Raciocinar jamais foi o esporte nacional, mas os poucos
gatos-pingados (*) que o praticam veem com apreensão a possibilidade nada
alvissareira de 2022 ser um repeteco de 2018 no que tange à eleição presidencial.
Fala-se muito numa terceira via, no surgimento de um candidato de centro (não
confundir com Centrão) e coisa e tal, mas tudo indica que o bolsonarismo boçal disputará contra o lulopetismo
corrupto a prerrogativa constitucional de destruir o Brasil pelos próximos
4 anos.
Claro que o imprevisto pode ter voto decisivo na assembleia dos
acontecimentos, sobretudo quando se está em meio à maior pandemia sanitária da história
recente. A questão é que o Diabo detesta concorrência — como comprova o fato de
ambos os virtuais candidatos terem sido infectados e sobrevivido ao
coronavírus.
E ainda tem gente que diz que Deus é brasileiro...
(*) Gato-pingado: Antigamente, indivíduo que
acompanhava enterros a pé, empunhando uma tocha. Por extensão, cada um dos
poucos que comparecem a reunião ou evento.
A CPI do Genocídio completou seis semanas (o prazo de
90 dias pode ser prorrogado por mais 90). Na terça-feira 8, o quarto ministro
da Saúde neste governo macabro foi ouvido pela segunda vez e, como era
esperado, mudou
versões para blindar o chefe. Na quarta, 9, foi a vez de Élcio
Franco, segundo no comando da pasta durante a gestão do general que acabou não sendo punido por participar de ato político
ao lado de seu amo e senhor. Também para surpresa de ninguém, Franco evitou
de todas as maneiras comprometer o presidente.
O governador do Amazonas, Wilson Lima, deveria ser ouvido na sessão da quinta-feira, 10, mas não compareceu. Como ele já
foi denunciado pela PGR e é investigado por suposto envolvimento em um
esquema de desvio
de verbas destinadas ao enfrentamento da pandemia, a ministra Rosa
Weber acatou seu pedido de habeas corpus. Se
não tivesse obtido decisão favorável na Corte, Lima seria o primeiro
governador a depor na CPI (ao todo, foram convocados 9 governadores, mas
cerca de 20 recorreram ao Supremo para impedir
convocações).
Em virtude da ausência de Lima, os senadores votaram
uma série de requerimentos de convocação, de informação e de quebra de sigilo
que serão usados para definir os próximos passos da comissão. Prevista para começar às 9h, a sessão
foi aberta pouco depois das 10h. Por volta das 11h30, o presidente da CPI, senador
Omar Aziz, encerrou a sessão. Ontem,
a microbiologista
Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência,
e o médico
sanitarista Claudio Maierovitch depuseram aos senadores.
O retorno de Queiroga à CPI deixou claro que
no ministério da Saúde ainda vigora o lema
de Pazuello. A fala do médico evidenciou que o preço da permanência
no cargo é a eterna obediência ao desmentir a si mesmo afirmando que foi
sua a decisão de não nomear Luana Araújo e ao reconhecer que mantém na
equipe pessoas que seguem a filosofia do presidente, mas de cujas diretrizes
profissionais ele discorda. Daí a “liberdade” de que o ministro dispõe para
defender o uso de máscaras, afirmar a ineficácia da cloroquina no combate ao
vírus e advogar com veemência a vacinação como a hoje única forma eficaz de
enfrentar a pandemia.
Tudo isso compõe a “persona jurídica” que o presidente
encarna em seus pronunciamentos oficiais e viagens de Estado, cujo
comportamento contrasta com a conduta do candidato à reeleição que, ele
acredita, o autoriza a agir como pessoa física dedicada a estimular seu
eleitorado. Por fim, quem resumiu o estado de coisas foi o senador Omar Aziz,
ao dizer que se o ministro não consegue nem convencer o presidente a não
aglomerar, a usar máscara e a se vacinar, não conseguirá convencer a população
a adotar as medidas corretas que defende em tese, mas na prática não consegue
executar onde seria essencial: no principal gabinete do Palácio do Planalto.
Na quinta-feira, dirigindo-se a sua récua de baba-ovos, Bolsonaro
disse que tinha conversado com “um tal de Queiroga”, e que ele vai “ultimar
um parecer para desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam
vacinados ou que já foram contaminados”. À reportagem da CNN,
o ministro disse que o presidente pediu um estudo sobre a questão
por estar esperançoso, querendo assim seguir o exemplo de outros países, como
os Estados Unidos, e explicou que não considera uma precipitação realizar tal
pesquisa. “O
presidente não me pressiona. Eu sou ministro dele e trabalhamos em absoluta
sintonia. É assim que funcionam as democracias”, afirmou o doutor.
Ontem, Bolsonaro voltou a insistir que a decisão final será do ministro da Saúde. O
governador João Doria classificou como “mais um ato de
irresponsabilidade” a ideia do presidente: “Jair
Bolsonaro não tem compaixão e não tem nenhum apreço pela vida, principalmente
pela vida do povo brasileiro”. O tucano prometeu multá-lo caso ele não utilize máscara no passeio
de moto que deve ser realizado hoje aqui em Sampa. Em resposta, Bolsonaro
chamou o tucano de “doninho
de São Paulo”.
No final de uma semana em que perambulou pela conjuntura
brandindo uma falsa auditoria do TCU para sustentar a tese mentirosa de
que há “supernotificação” de mortes por Covid, o capitão das travas
promove a infecção em mais uma absurda “motociata”. Nesse cenário, a única coisa que parece fazer sentido é o nome
do evento: “Acelera pra Cristo”. A prioridade dos protagonistas da manifestação é acelerar o encontro dos incautos com Cristo.
A deferência ao bom senso e o respeito ao raciocínio lógico
não deixam dúvidas quanto à necessidade de impor um freio às tentativas de Bolsonaro
de jogar o Brasil no caos. Na confusão, ele se cria. Foi nesse ambiente,
agravado por uma tentativa de homicídio, que o capitão se elegeu e aposta na
remontagem de um cenário de desarrumação acrescido de contornos de grave crise
institucional para se reeleger. Conta com a intimidação como aliada à execução
de seu intento. Quanto mais temerosa estiver a sociedade, quanto mais a maioria
partidária da democracia estiver convencida de que o país está à beira de um
golpe, quanto mais se repete essa ideia, mais se normaliza essa situação e se
faz o jogo dos arautos da opressão.
Não significa dizer que se deva ignorar a óbvia preferência
do ocupante do Palácio do Planalto por um regime de arbítrio, no qual ele
pudesse dar vazão ao impulso de exercer o poder de modo absoluto, a fim de
impor ao Brasil suas convicções retrógradas. Não significa defender a indiferença
e a inércia diante das repetidas ameaças chantagistas e bravateiras. Ao
contrário. O que não se pode é ceder ao medo. Não aquele que põe o ser humano
em alerta contra o perigo, mas o excessivo que paralisa, confunde a capacidade
de enxergar a realidade com nitidez e dá ao agressor a sensação de que está
diante de presa fácil.
A sociedade brasileira que se organizou e se engajou nas
lutas coletivas pela anistia, por eleições diretas, pela volta dos militares à
disciplina dos quartéis, que viu a inesperada morte do primeiro presidente
civil antes da posse, que viveu dois impeachments, uma hiperinflação e assistiu
à condenação criminal da cúpula de um partido no poder sem abalos
institucionais não está nem pode se colocar no lugar de vítima ante as investidas
de caráter golpista.
Não há possibilidade de o Brasil voltar a ser presidido pela
tirania, a menos que a sociedade construtora dos feitos acima descritos
permita. A eficácia de uma barreira de contenção depende do poder civil, há
mais de 35 anos no comando. A representação majoritária desse poder elegeu o
presidente que se põe contra as regras estabelecidas pela Constituição de 1988
— outra das obras oriundas do suor democrático — e só a maioria dos brasileiros
pode destituí-lo. Seja pela palavra das urnas em 2022 ou por autorização
constitucional de um processo de impedimento que talvez tivesse um efeito
disciplinador sobre Bolsonaro mesmo que não concretizado.
Outra possibilidade seria a via da resistência organizada na
construção de alternativas político-eleitorais que contemplem a retomada da
normalidade e incorporem os melhores valores. Os mesmos que fizeram da
sociedade civil o agente ativo de avanços obtidos ao longo das últimas décadas
em que o Brasil acumulou firmeza institucional, força política e musculatura
social suficientes para não sucumbir ao fantasma do temor desmedido.
Por esses e mais uma série de outros motivos é que não há
razão para levar em conta a hipótese real de os militares se engajarem nos
projetos regressivos de Bolsonaro. Ainda que a atual geração de oficiais
estivesse interessada em voltar ao velho tempo, a experiência dos últimos dois
anos e meio não estimularia as Forças Armadas a dobrar a aposta numa parceria
que lhes impôs graves prejuízos em termos de reputação.
Nesse meio-tempo caiu o pilar da competência inquestionável,
caiu o esteio da impessoalidade do serviço ao Estado antes da fidelidade a
governos, caiu recentemente o alicerce da disciplina, caiu, enfim, o mito da
capacidade militar de imprimir moderação às exacerbações presidenciais. Uma
ruína. Nem a esquerda mais radical conseguiu promover semelhante destruição no
conceito das três Armas junto à população.
O que se ouve hoje de interlocutores frequentes dos
comandantes é que a tendência é levar Bolsonaro em banho-maria a fim de
evitar confrontos e trabalhar internamente para que os prejuízos não resultem
em quebras irremediáveis de hierarquia, notadamente nas patentes mais baixas e
nas PMs país afora.
Em recente entrevista, o professor Paulo Ribeiro da Cunha,
autor do livro Militares e Militância, resumiu com acuidade a situação:
“Os militares estão mais interessados em buscar uma alternativa do que em
ver Bolsonaro como alternativa”. Por outro lado, o arquivamento do processo por indisciplina do general Pazuello por pressão de Bolsonaro gerou insegurança e alimentou suspeitas de que o Exército sucumbiu a um projeto autoritário que está em curso.
A
fidelidade canina do general-vassalo ao capitão-suserano foi recompensada com o
cargo de secretário de Estudos Estratégicos do governo,
e a AGU já recorreu ao STF para impedir a quebra do sigilo
telefônico e telemático do general, que a CPI do Genocídio promoveu de testemunha a investigado, juntamente com o ex-ministro da Educação, Ernesto Araújo, e os ex-secretários Élcio Franco e Fábio
Wajngarten.
A versão de que o Alto Comando do Exército acatou a decisão
de não punir Pazuello para não criar mais uma crise militar pode denotar
ingenuidade por parte dos generais quatro estrelas, mas anula a de que o golpe
de Bolsonaro representa a submissão política de uma instituição de
Estado ao projeto autoritário do governo da ocasião. O ato do ex-ministro
vassalo foi, sem dúvida, contrário aos regulamentos militares, mas praticado
não pelo general, mas pelo presidente, que levou o subordinado ao palanque de
uma manifestação política.
A decisão do general Paulo Sérgio é compreensível, mas denota
uma subserviência preocupante a Bolsonaro (comparável à do atual ministro da Saúde, que se humilha e se anula profissionalmente em troca de um cargo num governo que não vale um peido). Sobretudo porque o presidente
vem dando sinais inequívocos de que um autogolpe está a caminho.
Cravar que o Exército
e as Polícias Militares, Federal e Rodoviária Federal o apoiarão nessa aventura
seria prematuro, dada a aversão dos fardados a Lula
e ao PT (donde a condescendência com que Bolsonaro é tratado). Talvez seja pouco provável que a maioria das Forças Armadas admita respaldar um regime
autoritário comandado por um capitão que abusa do “seu Exército” em nome da
proteção contra uma assombração esquerdista. Ou talvez não. Em última análise, seria o
mesmo erro cometido pelos que consideravam as milícias uma solução para a
segurança pública.