A frase que intitula esta postagem é atribuída ao saudoso
maestro Antonio Carlos Brasileiro de
Almeida Jobim — brasileiro até no nome —, mas eu vou mais além: governar este país é para poucos, e governá-lo bem, então, para muito poucos. Se Bolsonaro se enquadra nesta seleta confraria, bem, prefiro deixar o leitor tirar suas próprias conclusões. Vamos aos fatos.
Dentre outras coisa, o 38.º presidente do Brasil já nos deu a
saber que
não nasceu para ser presidente, mas para
ser militar, embora tenha passado menos anos no Exército
do que na política, para a qual entrou como vereador e se elegeu deputado federal sete vezes
consecutivas. Ao longo de quase 30 anos de vida parlamentar, ele apresentou 172 projetos, relatou 73 e
aprovou apenas dois, mas isso não vem ao caso. Na eleição de 2014, ao ver a calamidade em forma de gente
derrotar o tucano corrupto,
Bolsonaro resolveu disputar a Presidência —
antes disso ele havia colocado seu nome à
disposição do
PP para concorrer com “a
cara da direita”, mas foi ignorado pela própria legenda, que apoiou a campanha
de
Dilma. Durante a convenção
partidária, lançou seu ultimato: “
Ou
o PP sai da latrina ou
afunda de vez”. Graças à
Lava-Jato,
o
PP afundou de vez;
graças a sua pregação antipetista, o hoje presidente se reelegeu como deputado
mais votado do Rio de Janeiro, saltando de 120,6 mil votos em 2010 para 464,5
mil em 2014.
No final de 2014, o hoje presidente rodou o país em carreatas,
estampou camisetas e adesivos, posou para “selfies” com eleitores e ganhou um
público jovem e ligado nas redes sociais — os “bolsomínions”, que são uma espécie de militantes petistas com o
sinal político trocado. E o resto é história recente: com a
população dividida em petistas-lulistas
e antipetistas-antilulistas, o candidato de extrema direita obteve 55% dos votos válidos, derrotando a marionete de Lula por uma vantagem de quase 11 milhões de votos —
que não vieram somente de bolsomínions, simpatizantes e admiradores, mas também
de eleitores que não queriam (e continuam não querendo) ver o Brasil governado
por um fantoche controlado remotamente por um presidiário. E isso com uma
campanha espartana (que não usou o dinheiro do fundo partidário), feita por uma
coligação raquítica e que dispunha de míseros
8 segundos de exposição diária no horário político obrigatório.
De estatista, o deputado-capitão passou
a defensor da liberdade de mercado, selou pareceria com o economista
liberal Paulo Guedes (seu Posto Ipiranga). Para compor a chapa
como vice, convidou o senador Magno
Malta, que errou feio ao declinar, pois não conseguiu se reeleger — mesmo com a maior verba partidária da sigla em seu estado, Malta obteve menos da metade dos 1.500 mil votos que esperava. A
lista seguiu pelo general Augusto
Heleno (que aceitou, mas não obteve sinal verde do PRP), pela advogada Janaína Paschoal (que recusou e
acabou se elegendo a deputada estadual mais votada de São Paulo), pelo
príncipe Luiz Philippe de Orleans e
Bragança (que foi desconvidado quando se divulgou que teria sido
filmado agredindo um morador de rua), chegando afinal ao general da reserva
Hamilton Mourão — aquele que defendeu numa loja maçônica em Brasília,
em 2017, a intervenção militar no caso de o Judiciário não conseguir expurgar
os corruptos da política nacional (voltaremos ao general mais adiante).
Bolsonaro começou a campanha liderando as pesquisas — atrás somente do ex-presidente
presidiário, cuja candidatura nunca passou de uma quimera. Houve um consenso de
que o capitão teria atingido o ápice da popularidade e que a tendência natural seria
de desidratação, mas o cenário mudou com o atentado em Juiz de Fora,
que quase lhe custou a vida. No segundo turno, debilitado por duas cirurgias, permaneceu recluso no condomínio na Barra da Tijuca (onde morava antes de se
mudar para Brasília), mas continuou subindo nas pesquisas. Mesmo liberado pelos
médicos, preferiu (sabiamente) não participar de debates — algo inédito no segundo turno das
eleições presidenciais no Brasil —, e mesmo entrincheirado em casa, com uma
bolsa de colostomia presa ao abdome, defendendo-se e atacando através das redes
sociais, alcançou a vitória mais improvável da história da democracia
tupiniquim.
Para gáudio dos bolsomínions e apreensão dos que ajudaram a
eleger o capitão por absoluta falta de opção, Bolsonaro vestiu a faixa e
subiu a rampa do Palácio do Planalto sem tirar os pés do palanque. Seus primeiros
100 dias no cargo foram decepcionantes, sobretudo no que tange à reforma previdenciária
(indispensável para o país e para a sustentabilidade do atual governo). Com o PT
debilitado pela derrota, o presidente, três de seus filhos e alguns ministros de Estado pinçados
lá do fundo baú da incompetência vem tomando para si a função da oposição, transformando o Planalto e se entorno numa usina de crises sem capacidade ociosa. O combustível da autossabotagem do governo é o caldeirão ideológico em que ele está mergulhado, no qual múltiplas correntes de direita se engalfinham por hegemonia e pelo controle da administração federal, ou setores dela. Seu lema: "se está ficando bom para todos, alguém precisa estragar algo".
O “caso Queiroz” é um bom exemplo — que ainda não produziu efeitos
ainda mais deletérios porque novos fatos vêm se sobrepondo dia sim, outro
também. Outro é a demissão de Gustavo
Bebianno — o grande articulador da campanha do capitão — da
secretaria-geral da Presidência, cuja permanência no governo se tornou
insustentável depois de ter sido chamado publicamente de mentiroso pelo filho
zero dois. Outro, ainda, remete ao “laranjal
do PSL”, e haveria muitos mais, sem mencionar as estultices de um presidente
que parece escolher os momentos mais impróprios para dizer o que não deve (haja
vista a estúpida, despropositada e escandalosa queda de braço com o presidente
da Câmara, que dificultou ainda mais a tramitação da PEC da Previdência).
Abril se despede e maio começa com um feriado prolongado no
Congresso Nacional e um céu carrancudo, toldado pelas nuvens da indefinição. E as ingerências
palacianas, como a que suspendeu o reajuste do preço do diesel a pretexto de
evitar uma nova greve de caminhoneiros, e, mais recentemente, uma campanha
publicitária do Banco do Brasil, não tem ajudado em nada, antes pelo contrário: há quem especule se não estaríamos numa situação melhor se o vice assumisse
o comando desta nau de insensatos — o que não seria novidade, haja vista os
governos de José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer, mas seria a ironia das ironias, na medida em que muita gente se
preocupava com a possibilidade de a vitória do capitão ressuscitar a ditadura militar (aquela
que hoje sabemos nunca ter existido no Brasil). Igualmente curioso é o fato de
o presidente ter recheado seu ministério de generais, e estes serem os ministros
que menos têm dado motivos para preocupação. Coisas do Brasil.
Para muitos analistas, a incompatibilidade entre Bolsonaro e o cargo de presidente, com combinada com a atuação deletéria de sua prole, responde pelo
fiasco do governo em seus primeiros 100 dias. Sobre a crise da vez — que envolve o general Mourão
e Carlos Bolsonaro (sempre ele, embora não somente ele) —, há que ter em conta que ministros podem ser
exonerados, bastando para isso uma simples publicação no diário oficial, mas nem
filhos nem vice-presidentes são passíveis de demissão.
Talvez por isso o capitão e o general tentam passar a impressão de que vivem um casamento sólido, visitado
apenas por desavenças ocasionais e amenas, próprias das uniões estáveis e
felizes. “Esse casamento é até 2022, no
mínimo”, disse Bolsonaro em café
da manhã com a imprensa na quinta-feira 25, no Palácio do Planalto. “Continuamos dormindo na mesma cama. Só tem
briga para saber quem vai arrumar a cozinha”, divertiu-se Bolsonaro. “Ou cortar a grama”, emendou Mourão. Por trás das alegres metáforas
matrimoniais, porém, a realidade que se esconde nos bastidores mostra que, das crises
políticas que o governo enfrentou até aqui, a mais grave é esta, com hostilidades entre o presidente e o vice, ainda que amenizadas em público, se mostram em franca ebulição no âmbito privado.
Para além de zero dois, o pivô de mais essa controvérsia é o autodeclarado “intelectual”
Olavo de Carvalho, ex-astrólogo, esotérico e ultraconservador famoso não só pelas teorias delirantes que oferece em um curso
virtual de filosofia, mas por ser uma espécie de guru do clã
Bolsonaro e de
eminência
parda neste governo. Dentre outros prodígios, o "professor" foi responsável pela indicação dos ministros
Eduardo Araújo, das Relações Exteriores
(que “balança mas não cai”) e
Ricardo Vélez,
da Educação (que felizmente já caiu). É certo que, pela essência da pregação e pelo histrionismo do pregador, o guru de botequim e seus apóstolos (olavetes) mas cedo ou mais tarde voltarão para o ostracismo com certas curiosidades folclóricas de onde vieram. Mas as rusgas entre o presidente e o vice podem ensejar situações delicadas e produzir efeitos nefastos, sobretudo num governo instável, incerto, que claudica com sérias dificuldades.
As divergências entre zero dois e o vice vieram à tona quando Carluxo postou um vídeo na conta do pai no YouTube — pois é, a versão bolsonariana do “menino de ouro” de Lula é fiel depositário das senhas do
papai e de outros integrantes do clã —, onde o guru araque desfia críticas
impiedosas aos militares, mas que tem como alvo o
general Mourão, a quem o
proselitista já chamou de “adolescente desqualificado”. Bolsonaro pediu que
o vídeo fosse retirado do ar, mas aí o estrago já estava feito: tinha sido aberta a
temporada de ataques ao vice-presidente.
Na saraivada de tuítes que se seguiu
ao episódio, Mourão foi acusado de
se opor às propostas do presidente, de se aliar a adversários, de se aproximar
de empresários importantes, de bajular a mídia, de se apresentar como sensato e
transigente — tudo isso, segundo zero dois, planejado para se viabilizar como
alternativa de poder. Para piorar, a exemplo do que se deu no episódio Bebianno, o presidente endossa as
críticas públicas que o filho tem feito ao general. Ele não concorda com tudo,
mas acha que seu rebento está mirando no alvo certo.
Desde a postagem do vídeo, Mourão começou a desconfiar de que os ataques tinham o aval do
presidente. Contrariado, disse que, se aquilo continuasse, não descartava a
saída extrema de renunciar. No governo, afirmou o general, tudo o que tem feito é tentar
ajudar o presidente, e não o contrário. Mas Bolsonaro parece estar convencido
do oposto.
Na terça-feira 23, durante a reunião do Conselho de Governo, alguém elogiou o presidente e declarou que ele vencera
sozinho uma eleição difícil, sem a ajuda dos políticos. “Não, teve o Mourão comigo”, ironizou Bolsonaro. Semanas atrás, irritado com algo que não deixou
muito claro aos interlocutores, o presidente voltou a censurar o vice: “O
negócio é o seguinte: o Mourão é
general lá no Exército. Aqui quem manda sou eu. Eu sou o presidente”. E tampouco freou os filhos. Ao contrário, Carluxo, depois do vídeo de Olavo de Carvalho, intensificou os
ataques. Eduardo também entrou na
roda, declarando que o Mourão enseja a desconfiança de que poderia almejar um
cargo mais alto da República. “No começo eu ouvia esse papo e achava besteira.
Agora, já não sei mais”, afirmou o pimpolho de número 3.
Em um governo tão sectário na política e na ideologia, o
amplo leque de ações do vice-presidente soa como provocação — ou, o que é pior, como
conspiração. E os petardos que mantêm o fogo alto costumam ser disparados
por assessores que, às vezes mais realistas que o rei, apostam no confronto. Tanto que foi zero dois quem publicou o vídeo na conta do pai, e foi o coronel Itamar, que cuida da rede social do
vice, quem curtiu um comentário da jornalista Rachel Sheherazade, do SBT,
que enfureceu Carluxo.
Observação: Na postagem do último dia 22, eu comentei
que o vice-líder do governo na Câmara, por influência do guru de meia pataca,
apresentou um pedido de impeachment contra o vice-presidente da República,
alegando “conduta indecorosa, desonrosa e indigna” e “conspiração para
conseguir o cargo de Bolsonaro”. Um
dos argumentos sustentados pelo congressista patarateiro é um like de Mourão na publicação em que a
jornalista Rachel Sheherazade dirigiu
elogios ao vice-presidente e críticas ao titular. O general classificou como
“bobagem” o pedido de impeachment e afirmou que "se prosperar, ele volta
para a praia". Quanto ao dublê de pensador e astrólogo, talvez fosse
melhor ele voltar a fazer mapa astral, chupar seu cachimbo lá em Richmond, na
Virgínia, e palpitar menos no governo tupiniquim. Todo mundo sairia ganhando.
Se Carlos Bolsonaro
fosse mulher, teríamos um caso clássico de Complexo
de Édipo. No afã de proteger o papai, o filhote-pitbull extrapola, exorbita e
ultrapassa todos os limites, começando pelo do bom senso. Sua cisma com Mourão começou no ano passado, depois
do atentado contra Bolsonaro, quando insinuou que a morte do pai interessaria ao
general. De lá para cá, vire e mexe ele volta à carga.
No domingo de
Páscoa, zero dois postou um vídeo em que o guru do clã ataca os militares; no dia
seguinte, Mourão ironizou as
críticas e disse que Olavo deveria
focar o que entende — astrologia. Na sequência, o pimpolho mostrou que o general curtiu um post da jornalista que
classificou o presidente de “vinagre” e o vice de “vinho”. Depois postou o
convite de uma palestra nos Estados Unidos para a qual o Mourão foi convidado e insinuou que o general foi chamado com a
missão de falar mal do governo; em outro post, escarneceu de uma fala de Mourão sobre a crise na Venezuela (o
general disse que a população do país tinha de estar desarmada para evitar uma
guerra civil — “uma pérola!”, ironizou zero dois). Na sequência, compartilhou um vídeo que fala de uma suposta articulação política do PRTB, partido de Mourão, para ter independência do governo, e, poucas horas depois, uma entrevista em que Mourão diz que não iria comentar a decisão da Justiça de reduzir a pena de Lula, e um comentário do vice criticando o processo de “despetização” promovido no
governo pelo ministro Onyx Lorenzoni.
No mesmo dia, criticado pela ofensiva, zero dois escreveu candidamente que não se trata de atacar o
general, mas apenas de estabelecer os fatos. E por aí segue a procissão.
No café da manhã da última quinta-feira, presidente e vice sentaram-se lado a lado, em cena de harmonia. Fizeram
questão de dizer que Carlos tem o
direito de expressar sua opinião. Mourão
chegou a comentar que o fato de Carlos
ser filho do presidente não o obriga a ficar “de bico calado”. Mas é uma
ingenuidade achar que a crítica de zero dois seja comparável à de qualquer
político, ainda mais quando o dito-cujo teve papel fundamental na campanha e
exerce influência indiscutível sobre o papai presidente.
Conflitos entre titular e vice permeiam a história desta
república desde as mais priscas eras. O primeiro presidente do Brasil, marechal Deodoro da Fonseca, desconfiava de Floriano Peixoto, que assumiria seu
lugar nove meses depois da posse. Café
Filho conspirava contra Getúlio
Vargas. João Goulart não dava
trégua a Jânio Quadros. Na
redemocratização, Itamar Franco
voltou-se contra Collor e Dilma, vejam só, acreditava que Michel Temer era o vice mais discreto e
servil com que um presidente poderia contar — e deu no que deu.
Para evitar novas
crises, há que lavar a roupa suja em casa. A nação agradece.