde a primeira vitória de Lula (não que estivesse bem representada durante aos dois mandatos de FHC), e sabe também quão pior ficou a situação do país sob o mandatário de turno. A questão que se coloca é: o que fazer para mudar isso?

A resposta é: com esse Congresso, sem chance. Basta observar o comportamento dos parlamentares para inferir que as necessidades da nação e os anseios da população não são prioridades para essa caterva (com raras e honrosas exceções). E isso vale também para o chefe do Executivo Federal, que se elegeu porque muitos de nós teríamos teria votado no Demo em pessoa para impedir a volta do lulopetismo corrupto — e sabemos agora que foi quase isso que fizemos.

As promessas de campanha do "mito" jamais subiram a rampa do Planalto, ao passo que o dito-cujo, o Messias que não miracula, jamais desceu do palanque. Sua vitória decorrou da mais absoluta falta de alternativa, mas não imaginávamos, em 2018, que seu (des)governo seria algo como a emenda pior que o soneto.

Dormitam nos escaninhos da presidência da Câmara quase 140 pedidos de impeachment em desfavor de Bolsonaro. Mas foi graças a Bolsonaro e a bilhões de um orçamento paralelo que não ficou bem explicado (até porque não há como explicar o inexplicável) que a Câmara é presidida por um deputado-réu que, juntamente com o atual chefe da casa-civil da Presidência, dita as regras no famigerado Centrão

Enquanto estiverem lucrando com a permanência de Bolsonaro no cargo, os parlamentares centristas continuarão a desempenhar o papel que desempenham desde 1987 — de "marafonas do Congresso" — e seus líderes, a blindar o execrável chefe do Executivo. Como desgraça pouca é bobagem, comanda a Procuradoria-Geral da República uma versão revista, atualizada e piorada do engavetador-geral da República Geraldo Brindeiro — que foi guindado ao cargo pelo então presidente FHC.

A CPI do Genocídio concluiu seu relatório. A despeito da cisão do G7 na reta final, será pedido o indiciamento de Bolsonaro e outros investigados que transformaram em política pública o tratamento da Covid com remédios ineficazes, apostaram na imunização coletiva pelo contágio, negligenciaram o colapso hospitalar de Manaus, retardaram a compra de vacinas da Pfizer e do Butantan, firmaram contrato irregular para a compra da vacina indiana Covaxin e abriram as portas do Ministério da Saúde para picaretas que ofereciam vacinas inexistentes. Ou seja, a Comissão pretende acusar Bolsonaro tanto pela prática de crimes comuns quanto de crimes de responsabilidade, e o dito-cujo, escudado por Augusto Aras e Arthur Lira, dá-se ao luxo de dizer que está cagando e andando para a CPI

Renan Calheiros, por sua vez, tornou-se a personificação do paradoxo vivido pela CPI. Há dois anos, quando o Senado aprovou a nomeação de Aras, o senador alagoano não conseguiu conter o entusiasmo. Naquela época, ele estava ao lado do primeiro-filho do Presidente — outro entusiasta da escolha de Aras. Freguês de caderneta da Lava-Jato, o Cangaceiro das Alagoas queria acertar as contas com a força-tarefa de Curitiba; denunciado pelo MP-RJ por peculato e lavagem de dinheiro, Flávio "Rachadinha" Bolsonaro estava à procura de blindagem.

PGR — e, por extensão, o Ministério Público Federal — vive um apagão mental. Já se sabia que Aras trata o Messias que não miracula como um ser inviolável e imune (eufemismos para intocável e impune). Descobriu-se mais adiante que, para livrar o suserano de incômodos judiciais, o procurador-vassalo e sua equipe enquadraram-no na categoria dos seres inimputáveis. Bolsonaro obteve da PGR um salvo-conduto para delinquir. Pode tudo, inclusive arrancar máscara da cara de criancinha. PT e PSOL pediram no STF a abertura de inquéritos para apurar a violação de leis estaduais e federal em aglomerações promovidas pelo mandatário durante passeios de moto com seus devotos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Norte. A subprocuradora-geral Lindôra Araújo (braço direito de Aras), a quem coube formular a manifestação da PGR, sustentou que Bolsonaro não infringiu medidas sanitárias nem colocou a vida de ninguém em risco.

Bolsonaro fez uma opção preferencial por exercer o cargo de presidente à margem da lei. Transgride até leis que ele próprio sancionou. Como há males que vêm para pior, Aras e sua equipe promovem uma junção da ilegalidade com a impunidade. Resta saber até quando um país inteiro terá de passar vergonha para que um procurador-geral e sua equipe ofereçam blindagem a um presidente da República que se converteu num infrator serial.

Vivo, Darwin diria que a atuação da PGR não é apenas uma prova de que o ser humano parou de evoluir. Trata-se de uma evidência de que ele já faz o caminho de volta. No momento, o melhor lugar para se proteger de Bolsonaro é uma caverna nas montanhas do Afeganistão. Aliás, se o homem de Neandertal desconfiasse que o resultado da evolução seria bolsonaros, talvez não tivesse saído da caverna. Teria optado por uma versão pré-histórica do isolamento social.

Tudo indica que o capitão continuará destruindo o país — com fez Dilma até maio de 2016, quando foi afastada do cargo e substituída pelo vice decorativo (o folclórico vampiro que tem medo de fantasma) — até o mais amargo fim. Como a almejada reeleição fica mais distante a cada dia (embora política seja como as nuvens no céu; a gente olha e ela está de um jeito, olha de novo e o cenário já mudou), a intenção do mandatário de fancaria parece ser a de entregar terra arrasada a seu sucessor. Vire-se (para não dizer "foda-se"), dirá sua alteza irreal a quem lhe suceder em janeiro de 2023.

Também mais distante a cada dia torna-se a possiblidade de o negacionismo em forma de gente (?!) ser apeado do cargo (para o qual reconheceu não ter sido talhado), e periga o Posto Ipiranga caminhar a seu lado até o mais amargo fim. No final da última quarta-feira, devido ao "furo no teto dos gastos", quatro integrantes do primeiro escalão do Ministério da Economia pediram demissão.

Afere-se o grau de degradação da República entre nós tomando o pulso do organismo capaz de produzir a baixaria em que rasteja a indicação de André Mendonça ao STF. O senador Davi Alcolumbre, que foi guindado à presidência do Senado como representante do que seria a nova política — em contraposição a Renan Calheiros, que representava a velha —, comanda hoje Comissão de Constituição e Justiça da Casa como um dono de repartição consciente dos próprios direitos, controlando a agenda de sabatinas e empurrando para as calendas a de André Mendonça, dublê de ex-ministro da Justiça, ex-AGU e pastor presbiteriano, que Bolsonaro indicou (há mais de 3 meses) para ocupar a vaga do ora ex-decano Marco Aurélio.

Chegou-se à altura do buraco, ainda muito a descer, em que as pelejas por uma cadeira em corte constitucional converteram-se em “guerra religiosa” — contribuição particular de Bolsonaro, com sua promessa de ministro “terrivelmente evangélico”, a essa vala. O exercício da autonomia pelo presidente da CCJ é ato político. Nisso não vai qualquer problema intrínseco. A questão é outra.

O senador não segura a submissão de Mendonça ao Senado para proteger “a legítima autonomia do presidente da CCJ”. Não é uma batalha em defesa da independência do Congresso, nem contra o aparelhamento bolsonarista das instituições — ou não teriam reconduzido Augusto Aras à PGR. Por que, então, a segura? Bolsonaro já explicou: "[Alcolumbre] Teve tudo o que foi possível durante os dois anos comigo e, de repente, ele não quer o André Mendonça".

Bolsonaro, com sua objetividade de autocrata, é transparente sobre os orçamentos secretos. Rei morto, rei posto. Enquanto presidiu a Câmara Alta, Alcolumbre "teve tudo o que foi possível" e não criou embaraços. Era sócio. Ao passar a cadeira, perdeu graças. E decerto terá sido traído pelo morubixaba de festim, notório descumpridor de promessas, acordos e tal e coisa. Em suma: o senador amapaense estica a corda por interesses pessoais, e em nome deles, para fazer barganha, exerce, perverte e privatiza uma prerrogativa, músculo do equilíbrio republicano, do Senado.

Eis a República entre nós: Alcolumbre, autodeclarado alvo de “intolerância religiosa” (por ser judeu), não agenda a sabatina porque perdeu boquinha; Bolsonaro, o que “não tem ideia”, acusa Alcolumbre de reclamar de barriga cheia; o pastor Silas Malafaia ataca graúdos (de súbito dóceis) do Centrão para reivindicar a propriedade evangélica da cadeira vaga no STF; e o futuro de André Mendonça como membro da corte depende de tudo, menos da avaliação sobre se estará à altura de integrar o Supremo.

E viva o povo brasileiro!

Com Carlos Andreazza

sábado, 12 de junho de 2021

ACELERA PARA CRISTO (E VAI COM DEUS)


Raciocinar jamais foi o esporte nacional, mas os poucos gatos-pingados (*) que o praticam veem com apreensão a possibilidade nada alvissareira de 2022 ser um repeteco de 2018 no que tange à eleição presidencial. 

Fala-se muito numa terceira via, no surgimento de um candidato de centro (não confundir com Centrão) e coisa e tal, mas tudo indica que o bolsonarismo boçal disputará contra o lulopetismo corrupto a prerrogativa constitucional de destruir o Brasil pelos próximos 4 anos. 

Claro que o imprevisto pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, sobretudo quando se está em meio à maior pandemia sanitária da história recente. A questão é que o Diabo detesta concorrência — como comprova o fato de ambos os virtuais candidatos terem sido infectados e sobrevivido ao coronavírus. 

E ainda tem gente que diz que Deus é brasileiro...

(*) Gato-pingado: Antigamente, indivíduo que acompanhava enterros a pé, empunhando uma tocha. Por extensão, cada um dos poucos que comparecem a reunião ou evento.

A CPI do Genocídio completou seis semanas (o prazo de 90 dias pode ser prorrogado por mais 90). Na terça-feira 8, o quarto ministro da Saúde neste governo macabro foi ouvido pela segunda vez e, como era esperado, mudou versões para blindar o chefe. Na quarta, 9, foi a vez de Élcio Franco, segundo no comando da pasta durante a gestão do general que acabou não sendo punido por participar de ato político ao lado de seu amo e senhor. Também para surpresa de ninguém, Franco evitou de todas as maneiras comprometer o presidente.

O governador do Amazonas, Wilson Lima, deveria ser ouvido na sessão da quinta-feira, 10, mas não compareceu. Como ele já foi denunciado pela PGR e é investigado por suposto envolvimento em um esquema de desvio de verbas destinadas ao enfrentamento da pandemia, a ministra Rosa Weber acatou seu pedido de habeas corpus. Se não tivesse obtido decisão favorável na Corte, Lima seria o primeiro governador a depor na CPI (ao todo, foram convocados 9 governadores, mas cerca de 20 recorreram ao Supremo para impedir convocações).

Em virtude da ausência de Lima, os senadores votaram uma série de requerimentos de convocação, de informação e de quebra de sigilo que serão usados para definir os próximos passos da comissão. Prevista para começar às 9h, a sessão foi aberta pouco depois das 10h. Por volta das 11h30, o presidente da CPI, senador Omar Aziz, encerrou a sessão.  Ontem, a microbiologista Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência, e o médico sanitarista Claudio Maierovitch depuseram aos senadores.

O retorno de Queiroga à CPI deixou claro que no ministério da Saúde ainda vigora o lema de Pazuello. A fala do médico evidenciou que o preço da permanência no cargo é a eterna obediência ao desmentir a si mesmo afirmando que foi sua a decisão de não nomear Luana Araújo e ao reconhecer que mantém na equipe pessoas que seguem a filosofia do presidente, mas de cujas diretrizes profissionais ele discorda. Daí a “liberdade” de que o ministro dispõe para defender o uso de máscaras, afirmar a ineficácia da cloroquina no combate ao vírus e advogar com veemência a vacinação como a hoje única forma eficaz de enfrentar a pandemia.

Tudo isso compõe a “persona jurídica” que o presidente encarna em seus pronunciamentos oficiais e viagens de Estado, cujo comportamento contrasta com a conduta do candidato à reeleição que, ele acredita, o autoriza a agir como pessoa física dedicada a estimular seu eleitorado. Por fim, quem resumiu o estado de coisas foi o senador Omar Aziz, ao dizer que se o ministro não consegue nem convencer o presidente a não aglomerar, a usar máscara e a se vacinar, não conseguirá convencer a população a adotar as medidas corretas que defende em tese, mas na prática não consegue executar onde seria essencial: no principal gabinete do Palácio do Planalto.

Na quinta-feira, dirigindo-se a sua récua de baba-ovos, Bolsonaro disse que tinha conversado com “um tal de Queiroga”, e que ele vai “ultimar um parecer para desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados”. À reportagem da CNN, o ministro disse que o presidente pediu um estudo sobre a questão por estar esperançoso, querendo assim seguir o exemplo de outros países, como os Estados Unidos, e explicou que não considera uma precipitação realizar tal pesquisa. “O presidente não me pressiona. Eu sou ministro dele e trabalhamos em absoluta sintonia. É assim que funcionam as democracias”, afirmou o doutor.

Ontem, Bolsonaro voltou a insistir que a decisão final será do ministro da Saúde. O governador João Doria classificou como “mais um ato de irresponsabilidade” a ideia do presidente: “Jair Bolsonaro não tem compaixão e não tem nenhum apreço pela vida, principalmente pela vida do povo brasileiro”. O tucano prometeu multá-lo caso ele não utilize máscara no passeio de moto que deve ser realizado hoje aqui em Sampa. Em resposta, Bolsonaro chamou o tucano de “doninho de São Paulo”.

No final de uma semana em que perambulou pela conjuntura brandindo uma falsa auditoria do TCU para sustentar a tese mentirosa de que há “supernotificação” de mortes por Covid, o capitão das travas promove a infecção em mais uma absurda “motociata”. Nesse cenário, a única coisa que parece fazer sentido é o nome do evento: “Acelera pra Cristo”. A prioridade dos protagonistas da manifestação é acelerar o encontro dos incautos com Cristo.

A deferência ao bom senso e o respeito ao raciocínio lógico não deixam dúvidas quanto à necessidade de impor um freio às tentativas de Bolsonaro de jogar o Brasil no caos. Na confusão, ele se cria. Foi nesse ambiente, agravado por uma tentativa de homicídio, que o capitão se elegeu e aposta na remontagem de um cenário de desarrumação acrescido de contornos de grave crise institucional para se reeleger. Conta com a intimidação como aliada à execução de seu intento. Quanto mais temerosa estiver a sociedade, quanto mais a maioria partidária da democracia estiver convencida de que o país está à beira de um golpe, quanto mais se repete essa ideia, mais se normaliza essa situação e se faz o jogo dos arautos da opressão.

Não significa dizer que se deva ignorar a óbvia preferência do ocupante do Palácio do Planalto por um regime de arbítrio, no qual ele pudesse dar vazão ao impulso de exercer o poder de modo absoluto, a fim de impor ao Brasil suas convicções retrógradas. Não significa defender a indiferença e a inércia diante das repetidas ameaças chantagistas e bravateiras. Ao contrário. O que não se pode é ceder ao medo. Não aquele que põe o ser humano em alerta contra o perigo, mas o excessivo que paralisa, confunde a capacidade de enxergar a realidade com nitidez e dá ao agressor a sensação de que está diante de presa fácil.

A sociedade brasileira que se organizou e se engajou nas lutas coletivas pela anistia, por eleições diretas, pela volta dos militares à disciplina dos quartéis, que viu a inesperada morte do primeiro presidente civil antes da posse, que viveu dois impeachments, uma hiperinflação e assistiu à condenação criminal da cúpula de um partido no poder sem abalos institucionais não está nem pode se colocar no lugar de vítima ante as investidas de caráter golpista.

Não há possibilidade de o Brasil voltar a ser presidido pela tirania, a menos que a sociedade construtora dos feitos acima descritos permita. A eficácia de uma barreira de contenção depende do poder civil, há mais de 35 anos no comando. A representação majoritária desse poder elegeu o presidente que se põe contra as regras estabelecidas pela Constituição de 1988 — outra das obras oriundas do suor democrático — e só a maioria dos brasileiros pode destituí-lo. Seja pela palavra das urnas em 2022 ou por autorização constitucional de um processo de impedimento que talvez tivesse um efeito disciplinador sobre Bolsonaro mesmo que não concretizado.

Outra possibilidade seria a via da resistência organizada na construção de alternativas político-eleitorais que contemplem a retomada da normalidade e incorporem os melhores valores. Os mesmos que fizeram da sociedade civil o agente ativo de avanços obtidos ao longo das últimas décadas em que o Brasil acumulou firmeza institucional, força política e musculatura social suficientes para não sucumbir ao fantasma do temor desmedido.

Por esses e mais uma série de outros motivos é que não há razão para levar em conta a hipótese real de os militares se engajarem nos projetos regressivos de Bolsonaro. Ainda que a atual geração de oficiais estivesse interessada em voltar ao velho tempo, a experiência dos últimos dois anos e meio não estimularia as Forças Armadas a dobrar a aposta numa parceria que lhes impôs graves prejuízos em termos de reputação.

Nesse meio-tempo caiu o pilar da competência inquestionável, caiu o esteio da impessoalidade do serviço ao Estado antes da fidelidade a governos, caiu recentemente o alicerce da disciplina, caiu, enfim, o mito da capacidade militar de imprimir moderação às exacerbações presidenciais. Uma ruína. Nem a esquerda mais radical conseguiu promover semelhante destruição no conceito das três Armas junto à população.

O que se ouve hoje de interlocutores frequentes dos comandantes é que a tendência é levar Bolsonaro em banho-maria a fim de evitar confrontos e trabalhar internamente para que os prejuízos não resultem em quebras irremediáveis de hierarquia, notadamente nas patentes mais baixas e nas PMs país afora.

Em recente entrevista, o professor Paulo Ribeiro da Cunha, autor do livro Militares e Militância, resumiu com acuidade a situação: “Os militares estão mais interessados em buscar uma alternativa do que em ver Bolsonaro como alternativa”. Por outro lado, o arquivamento do processo por indisciplina do general Pazuello por pressão de Bolsonaro gerou insegurança e alimentou suspeitas de que o Exército sucumbiu a um projeto autoritário que está em curso.

A fidelidade canina do general-vassalo ao capitão-suserano foi recompensada com o cargo de secretário de Estudos Estratégicos do governo, e a AGU já recorreu ao STF para impedir a quebra do sigilo telefônico e telemático do general, que a CPI do Genocídio promoveu de testemunha a investigado, juntamente com o ex-ministro da Educação, Ernesto Araújo, e os ex-secretários Élcio Franco e Fábio Wajngarten.  

A versão de que o Alto Comando do Exército acatou a decisão de não punir Pazuello para não criar mais uma crise militar pode denotar ingenuidade por parte dos generais quatro estrelas, mas anula a de que o golpe de Bolsonaro representa a submissão política de uma instituição de Estado ao projeto autoritário do governo da ocasião. O ato do ex-ministro vassalo foi, sem dúvida, contrário aos regulamentos militares, mas praticado não pelo general, mas pelo presidente, que levou o subordinado ao palanque de uma manifestação política.

A decisão do general Paulo Sérgio é compreensível, mas denota uma subserviência preocupante a Bolsonaro (comparável à do atual ministro da Saúde, que se humilha e se anula profissionalmente em troca de um cargo num governo que não vale um peido). Sobretudo porque o presidente vem dando sinais inequívocos de que um autogolpe está a caminho. 

Cravar que o Exército e as Polícias Militares, Federal e Rodoviária Federal o apoiarão nessa aventura seria prematuro, dada a aversão dos fardados a Lula e ao PT (donde a condescendência com que Bolsonaro é tratado). Talvez seja pouco provável que a maioria das Forças Armadas admita respaldar um regime autoritário comandado por um capitão que abusa do “seu Exército” em nome da proteção contra uma assombração esquerdista. Ou talvez não. Em última análise, seria o mesmo erro cometido pelos que consideravam as milícias uma solução para a segurança pública.

terça-feira, 2 de abril de 2024

60º ANIVERSÁRIO DO GOLPE DE `64

 

O golpe de Estado que prefaciou a ditadura militar — aquela que Bolsonaro sempre negou, mas tentou ressuscitar em 2022, e que seu vice classificou de "ditamole" — completou 60 anos no último domingo. O senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República em 1º de abril de 1964, mas episódio entrou para a História com data anterior para evitar associações jocosas com o "dia da mentira". 

Resumindo a ópera em poucas palavras, a renúncia de Jânio e a aversão dos militares a Jango pavimentaram o caminho do golpe, e os subsequentes 21 anos de ditadura deram azo ao surgimento do lulopetismo corrupto e do bolsonarismo boçal (mais detalhes na sequência O desempregado que deu certo). 

Para quem gazeteou as aulas de História, relembro que a Guerra Fria e a Revolução Cubana levaram o sistema político brasileiro do pluralismo moderado ao pluralismo extremamente polarizado, e a situação se agravou com a vitória chapa Jan-Jan (de Jânio e Jango) em 1960. Jânio se elegeu com a promessa de resolver miraculosamente todos os problemas ligados à corrupção e inflação no país, mas, alegando que "forças terríveis" se levantaram contra ele — e apostando que seria reconduzido ao cargo pelo "clamor popular" — despachou Jango para uma missão na China, apresentou sua carta-renúncia e voou para São Paulo levando a faixa presidencial.

Depois de esperar horas na base aérea de Cumbica pelas multidões não apareceram — talvez porque um arranjo urdido nos bastidores impediu que o povo soubesse onde ele estava, ou talvez porque o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista se seu líder tivesse permitido sua existência — o populista cachaceiro embarcou para Europa, e o Brasil mergulhou na crise provocada pelo veto à promoção do "vice comunista" a titular.

Na qualidade de presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli assumiu a chefia do Executivo, mas uma junta provisória formada pelos três ministros militares governou o país até 8 de setembro, quando foi implantado o sistema parlamentarista. Com os poderes limitados e tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, Jango foi autorizado a assumir a presidência como chefe de Estado. 

Curiosidades1) Dali a 24 anos, o primeiro-ministro de Jango se tornaria o primeiro presidente civil pós-ditadura militar. 2) Em 1962, Jânio concorreu ao governo de São Paulo, mas foi derrotado por seu velho desafeto Adhemar de Barros e só voltou a disputar um cargo público em 1985, quando derrotou o tucano Fernando Henrique e o petista Eduardo Suplicy e se elegeu prefeito da capital paulista.

Jango só assumiu o posto a que tinha direito desde a renúncia de Jânio depois que o referendo de 6 de janeiro de 1963 restabeleceu o presidencialismo, mas as tensões se intensificaram quando ele declarou que a reforma agrária era uma questão de honra em seu mandato. Embora não houvesse a menor possibilidade de uma vitória comunista — nem pela via reformista, nem pela luta armada —, parte da elite brasileira bateu às portas dos quartéis, e os militares atenderam prontamente (até porque a doutrina que aprendiam na caserna era a do Ocidente x Pacto de Varsóvia).

Quando a Marcha da Família com Deus pela Liberdade escancarou o apoio civil ao golpe, o Congresso, ameaçado de fechamento, chancelou a derrubada de Jango e a "eleição" do então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas — o marechal Castello Branco —, que deixou o Planalto em 15 de março de 1967 e morreu quatro meses depois, vítima de um acidente de avião no Ceará. Outros quatro generais-ditadores — Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo , se revezaram no poder até 1985, num jogo um jogo de cartas marcadas em que o partido de oposição (MDB) era meramente figurativo. 

Observação: Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe achando que os militares voltariam para os quartéis em 1965, quando haveria novas eleições e Juscelino (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador liberal, democrata) disputariam a Presidência. Mas eles não demoram a perceber que os militares, picados pela mosca azul, tencionavam se perpetuar no poder. 
 
A dança das cadeiras dos fardados terminou com a eleição indireta de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, que reascendeu a chama da esperança no coração de 130 milhões de brasileiros. Mas a alegria durou pouco: por uma trapaça do destino, o presidente eleito baixou ao hospital horas antes da cerimônia de posse e bateu as botas 38 dias e 7 cirurgias depois, deixando de herança um neto que envergonhou o país e um vice que se tornou pai e avô do Centrão
O resto é história recente. 
 
Em 1989, já sob a égide da Constituição Cidadã, os brasileiros voltaram às urnas (depois de um jejum de 29 anos) para escolher seu presidente. Entre os 22 postulantes havia políticos do quilate de Ulysses Guimarães, Mario Covas, Leonel Brizola e Ciro Gomes e aberrações como Enéas Carneiro, Livia Maria Pio e Sílvio Santos, mas o eleitor tupiniquim, sempre pronto a fazer as piores escolhas, escalou Collor (com 30,5% dos votos) e Lula (com 17,2%) para disputar o segundo turno, quando então o pseudo caçador de marajás derrotou o desempregado que deu certo por 53% a 47%.
 
Durante a campanha, Collor prometeu alvejar o "tigre da inflação" com uma "bala de prata". Eleito, apertou o gatilho um dia antes da posse ao pedir a Sarney que decretasse feriado bancário para que o mercado se adequasse ao conjunto de medidas econômicas mais radical que o país já amargou. Além de congelar preços e salários — a exemplo dos planos Cruzado, Cruzado II e Verão, editados durante o governo Sarney—, o Plano Collor bloqueou todo o dinheiro depositado nos bancos e aplicado no mercado financeiro até o limite de Cr$ 50 mil. Como resultado, o PIB encolheu 4,5% e o número de falências, infartos e suicídios teve um aumento significativo.
 
Plano Collor II aumentou tarifas públicas, decretou o fim do overnight e criou a FAF (Fundo de Aplicações Financeiras) e a TR (Taxa de Referência de Juros), mas a inflação voltou a subir, o desemprego cresceu, estatais foram vendidas a preço de banana e houve um desmonte das ferrovias e cortes de investimentos federais em infraestrutura. Entre o fim do Plano Marcílio e o início do Plano Real a inflação baixou dos 2.000% a.a. para "apenas" 1119,91% a.a. — índice registrado no final de 1992, quando o
 Rei-Sol, autoritário como poucos e corrupto como muitos, foi chutado do Planalto pela porta dos fundos
 
Observação: Ciente de que sua deposição eram favas contadas, Collor renunciou às vésperas do julgamento de seu impeachment — que teve como estopim uma entrevista concedida por Pedro Collor à revista VEJA —, mas o Senado seguiu adiante e o condenou (por 76 votos a 3) à perda do cargo e suspendeu seus direitos políticos por 8 anos.   
 
Com a deposição do "Roxinho", o vice Itamar Franco passou a titular e nomeou Fernando Henrique ministro da Fazenda. Impulsionado pelo sucesso do Plano Real, o tucano se elegeu presidente em 1994, comprou a PEC da reeleição em 1997 e se reelegeu 1998. Como não lhe restavam novos coelhos para tirar da velha cartola, FHC não conseguiu eleger José Serra seu sucessor.A
 vitória de Lula em 2002 marcou o início à era lulopetista, que só foi interrompida em 2016, com o impeachment de Dilma

Com a deposição da gerentona de araque, seu vice foi promovido a titular e se mudou para a residência oficial da Presidência, mas voltou semanas depois para o Jaburu, porque, segundo ele, o Palácio da Alvorada é assombrado. Assim, Michel Temer se tornou o primeiro e único caso documentado de vampiro que tem medo de fantasma. 
 
A troca de comando foi como uma lufada de ar fresco numa catacumba: após 13 anos de garranchos verbais de um semianalfabeto e frases desconexas de uma anormal incapaz de juntar sujeito e predicado numa frase que fizesse sentido, um presidente que não só sabia falar como até usava mesóclises pareceu um refrigério. Demais disso, o vampiro do Jaburu
 conseguiu reduzir a inflação (que rodava pelos 10% quando ele assumiu), baixar a Selic e aprovar a PEC do Teto dos Gastos e a Reforma Trabalhista, mas o ministério de notáveis que prometeu se revelou uma notável agremiação de corruptos, e quando sua conversa de alcova com Joesley Batista veio a público, o sonho de entrar para a história como "o cara que recolocou o Brasil nos eixos" virou o pesadelo de vir a ser "o primeiro presidente no exercício do mandato denunciado por crime comum". 
 
Observação: A tropa de choque capitaneada por Carlos Marun contratou um coral de 251 marafonas para entoar a marcha fúnebre enquanto a segunda "flechada de Janot" era sepultada na Câmara, mas Temer terminou seu mandato-tampão como um "pato manco" — que é como os americanos se referem a políticos que chegam tão desgastados ao final do mandato que até os garçons lhes servem o café frio. 
 
Em 2018, uma extraordinária conjunção de fatores empurrou para o Planalto um combo de mau militar e parlamentar medíocre que atribuiu a vitória a uma "cagada do bem". Quatro anos depois, derrotado nas urnas, ele exortou seus paus-mandatos a "virar a mesa". Investigado em sete inquéritos, inelegível até 2030 e na bica de ver o sol nascer quadrado, esse dejeto da escória da raça humana aguarda a primeira condenação posando de perseguido. 
 
A retomada democrática instituída em 1985 com a eleição do presidente "Viúva Porcina" (que foi sem nunca ter sido) e sacramentada em 1988 pela promulgação da Constituição Cidadã não exorcizou os fantasmas da ditadura. No último dia 29, o STF começou a julgar em plenário virtual os limites da atuação das FFAA estabelecidos no Art. 142 da CF (o ministro Luiz Fux, relator da encrenca, já votou pelo sepultamento da tese de que os fardados são o "poder moderador" da República).

Para evitar atritos com as Forças Armadas, Lula vetou qualquer ação alusiva ao golpe de '64, mas sete dos 38 ministros foram às redes sociais prestar homenagens aos "desaparecidos" dos anos de chumbo
Lobotomizados pela polarização semeada pelo "nós contra eles" do xamã petista e estrumada pela extrema-direita radical que saiu do armário durante a campanha de 2018, os devotos do bolsonarismo, vítimas da pior espécie de cegueira, consideram seu "mito" um ex-presidente de mostruário perseguido injustamente por "Xandão", como deixou claro a manifestação de 25 de fevereiro passado.

Observação: Claro que muita gente reza (ou finge rezar) por essa cartilha devido a interesses escusos, da mesma forma e pelos mesmos motivos que muita gente finge acreditar que Lula é a alma viva mais honesta do Universo e que sua prisão "foi uma armação, um dos maiores erros judiciários da história do país". Mas isso é outra conversa. 
 
Em face de todo o exposto, não há o que celebrar em 31 de março (nem em 1 de abril, a não ser o "dia da mentira"). Comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é permitir que ódios do passado envenenem (ainda mais) o presente e destruam o futuro.